CARONA PARA O PERIGO
Este texto é seqüência do texto NAMORO SAGRADO NA MISSA.
A perguntar para uma e outra pessoa, após subir a ladeira em frente a estação ferroviária de Mafra, nos embrenhando por ruas que não consigo descrever, estivemos na casa onde nos haviam informado que forneciam picolés e sorvetes consignados. Há poucas horas o trem em que eu viera de Lages chegara na estação, onde conheci na saída, surgindo de sob um arbusto, esse amigo meio esquisito, tipo Franck Sinatra, a quem acompanhei à missa só para vê-lo levar um carão de uma moça da qual tentou se aproximar na igreja.
Ele chegara um dia antes, vindo de Rio Negrinho, e passara a noite sob o arbusto na saída da estação. Tinha uns dezessete anos, enquanto eu recém completara quinze no dia dezessete de dezembro último, do ano de 1980. Há dias eu viajava desde São Leopoldo, no Estado do Rio Grande do Sul, distante mais de quinhentos quilômetros.
Após o mico na igreja, disse ao amigo, que me pareceu de uma malandragem interiorana, que melhor era deixar a missa antes do fim, indo procurar a distribuidora de picolés, visto que o dia prometia, pois dava ares de que seria um domingo muito quente, portanto movimentado, e se tardássemos não pegaríamos consignação.
Após andar um bocado, desde a igreja em Rio Negro, cidade gêmea de Mafra, más já no Estado do Paraná, achamos a casa dos picolés, onde alguém de mal humor informou que não davam produtos em consignação, apenas mediante pagamento antecipado. Desapontado, ponderei que era hora de render-me e retornar para casa, mesmo arriscando ganhar uma surra memorável por ter fugido. Quanto ao amigo, já não tão arrumado como quando fomos a igreja, e com a mala em punho, disse que não ficaria na cidade, visto desde então que as coisas seriam difíceis. Voltaria para casa naquele dia mesmo com carona que arranjaria na rodovia federal, em direção a leste, bem distante do perímeto urbano, para onde nos encaminhamos de vagar. Como eu, cujos pães que comprara com o último dinheiro acabavam, ele não tinha dinheiro nem para a passagem de retorno.
Já no entroncamento da BR 116, o amigo seguiu para o sul com a mala quadrada em punho e atacando os carros. Enquanto isto, segui em direção ao norte, onde logo cruzaria a pé a ponte sobre o rio Negro, na divisa entre os Estados de Santa Catarina e Paraná. Entretanto, não achei tão fabulosa essa passagem quanto fora sair pela primeira vez do meu Estado, quando cruzei na semana anterior a divisa entre os Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Após as primeiras curvas, próximo de onde eu tinha visto surpreso um CTG (Centro de Tradições Gaúchas), achei uma melancia numa tenda abandonada e fiz dela meu almoço. Antes ainda do meio dia, quando nem esperava, consegui carona num caminhão Mercedes azul, que me deixou na localidade de Pinheirinho, em Curitiba, por volta de quatorze horas.
Aí deixei a rodovia, saindo para a esquerda uma quadra, seguindo em direção ao norte, umas duas ou três outras quadras numa rua movimentada, buscando algo para comer, pois a fome me consumia. Após sair da rua movimentada entrei numa rua secundária a direita, onde, numa esquina, em uma horta com cerca rala de arame farpados encontrei dois tomates enormes, bem vermelhos, que comi deliciosamente e fui saindo rápido antes que me vissem. Mais adiante, frente a uma rua transversal, onde terminava a rua que eu seguia, parei para ler um longo texto numa placa sobre o vasto portão de uma propriedade escondida por um muro de uns três metros de altura. Por ser tão grande o texto, que dizia que ali era uma propriedade particular e era proibida a entrada de desconhecidos, demorei a frente do portão, do outro lado da rua, sendo assistido no lado oposto pelo guarda da propriedade, aparentemente incomodado. Antes que eu terminasse de ler, ele inquiriu de lá sobre o que estaria fazendo ali, pergunta que bem merecia uma resposta igualmente idiota. Respondi que lia a placa, que dizia que não era permitido transpor o portão. Então ele falou que não era permitido ficar onde eu estava, ao que respondi que não poderia ter lido a placa se não tivesse ficado o tempo necessário para lê-la, tomando daí conhecimento de que não se podia entrar na propriedade. Entretanto, nada na placa proibia a presença no lado de fora ao menos o tempo necessário para ler a placa. Irritado, ele ordenou que eu saísse, dizendo que chamaria as autoridades. Não questionei, pois lera a placa de curioso, por achar que o que se escreve é para ler, e saí com a mesma pressa que cheguei.
De volta a BR 116, segui rumo ao norte, observando o movimento urbano por ali, alcançando aos poucos a dois sujeitos que seguiam distantes na mesma direção. Num ponto em que o movimento na BR estava no auge, eles pararam, descansando na grama a beira da rodovia. Alcançado-os, após as apresentações de praxe e tendo respondido as suas perguntas, eles me convidaram para seguí-los a São Paulo, onde pretendiam chegar até o dia seguinte, senão ainda na noite do dia atual.
Eram dois catarinenses, aparentando vinte anos, talvez um pouco mais. Vinham de Canoinhas, rumo a São Paulo para arranjar trabalho, sonhando melhorar de vida. Traziam água mineral e algum dinheiro, com que logo mais fizemos um lanche reforçado.
A tarde passou enquanto deixamos Curitiba quilômetros para atrás. Após uma curva, onde compramos numa tenda de taquaras um pacote de bisnaguinhas e outro de pipocas, acabando com o dinheiro deles, num posto de pesagem junto a um posto da Polícia Rodoviária, mais velho pediu a um policial que tentasse arranjar-nos carona. Apesar de que ouvi o soldado dizer que não podia fazer, logo vi-o conversando com um motorista e apontando para nós.
Um senhor de cor morena, com uns quarenta e cinco anos, deu-nos carona num caminhão Dodge de três eixos. Seguimos alguns quilômetros conversando apertados na cabina. Ao anoitecer, porque disse que não era bom viajar a noite, ele encostou num posto junto a um grande canteiro, dizendo que podíamos dormir sob o caminhão. Argumentei que não era bom dormir sob um caminhão, haja vista que o motorista poderia esquece-se de nós ao arrancar, por isto dormimos vendo as estrelas sobre a grama ao lado do caminhão, enquanto o ele acomodou-se na cabina.
Próximo a meia noite ele acordou-nos dizendo que seguiria viagem, pois se armava um temporal e iríamos nos molhar fora do caminhão. Sendo que com os três na cabina ninguém poderia dormir, era melhor aproveitar para seguir viagem.
Logo que saímos começou uma chuva torrencial, que, apesar dos limpadores de pára-brisa em alta rotação mal permitia ver a estrada. Fomos descendo a serra do Quilômetro Quinhentos, já no Estado de São Paulo, ladeando uma fila interminável de trafego oposto. Com as janelas fechadas, o vidros embaçavam rapidamente, tirando a visão quase por completo, quando o rapaz mais velho, que estava no meio, passava o pano.
Súbito sentimos um impacto, seguido um estrondo que percorreu o caminhão desde a frente à traseira. O rapaz levava a mão para a limpar o pára-brisa. A princípio não entendi o que se passara. O motorista tentou abrir a porta, que estava emperrada. Ao sairmos na chuva pela porta da direita vimos que a carroceria tinha sido arrancada, além que a lateral da cabina achava-se amarrotada. Pouco mais para cima estava o caminhão do “Catarina”, que nos batera, carregado de bananas. Os estragos no dele eram superficiais.
Ficamos por ali querendo servir de testemunhas para o motorista, que se desculpou, nos dispensando, pois disse que não seria possível seguir viagem. Sob a chuva agora branda, fomos descendo a serra iluminados pelos faróis no longo congestionamento. Bem abaixo encontramos um grande abrigo de ônibus, onde passamos a noite fugindo da água que aos poucos foi invadindo o espaço onde dormíamos, até que dormíamos quase amontoados.
Wilson Amaral