Desde criança, sonhava que voava!

Fechava os olhos e sonhava sonhos pela infinito, que viria a ser seu, embora ele modestamente desdenhasse vénias e cortesias:

"Estou num pedestal muito alto, batem palmas e depois deixam-me ir sozinho para casa. Isto é a glória literária à portuguesa", disse

O pintor e poeta surrealista, um dos maiores vultos da cultura portuguesa do séc XX, dava mais importância à sua obra literária do que à sua pintura.

Depois de conhecer, em Paris, o poeta André Breton, integrou o Grupo Surrealista de Lisboa, em que também se encontravam Alexandre O’Neill e José-Augusto França.

Protestava contra o regime político e contra o neo-realismo.

Espírito livre, acabou por se incompatibilizar com este grupo e formar outro, que se lhe opunha, “Os Surrealistas”, com Cruzeiro Seixas e Risques Pereira.

Talento multi-facetado, Cesariny, cuja atitude estética se caracterizava pela permanente experimentação, começou por dedicar-se à pintura de forma ocasional, mas a acabaria por fazer dela actividade quase exclusiva. Deixou de tocar piano e de escrever poesia. "Secou", dizia. Não sentia necessidade de escrever. "Para quê? A quem?"

A sua obra literária - onde se destacou como antologista, compilador e historiador polémico do surrealismo em Portugal - começou pela poesia de intervenção, na década de 40. Acabou por escrever sobre tudo. E muito sobre o amor "Pode-se morrer por amor. Mas também se pode morrer por falta de amor".

O homem que viveu como quem aproveita uma oportunidade única, desgastado por longa doença oncológica, confessava: "Gostava de ter daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda".

Assim aconteceu hoje, aos 83 anos, na sua casa em Lisboa.


Deixou aos portugueses e ao mundo uma obra inestimável, publicada em:

Corpo Visível (1950)
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952)
Louvor e Simplificação de Álvaro de Campo (1953)
Manual de Prestidigitação (1956)
Pena Capital (1957)
Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor (1958)
Nobilíssima Visão (1959)
Poesia (1944-1955) (s./d.)
Planisfério e Outros Poemas (1961)
Um Auto para Jerusalém (1964)
Titânia e A Cidade Queimada (1965)
19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão Seguidos de Poemas de Londres (1971)
As Mãos na Água e na Cabeça (1972)
Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972)
Primavera Autónoma das Estradas (1980)
Vieira da Silva, Arpad Szenes ou O Castelo Surrealista (1984)
O Virgem Negra (1989)
Titânia (1994)

Deixou-nos ainda os livros:

A Intervenção Surrealista (1958), Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961, obra que organizou e para qual contribuiu), Surreal-Abjection(ismo) (1963), Do Surrealismo e da Pintura (1967), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e Vieira da Silva – Arpad Szènes, ou O Castelo Surrealista (1984).


"Eu, Sempre..."

Eu sempre a Platão assisto.
Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.

Mário Cesariny

In

Corpo Visível (1950)


O Raul Leal era
O único verdadeiro doido do "Orpheu".
Ninguém lhe invejasse aquela luxúria de fera?
Invejava-a eu.

Três fortunas gastou, outras três deu
Ao que da vida não se espera
E à que na morte recebeu.
O Raul Leal era
O único não-heterónimo meu.

Eu nos Jerónimos ele na vala comum
Que lhe vestiu o nome e o disfarce
(Dizem que está em Benfica) ambos somos um
Dos extremos do mal a continuar-se.

Não deixou versos? Deixei-os eu,
Infelizmente, a quem mos deu.
O Almada? O Santa-Ritta? O Amadeo?
Tretas da arte e da era. O Raul era
Orpheu.


Os sebastiacas trombos não deixaram partir
Portugal para o Brasil.
Vagos ficamos da amurada aos tombos
Para a largada rombos
Do corpo de Portugal.

Mas a Hora deixada ao sono vil
Dos que provendo tudo podem nada
Mais que o fogo senil
Do Império Final,
Cintila na amurada:
Não há Portugal e Brasil.
Brasil é Portugal.
Mário Cesariny


Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que
importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que
importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que
importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício
Não
é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal
o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal
o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal
o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora!
– rir de tudo
No riso admirável
de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny


Visto a esta luz

Visto a esta luz és um porto de mar
como reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços

Constroem-te uma ponte
que deverá cingir-te os rins para sempre

O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar

Quero-te sempre como nã querer-te?
mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade

Mário Cesariny



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny


Faz-me o favor...

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

de "O Virgem Negra"


Mário Cesariny


Nota: autorizei a publicação desta biografia, escrita em 26 de Novembro de 2006, ao Amigo, Poeta e Editor de "Poesia & Literatura" Eugénio de Sá:
 2ª Edição da AVPB (Academia Virtual Poética do Brasil).