MATEMÁTICA INCERTA
Este texto é seqüência do texto MATEMÁTICA INCERTA.
Poucos dias tinham se passado desde que começara a trabalhar como vendedor de cachorro quente em Caxias do Sul, há uns cento e dez quilômetros de São Leopoldo, onde eu morava na casa de meu pai e de onde saíra no meio do mês de novembro do mesmo ano de 1980. Por ter esfaqueado certa noite um bêbado na porta de um bar no centro da cidade após ter me pego no ponto de venda, o patrão desaparecera pelo período de flagrante delito, retornando com um garoto de quinze anos, como eu, trazido de Pelotas para também vender cachorro quente. Então eu tinha um colega a minha altura, sendo que os outros dois empregados do homem eram adultos. Como antes eu já fazia, às sete e trinta levantávamos, tomávamos nosso café e saímos a perambular pela cidade, sendo que lhe mostrei tudo o que tinha conhecido com a turma que tivera nas semanas anteriores. Muitas vezes estivemos no Parque Cinqüentenário a ver se encontrávamos o Adilson, ou se, por um golpe de sorte, sua cunhada ruiva, irmã gêmea da namorada dele, lindíssima, com dezesseis anos. Mas nunca mais vi o amigo, exceto a cunhada, que me deu três arrebatadores beijos nas bochechas quando passou pelo carrinho de cachorro quente em frente ao Bazar Nair em certa tarde acompanhada de um grandalhão, amigo do Adilson, meio gordo, que a cercava com toda certeza. Assim fizemos uma firme amizade, eu e o garoto vindo de Pelotas, descobrindo os segredos da humanidade nas trocas de idéias de adolescente, tentando entender porque os adultos eram tão imprevisíveis, ao mesmo tempo que conhecendo os recantos de uma cidade brasileira, mas povoada por pessoas de pensamentos e costumes um pouco diferentes.
Desde meu segundo acerto de féria as contas de quanto trazia de dinheiro jamais batiam com a saída de material no carrinho de cachorro quente. Eu não era ruim de matemática. Entendia inclusive de regra de três, além da matemática mecânica que fizera no Senai, onde aprendera ainda o desenho mecânico, que requer cálculos complexos. Todavia, não havia forma de meus resultados baterem com os do patrão na hora do acerto. Ele fazia a conta por um método e dava um resultado. Eu fazia a conta pelo mesmo método e dava outro resultado. Então usava os métodos que tinha aprendido no colégio e reforçado no Senai. Meus resultados sempre coincidiam, correspondendo a féria com a saída de material, mas ele dizia que eu estava errado, que não sabia fazer contas e não seria bobo de desmenti-lo, pois ele era muito mais velho. Tudo isso ele fazia na frente dos homens adultos, cujos cálculos sempre davam certo, mas eles não diziam nada sobre os meus cálculos. Inclusive uma noite de folgas falei com um deles sobre os cálculos e ele me disse que não podia se meter, pois era problema meu.
Agora que chegara o amigo de Pelotas veríamos se suas contas também dariam erradas. Passou-se dois ou três dias e tudo correspondeu. Entretanto, logo começou a aparecer as faltas de férias e o garoto, como eu, assinava vales que iam dissolvendo seu salário.
Fiz muitas contas durante os horários de expediente tentando chegar nos resultados que o patrão chegava. Nada dava certo. Cheguei a comprar muitos pães na padaria América, os quais acrescentei ao estoque. Mesmo assim faltou féria. No outro dia comprei pães e salsichas, mas não adiantou, pois, embora que em minha conta devesse sobrar dinheiro, ainda faltou. Por fim, estávamos desanimados e andávamos pela rua ponderando como faríamos para resolver a situação. Entretanto, tínhamos muito medo do patrão, por isto não cogitávamos tomar atitudes radicais.
Não era por pouco o medo que tínhamos. Além das facadas no gordo, que o outro garoto não tinha assistido, o homem já tinha aprontado uma boa para mim, que era bem ingênuo, sendo que tínhamos sido criados de casa paro o colégio, para a igreja e para casa, sem nem mesmo poder brigar na rua ao preço de apanhar em casa.
Certa vez apareceram no carrinho dois caras se passando por famintos e contaram uma história de um cheque de cento e vinte cruzeiros que eles dariam por dois cachorros quentes de lingüiça, somando um total de setenta e quatro cruzeiros, sem querer o troco. A mim, que não sabia ainda que existiam pessoas capazes de prejudicar aos outros (me questionava se o patrão não estaria certo em seus cálculos e eu errado), achei um ótimo negócio e prontamente dei-lhes os lanches, ficando com o cheque, que pus no caixa. Quando mais tarde o patrão veio para conferir o caixa, ao ver o cheque, foi tomado de numa fúria inexplicável e, sem mais dizer, fechou o carrinho e me levou pelo braço para a delegacia de polícia sugerindo que eu estaria envolvido com roubo de cheques, pois aquele se tratava de um cheque roubado. Da delegacia fui liberado após prometer que ligaria para eles se os homens aparecessem, o que fiz no dia seguinte, quando os malandros acharam que me passariam na conversa novamente. Mas a violência e a pressa em me tratar como marginal da parte do patrão somaram-se a lembrança da pressa com que esfaqueara o gordo bêbado naquela noite.
Outro dia o movimento tinha sido muito bom e todos os pães tinham saído, além dos mais que o patrão tinha trazido. Era mais de meia noite e eu na esquina do bazar Nair, com o carrinho já fechado e acorrentado a árvore, esperando pelo homem que não vinha, até que o outro garoto chegou trazendo sua caixa no ombro, pois desistira de esperar no ponto em que trabalhava. Mais um pouco esperamos, até que cedi a impaciência do amigo e fomos caminhando até em casa, duas quadras com as caixas nos ombros. Sendo que o patrão por lá também não estava, fomos para o bar da frente tomar um refrigerante e fazer hora. Quando vimos o Opala chegar meia hora mais tarde, fomos para casa e o homem pouco faltou nos bater com um rebenque. Estava deveras furioso por não ter nos encontrado nos pontos e disse que já tinha registrado ocorrência na polícia, queixando-se que tínhamos fugido com o dinheiro da féria. Acertamos as contas, que deu falta de féria, e fomos dormir um pouco mais temerosos do homem impetuoso em adulterar nossas contas e apressado em nos denunciar a polícia.
Wilson Amaral