OS HOMENS DA KOMBI BRANCA
Após passar a noite numa construção, no Município de Dois Irmãos, onde dormi coberto por um papelão que encontrei por ali no escuro, segui subindo a Serra em direção ao Norte. Na manhã daquele domingo ensolarado de novembro deixei pelo caminho os lugarejos de Morro Reuter e Picada São Paulo, contornando lá pelo meio da tarde uma curva para direita que deixa a esquerda um miradouro num declive rente a uma montanha de onde já se avista o lugarejo de Picada Café.
No miradouro, onde acha-se ainda hoje uma fonte de água potável, observei vários carros estacionados, entre os quais o caminhão do leiteiro, que tinha me acompanhado desde cedo entrando e saindo das propriedades onde pegava os tarros cheios de leite, deixando os vazios para recolher o leite a tarde. Por três vezes lhe tinha pedido carona e ele, talvez, por causa de suas entradas e saídas, não quisera parar.
Passava eu então de largo, pelo outro lado da rodovia, não querendo ser notado pelo bando de homens que falavam com alarido. Torci para que o leiteiro não me visse agora passando de a pé, derrotado por não ter ainda conseguido uma carona e pela fome que há pouco amainara tomando uns bons goles de água fresca na fonte do miradouro pouco antes de cruzar com pressa a estrada sem que ninguém me notasse.
Mas ouvi-o chamar-me de guri desde o outro lado da estrada enquanto eu passava acanhado, com o rosto quase virado para o lado oposto. Tremi ao pensar que teria que encarar todos aqueles homens e dar-lhes explicação do porque vagava tão distante. Quando chamou a segunda vez já não pude fazer de conta que não ouvira, então meneei a cabeça para aquele lado. Ele acenou ordenando que cruza-se a rodovia. Muito tímido, fui até o outro lado e cheguei-me ao grupo que me observava com interesses. Cumprimentei com um “opa”, dispondo-me a responder o que iriam me perguntar. Ele mandou que um dos amigos me desse um bom pedaço de churrasco dentro de um pequeno pão francês. Fiquei saboreando a carne com pão por ali enquanto me inquiriam de onde vinha e para onde ia. Contei que faltava um mês para completar quinze anos e tinha fugido após a meia tarde do dia anterior da casa de meu pai em São Leopoldo, que eles sabiam que ficava uns quarenta quilômetros em direção aos Sul. Alguém me ofereceu um caneco de chopp tirado de uma pipa muito gelada que estava por ali. Saboreei o chopp gelado e comi muita carne com pão francês, enquanto fiz amizade com a turma de descendentes de alemães moradores de Picada Café – meus primeiros amigos grandes.
Mais tarde desceram a serra em comboio até Picada Café. Eu fui de carona num fusquinha tipo 1968 guiado por um senhor mais velho. No lugarejo cada um foi para seu lado, combinando de se encontrarem mais tarde numa casa de madeira pintada de azul na beira da rodovia, para onde fui com o senhor do fusca que pôs-se de meu tutor. Nessa casa tinha um salão enorme, por onde se transitava até chegar no balcão. Fiz o trajeto até o balcão seguido por inúmeros olhares curiosos dos alemães que conversavam escorados junto as paredes. No balcão uma “alemoa” me aguardou apreensiva. Pedi uma cerveja que o senhor me pedira para pegar-lhe e voltei desconfiado por causa do tanto que me olhavam, e fiz mesmo trajeto que antes cumprira seguido por todos aqueles olhares curiosos. Nos degraus da grande porta me sentei junto ao senhor do fusquinha. Todos me olhavam atentos enquanto observei uma Kombi branca trazendo oito homens. Ao descerem da Kombi eles traziam paus e seguiram na minha direção falando um dialeto alemão que eu não compreendia. O senhor do fusca levantou-se e pôs-se de meu guardião. Um dos homens falou muito energicamente com ele, que lhe respondeu exaltado falando na mesma linguagem. Não entendi absolutamente nada do que disseram, mas quando o senhor do fusquinha assentou-se novamente a Kombi já tinha voltado pelo mesmo caminho que viera e com ela tinha voltado os oito homens armados de cassetetes, deixando os freqüentadores do bar discutindo e olhando na minha direção.
Perguntei ao senhor do fusca o que tinha se passado. Respondeu que as pessoas por ali não perdiam o costume de julgar os outros pela cor, sendo que sou de cor parda, aqueles oito homens tinham sido chamados para me expulsar do local, apesar de eu estar junto com ele.
Wilson Amaral