O HOMEM DO PAVIO CURTO

Passaram-se mais ou menos duas semanas desde que eu saíra da casa de meu pai, em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, e chegara a Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, Região Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, há cento e dez quilômetros de distância, mais ou menos oitocentos metros acima do nível do mar. Ao chegar nesta cidade, logo fora apresentado a um jovem senhor atendente de um bar, e esse amigo tinha me ajudado a fazer uma nova carteira profissional, sendo que a que eu possuía achava-se ainda sem dar baixa da empresa que eu era cotista do Senai em São Leopoldo. Na noite chuvosa do mesmo dia em que cheguei a Caxias, fui acolhido na casa de um generoso desconhecido, que duas semanas depois passou por meu tutor, sendo que possuía um dos meus sobrenomes, então assinou como responsável para que eu fosse admitido no emprego de vendedor de cachorro quente, onde teria casa e comida que seria descontado do salário. Na casa desse novo tutor conheci Adilson, um garoto dois anos mais velho que eu, praticante de auterofilismo, que gostava bastante de tomar umas “pancas” e fumar maconha com sua turma no parque Cinqüentenário, no final da avenida Itália, no Bairro São Pelegrino. Com o Adilson e sua turma conheci de vista a maconha, sabendo identificar também seu odor. Além do mais, com eles perambulei a cidade de Caxias por duas semanas, conheci suas ruas largas, calçadas de hexaedros, bem como as duas gêmeas idênticas ruivas, as mais lindas que já vi, a Gladis e a Glacia, sendo que uma delas era a namorada do Adilson. Não recordo muito bem se foi através do tutor ou da turma do Adilson que tomei conhecimento do emprego que assumi ao final daquelas duas semanas.

Numa casa antiga de madeira, estilo italiano, no número cento e vinte e cinco da Avenida Itália, praticamente defronte a um posto de gasolina do subterrâneo da igreja São Pelegrino, é onde fui morar. Jamais esquecerei o número dessa casa, pois possuir uma CG 125 cilindradas era um dos meus sonhos, bem como de muitos outros adolescentes.

Nessa mesma casa morava o senhor Nerino, proprietário da empresa de cachorro quente, juntamente com sua esposa, dois filhos pequenos, o menino com uns oito anos e a menina com uns seis, além do pai do patrão e outros dois funcionários adultos, também vendedores de cachorro quente. A doméstica da casa, uma senhora de óculos redondos com armação de plástico, chegava cedo pela manhã e trazia sua menina de uns sete ou oito anos.

Os primeiros dias nessa casa foram boas novidades. Eu acordava geralmente as sete e trinta, tomava meu café e ia ao Parque Cinqüentenário para ver se encontrava o Adilson, sua namorada e a irmã dela. Sem encontra-los, “andejava” pela cidade, retornando mais tarde, então assistia ao programa TV Mulher, que era apresentado por Marília Gabriela, Ney Gonçalves Dias, Ala Szerman, Marta Suplicy e Clodovil Hernandez.. Após o almoço, dava outra passada rápida no Parque, retornando por volta de quatorze e trinta para arrumar o material para o carrinho de cachorro quente. Desde as quinze, até vinte e três e trinta, um pouco mais, um pouco menos, trabalhava no carrinho de cachorro quente em frente ao Bazar Nair, na esquina da Avenida Júlio de Castilhos, com Coronel Flores, atendendo gente muito simpática e alguns um pouco menos carismáticos. Ao lado, na Júlio, tinha a Padaria América.

Ao final da noite, após fechado o carrinho e, às vezes, tendo esperado um bom bocado, o patrão aparecia com seu Opalão Comodoro azul, teto de vinil, ano 1974, e me pegava juntamente com os apetrechos, levando para casa após dar uma volta pelo centro da cidade, pegando os outros vendedores, indo à padaria encomendar o pão para o dia seguinte e passando num bar, onde pedia para a mulher, que tinha dezoito anos, para comprar-lhe cigarros enquanto ele permanecia no carro.

Certa noite ele deu um trinta e oito cano curto para ela defender-se no trajeto do carro ao bar, distância de uns dez metros. Após instruir como fazer para atirar caso fosse atacada, ele a liberou para que fosse ao bar. A frete do bar estava um homem muito gordo, tão alcoolizado que mal conseguia manter-se em pé. Ao ver a mulher que se aproximava, ele atacou-a, agarrando-a e tentando beijá-la. Com o revolver na mão, ela apenas conseguiu gritar, ficando assim paralisada enquanto o marido correu em seu socorro, cravando uma faca prateada de dois fios na enorme barriga do bêbado, dando outras duas estocadas em seguida, mas sem conseguir que penetrasse mais do que a ponta. O homem ficou por ali caído, enquanto o patrão voltou para o carro aos berros com a mulher e saiu dirigindo em alta velocidade.

No outro dia se soube que o tal gordo tratava-se de alguém conhecido, marido de uma portadora de deficiência que vivia de vendas numa banca de calçada. Ouvi que tinham duas filhas bem pequenas e que não era de se passar com as mulheres, executando esse caso, que deu-se por estar muito bêbado.

Quanto ao patrão, após muito repreende-lo, seu pai lhe ordenou que desaparecesse, retornando somente após passadas as vinte e quatro horas que caracterizam o flagrante delito. Quanto a um outro dos vendedores, que estava no carro, apenas se calou. Decerto já conhecia o gênio do patrão. A mulher foi até em casa aos prantos, ouvindo as reprimendas do marido. Quanto a mim, que assistira a tudo com apenas quinze anos de idade, fiquei perplexo, bem chocado por vê-lo cravando sem hesitação a faca na barriga do bêbado, em quem podia ter dado uma ou duas rasteiras e já estaria imobilizado. Quanta pressa em ferir demonstrara esse homem magro de cabelos e bigode vermelhos, com as pontas do bigode torcidas, a quem a princípio eu me sentia devedor, por ter me dado trabalho e abrigo, mesmo que me causasse certo receio seu olhar sanhudo e a maneira dura de tratar. Por um pouco ele esteve distante e, passados dois dias sem dar notícias, retornou trazendo no Opala outro menino de quinze anos para trabalhar.

Wilson Amaral

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 26/02/2007
Reeditado em 26/02/2007
Código do texto: T393726