A FÁBRICA DE SAPATOS
Há pouco eu tinha passado por grande apuro na porta de um salão azul de madeira, junto à rodovia federal, em Picada Café, quando oito homens armados de cassetetes chegaram numa Kombi para me expulsar do lugar por solicitação dos desconfiados alemães do lugar. Fui salvo desse equívoco por um senhor da comunidade, o qual eu conhecera num belvedere uns seis quilômetros antes de chegar a comunidade, onde ele e uma turma simpática de descendentes de alemães da comunidade de Picada Café churrasqueavam e bebiam descontraídos. Esse senhor tinha me dado carona do belvedere à Picada em seu fusquinha café-com-leite e permanecia comigo no salão azul como se fosse meu tutor.
No belvedere, por favor dos novos amigos, eu tinha descansado de três quartos do dia caminhando, desde que despertara no Município de Dois Irmãos, onde tinha dormido numa construção coberto por papelão. Enquanto saciei a fome do dia inteiro soube de algumas coisas sobre os novos amigos, especialmente sobre um que me disse que se chamava Rubelo e falou de sua grande fábrica de calçados na localidade de Picada Café. Coincidentemente, eu era cortador de calçados, profissional, apesar da pouca idade, além de possuir intimidade com todo o processo de produção de calçados, pois sempre estivemos envolvidos com essa atividade na infância e desde os dez anos de idade ajudava meu pai no corte a mão, sendo que em nossas disputas muitas vezes eu o vencia.
Era a mim que o senhor Bitello chamava para trabalhar de cortador em sua fabriqueta quando tinha muitas encomendas e muitas vezes fui o cortador oficial efetivo, dando conta de toda a produção, além de ajudar na montagem e acabamento, deixando os homens grandes admirados.
O Rubelo me disse que me empregaria em sua empresa, bastando estar lá na segunda feira às sete da manhã, fazer um teste e começar a trabalhar. Fiquei empolgado e já fazendo planos de como ficaria em Picada Café trabalhando na Fábrica de Calçados Rubelo.
Algum tempo depois do susto dos homens na Kombi, o Rubelo apareceu em uma Turuna vermelha e ficou por um pouco falando comigo e o senhor do fusca. Depois se foi com a Turuna dizendo que ia retornar mais a noite. O senhor dos fusquinha saiu pouco depois dizendo que retornaria, passou um tempo e ele e não retornou. Tinha dado uma chuva e eu achei de dar uma caminhada pela margem encharcada da rodovia em direção ao norte para ver se achava a fábrica de calçados, conforme o Rubelo tinha me explicado a localização. Seria melhor saber onde era com antecedência para não ocorrer atraso no dia seguinte e perder a oportunidade. Depois retornei para o salão, mas meus amigos não estavam lá. Como escurecia, fiquei meio disperso identificando um lugar onde pudesse passar a noite. Encontrei há certa distância do salão, em direção ao norte, uma escolinha do tipo “Brizolinha”, que ficava ao comprido do terreno tendo uma área no sentido longitudinal, no lado oposto ao sul, de onde sopram os ventos dos temporais.
Tão logo anoiteceu, posto que era verão e a noite cai bem mais tarde, fui para a área da escola onde deitei num canto sobre o piso e me preparei para enfrentar a noite sem nem mesmo a coberta de papelão. Por longo tempo durante a noite o vento rugiu com força deitando as árvores enquanto a chuva caia a cântaros. Deitado e encolhido, permaneci imóvel, mal respirando, olhando estático para um vulto que se descobria por detrás de um arbusto que se curvava ao vento logo a minha frente. Sem sombra de dúvida, a aparência tinha chifres retos e olhos vermelhos como tochas.
Vencido pelo cansaço da caminhada de sábado, desde São Leopoldo, até Dois Irmãos, onde cheguei após a meia-noite, somada a caminhada de três quartos do dia de domingo, além da ida até a fábrica de calçados, bem distante do salão azul, apesar do vulto assustador, logo me rendi ao sono e acordei na manhã da segunda feira a tempo de chegar na fábrica antes de apitar as sete horas.
Na frente da fábrica, na encosta de um morro, num nível acima da rodovia, já na subida da serra em direção ao norte, aguardei apreensivo a entrada dos funcionários para depois me encaminhar a recepção e pedir para falar com o senhor Rubelo. A moça assentada junto à escrivaninha me disse que ele viajara na sexta feira para São Paulo e somente retornaria no final da semana. Falei-lhe que não podia ser, pois tinha falado com ele no domingo e ele mesmo tinha me dito que fosse lá naquele horário, pois me daria uma vaga de trabalho na empresa. Ela reiterou que ele viajara na Sexta feira e acrescentou que não havia vaga em aberto no momento.
Wilson Amaral