O BECO DA POPULAR VELHA
Cresci em um bairro famoso pelos prostíbulos.
As casas das "mulheres da vida" concentravam-se nos mais afastados e as melhores e maiores estavam no meu.
Digo-o com o orgulho de quem, centenas de madrugadas adentro dormiu embalado por todas as músicas populares dos anos 60 e 70.
Os sons "bregas" e "dor de corno" varavam as modorrentas noites afora,
como se as disputas sonoras das casas noturnas fossem sereias oferecendo paraísos, com suas lâmpadas vermelhas às portas como faróis em arrecifes,
para que os madrugadores e bêbados não batessem na entrada errada e levassem um tiro de algum marido enciumado.
Às vezes os acompanhamentos, qual sinfonia irônica, eram espocar de tiros, gritos e sirenes policiais.
Moleque imaginoso, via os meretrícios como uma permanente festa de corpos e sons, um carnaval que durava o ano todo, onde a alegria estava disponível e a hipocrisia ficava porta fora.
A morte de uma das donas do puteiro mais famoso, o Pomba Branca, foi uma verdadeira comoção no bairro.
Fora esfaqueada ao início da manhã de uma segunda feira
por um sujeito apaixonado que lhe propusera casamentórios recusados, e que a matara por ciúme doentio.
Todos conheciam dona Pombinha, respeitada por seu caráter forte e acolhedor.
Rapariga grávida expulsa de casa não ficava nas ruas e nem abandonada, ali tinham-lhe a acolhida.
Resolvia também pendengas de outras casas noturnas; parecia mais uma juíza que cafetina.
Respeitada até pelas respeitosas "senhoras", as casadas e quase sempre gordas infelizes donas-do-lar.
Quando me atinei por adolescente imberbe, aos quinze anos, fui embora para a capital.
O tempo de dez anos que lá permaneci se encarregou de mudar aquela geografia.
Meu bairro, o antigo Beco da Popular Velha, viera abaixo com o progresso e levas de agricultores expulsos pelos latifúndios.
A cidade esparramou-se consumindo a mata (a minha mata), subindo encostas e morros, soterrando córregos, derrubando as mangueiras e jatobás seculares;
encanamentos e novos postes elétricos substituíram os emaranhados de fios e "gatos",
campos de futebol foram loteados, os casebres de madeira e zinco foram ao chão para darem lugar às alvenarias e...
como se nunca houvessem estado ali, as mulheres públicas e seus rendez-vouz, os traficantes, os matadores, os meninos de rua e centenas de bares desapareceram como por encanto;
já nem mais reconhecia as novas casas de tijolos e cimento
nem as vielas que as máquinas transformaram em ruas largas e saneadas.
Voltei outras poucas vezes, apenas para certificar-me que aquele não era mais o local que um dia, bem ou mal, fora meu.
Senti-me, no primeiro retorno, um estranho sem passado.
A casa que meu falecido pai deixou-me, na qual morreram também meus avós,
está em abandono e é a única prova viva de que minha infância não foi um sonho,
e que vivi sim, um dia, num mundo de sons, odores, movimentos e violências,
apesar dos poucos amigos de infância, os que um dia tive,
estarem em sua maioria mortos.
Daniel Viveiros®/Fev2006