NEM SÃO NEM SALVO

Comecei a "pecar" cedo, aos seis anos, quando aprendi a ler.

Em uma família norteada pelo rigores evangélico-pentecostais judaico-cristã, muitas coisas eram proibidas;

e uma delas, a ferro e a fogo, era a leitura de qualquer texto que não fosse religioso, e os aprovados, ainda assim,

eram previamente passados pelos olhos prepostos de tias e avô.

Todos, aos meus olhos infantis, eleitos em alguma grande solenidade secreta, tendo Deus

- em sua incomensurabilidade, se materializado e entregue outra Tábua contendo as regras básicas censoriais paternas -

por censor maior e ditador de tão severas restrições.

Como é evidente, o que é proibido aprende-se rápido e comigo nunca foi diferente, pois sempre preferi, curioso que sou, sentir na pele as dores consequentes do proibitivo.

Enveredei-me então pelos tortuosos caminhos da infração,

aprendendo a ler pelo que era de mais interdito:

gibis, fotonovelas, a extinta Manchete, O Cruzeiro, romances, clássicos da literatura...,

tudo coisa do demo...

Devorava aqueles mundos em letras por entre os cantos e desvãos da casa ou debaixo da cama ,

o coração acompanhando em descompassos a perspectiva dupla de ser pego com "mão e olhos na massa"

enquanto descobria as tramas e mistérios que trazem os escritos.

Para aplacar a ira de minha consciência infantil aprendera a decorar trechos bíblicos com seus respectivos versículos e capítulos,

para então declamá-los ao público dominical da congregação:

verdadeiro tartufo (com um pé no céu outro no inferno) inocente e aspirante a ator.

Matava assim dois coelhos com uma só cajadada, acreditando ter às costas toneladas de pecados, de insidiosas leituras de revistas "do demônio":

a primeira garantir um cantinho num tal céu que me prometiam por obediência e a segunda,

deixava o "coroa" e um "Deus" imperfeito feliz, juntando bônus atenuantes que reduzissem a violência das surras advindas dos infindáveis flagrantes que viria a sofrer ao longo de minha infância "delituosa".

As artes da matemática? Também não me foram difíceis aprender; tinha como incentivo dois singelos objetos:

uma cartilha contendo as quatro operações básicas e uma "lustrosa" palmatória de Pinus elliottii, com quatro furos no centro.

Ainda hoje me indago da utilidade daqueles buracos!

E entre mais tapas que beijos, aprendi cedo e "de cor" os rudimentos básicos das ciências exatas e as da escrita;

Lancei-me ao mundo com angústias e medos, tendo como destreza o engodo e a encenação,

fingindo-me de santo-ator nas horas necessárias e interesseiras.

Tolo infante buscando o caráter do próprio rosto num mundo de verdades em mutação.

Ainda não fiz um balancete pessoal de perdas e ganhos;

talvez o faça quando tiver que dar minhas carnes aos vermes;

mas essa maldita consciência cristã paterna nunca me abandonou.

Por isso nunca me meti em política..., nem nunca soltei os animais que um superego cristão e alheio a mim insiste em sufocar .

Ainda vejo meus algozes, com seus olhos censores, na capa do meu Livro da Vida e seus dedos apontando-me um inferno inexistente.

E temeroso aqui cheguei..., nem são, nem salvo.

Daniel Viveiros®/Fev2006