GUIDHA
CAPÍTULO I
Em cada cômodo, tudo como eu havia deixado. As camas, os lençóis, as colchas, as imagens de santos. E o anjo de gesso, ao lado do meu boneco azul, à beira da minha cama. O quarto de meus irmãos, os colchões ainda forradas de chitão colorido, os armários abertos... A cristaleira... E o pote de porcelana. O mesmo que abrigava as guloseimas feitas por minha mãe... O cheiro da infância invadiu o meu espaço, que agora parecia quase um santuário... Lembrei-me de meu irmão, e sua presença terna acariciava-me o rosto...
Nas paredes, a história estampada em sorrisos e molduras de um bronze envelhecido. O olhar de meu pai. O abraço de meus irmãos. Toda a genealogia ali, abraçada a um tempo que, felizmente, não se dissolveu... É possível guardar o tempo. E isso só pude descobrir depois de fechar aquela porta. Girei a chave. Não quis olhar para trás. Naquele momento, isso não era mais necessário. “Está feito” – pensei. Enfim havia me libertado de um sentimento que insistia em me separar daquilo que guardara como o testamento da minha existência (o tempo). O tempo que escolhera como único – e meu...
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1980
A década de 80 foi marcada por intensa agitação. O atentado ao Rio Centro, a morte do primeiro presidente da República eleito pelo voto direto – Tancredo Neves... O atentado contra o Papa João Paulo II, a eleição de Ronald Reagan nos Estados Unidos... O surgimento da música eletrônica, o Rock in Rio... Todos ou muitos desses acontecimentos tiveram repercussão mundial...
E eu, em Salvador, na Bahia, pensava na repercussão dos acontecimentos em minha existência... Meus momentos de tristeza levavam-me para a praia e, como uma náufraga, escrevia para ele, meu amor, vir me resgatar, salvar-me daquele vazio em que se tinha transformado minha vida...
Passava pela barraca de água de coco e ouvia algo que se tornaria um hit qualquer daquele momento: o Axé Music... Mas não havia acontecimento político, social ou musical que acalmasse meu coração. Todas as manhãs, lá estava eu, depositando naquele mar que um dia trouxera meu pai, a garrafinha com um bilhete ao meu amor... Queria que as ondas brasileiras a levassem para as ondas lusitanas.
Eram poesias escritas com a pena da alma... Um pedido de socorro. Precisava de alguém que me salvasse daquele mundo que não escolhera para mim. Nem a beleza desta terra, ou a gente acolhedora, ou ainda a promessa de realizações poderia me fazer esquecer de um passado mal explicado, mal acabado...
Sentia-me só, mas não era uma solidão qualquer, abstrata, era como se dentro de mim houvesse um enorme vazio que há anos procurava preencher... E doía, era uma dor aguda que causava choro, angústia,vontade de fechar os olhos e tentar sentir os cheiros, o toque e o calor do único beijo que trocáramos.
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ONDE FOI QUE EU GUARDEI O LIVRO DE (nossa) HISTÓRIA?
Por onde perdi a História do meu País?
Onde estão os heróis do Mucaba?
Em que deserto do inconsciente
escondi a história da Welwitchia?
Os nomes da beleza da nossa fauna...
a riqueza de nossa flora...
os dialetos...
Em que labirinto da memória se perderam
os desbravadores portugueses
que colonizaram Angola?
A traça comeu a maior parte das folhas
O mofo tirou a cor...
desbotou as fotos
e eu não consigo decifrar
mas sei que existe uma História Grande
a ser contada...
A história de muitas vidas
e a história de minha vida...
Preciso encontrar esse livro...
preciso da ajuda de (Carl) Jung
para adentrar nessa floresta
em que se transformou minha memória...
Preciso encontrar esse livro...
o livro da NOSSA história,
o livro da minha história
e folheá-lo, uma a uma
cada página e aprender tudo de novo
Reconstruir
tal qual os que ficaram
estão fazendo agora
Tal qual as negras guerreiras
enfrentaram indefesas
os gritos de horror dos seus
amados marido e filhos
a cada rajada, a cada mina
a cada perda...
Tal qual elas, preciso enfrentar
essa resistência
esse "front" da minha memória...
Por que ela não quer que eu lembre?
Do que quer me proteger?
Preservar, talvez?
Mas a hora agora é de reconstrução...
Me ajuda a achar este livro, meu amor... (Guidha)
1974
“...a vida é longa mas... tão pequena
pra grandeza de um só beijo...”
(Teresa Carneiro
Eu estava com 14 anos...
Com todos os sonhos pertinentes a esta idade, encantei-me por um rapaz que na época tinha por volta de 18 anos... Entre olhares e desejos, nada houve de concreto entre nós, a não ser um beijo... Mas a ternura que envolveu este beijo, o cuidado com que me tratou, fez com que fosse selado naquele momento um amor verdadeiro. Tão verdadeiro que duraria por toda minha vida.
Chegou a haver um namoro entre nós? Talvez não com todos os ingredientes de um namoro convencional. Porém, houvera um beijo. E a promessa de que jamais nos separaríamos.
Mas, alguns dias depois, tive de viajar a Lisboa. Era uma viagem rápida, para fazer alguns exames médicos. Não consegui me despedir de meu amado. Por um momento, meu coração se tornou pequeno, como se a dor daquela separação, mesmo que por pouco tempo, nunca mais desaparecesse.
E, enquanto, seguia para a capital de meu país, repetia a mim mesma:
_ Não te preocupes, Guidha, daqui a um mês estarás de volta.
Um mês depois de minha viagem, recebi um telefonema. Do outro lado da linha, minha mãe:
_ A guerra estourou por cá. Não voltes por enquanto, até que tudo se estabeleça.
_ E se a guerra se demorar, minha mãe?
_ Isso não irá acontecer. Mas caso aconteça, nós iremos ter contigo. Peço-te que apenas aguarde...
E com esse pedido de minha mãe, eu, que tivera ido para ficar apenas um mês fora de minha cidade, nunca mais voltei.
Fiquei em casa de meu tio à espera de notícias e de, quem sabe, do término daquele pesadelo.
E o meu namorado? Como revê-lo? Como dizer a ele que eu não o abandonara? Como esclarecer que eu não estava magoada por ele ter me feito ciúme com uma das “raparigas” do vilarejo? Como? Eu o reencontraria um dia? Eram tantos questionamentos e angústias...
_ Mãe, espere, não posso ficar por cá. Antes de tudo, preciso me despedir de alguém... – pensei em dizer.
_ Despedir-se de quem, minha filha? – perguntaria minha mãe, acrescentando: não é hora de despedidas. Todos os seus vão te encontrar em breve aí em casa de tua avó.
Todos os meus? Saberia minha mãe que todos os meus não estariam completos? Mal sabia ela o que se passava em meu coração... E, com a notícia de que deveria esperar, passei a sonhar com todos, especialmente com “aquele” que realmente era pertencente ao meu coração.
Passei, então, um ano de minha vida, longe de meus pais, de meus irmãos... e do meu primeiro amor!
(cONTINUA...)
ESSE PRIMEIRO CAPÍTULO DEDICO À MINHA AMIGA GUIDHA CAPELO...
RESTANTE, TALVEZ EU ESCREVA, TALVEZ NÃO. Mas deixo aqui registrado meu momento com o momento em que ela me dedicou sua história. Guidha. Use minhas palavras como quiser.
(quem sabe, eu não continue a escrever o que ficou em aberto?)
Beijo grande.
Adriana Luz