CENAS DE "CASAMENTOS" - Ofereço a Maria Olimpia Alves de Melo

16 de setembro de 1986. No centro, o morto. À cabeceira, a viúva, mãe. À direita do caixão, Ada. Ana, à esquerda. Alguém comenta a queda da estátua de Lênin. Os mais próximos, como em todos os velórios, relembram as virtudes pessoais (no presente caso, também as revolucionárias) do falecido ali, e alheio a tudo. Ao fundo, o futuro cunhado de Ana conta piadas, sem dúvida, divertidas. As irmãs cruzam olhares, por sobre o peito do morto. Mais tarde, na hora do enterro, as palavras finais do camarada e ateu convicto: “Vá em paz, companheiro”.

Na casa reminiscente (e remanescente) Ana e a mãe à mesa, no horário politicamente correto de todos os dias, diante do cardápio, selecionado arco-íris: cenoura tomate sem pele alface pitada de sal algum azeite gotas de limão duas colheres de arroz três colheres de feijão pequeno filé grelhado de frango fatia pequena de melão dois silêncios corretamente vestidos. Às vezes, no domingo, alguma variação no teor do cardápio.

Naquela tarde a aula foi diferente, não porque a professora sentou-se na última carteira da fileira ao lado da janela. O aluno da sétima série fez a chamada e anunciou o tema do dia:

O SENTIDO DA VIDA.

A classe dividiu-se nos subgrupos de sempre, em discussões profundas, contundentes. O grupo da professora brilhou na exposição dos painéis, brilhou tanto que o trabalho mereceu conceito A. Quanto à professora, resignou-se a um D, por falta de participação.

Dulce tinha dois anos quando sua tia Ana sofreu mais uma das tantas e tantas fraturas ao longo da vida, sem dúvida a primeira perante os olhinhos de Dulce. Fratura na perna esquerda, de tíbia e perônio, de repente uma perna dobrada ao meio, como que vazia de tudo. Meses e meses de gesso, muletas, andador, bengala... Quando, quase um ano depois, ensaiou seu passo reinicial com o pé esquerdo, Dulce, a pequenina, disse: “Dá a mão, titia.” E assim, guiada por ela, saíram as duas, Ana e Dulce, de mãos dadas, para o reencontro com o mundo lá fora.

Novembro de 1998.Ana cantava Lupicínio Rodrigues. Rubem, na última fileira da plateia, sabia que “Nervos de Aço” não estava sendo cantada para ele. Certamente, Ana não pensava em Rubem, nem mesmo seria capaz de enxergá-lo ali, no fundo, ouvindo-a a cantar “Nervos de Aço” para Daniel, que não estava ali, que não poderia estar ali. Cantava para Daniel, mas não pensava em nada nem em ninguém. No palco, a sós, um violão “Nervos de Aço” sua voz.

Maurício também entre os ouvintes, mas, ao contrário de Rubem, numa das fileiras próximas do palco. Também não podia vê-lo enquanto cantava “Flor Amorosa”, a preferida dele: ninguém enxerga nada quando se encontra do lado de lá da plateia. Não via Maurício, todavia, só a certeza de sabê-lo ali, seu amigo fiel, em amizade sobrevivida a tudo, ouvindo-a a cantar “Flor Amorosa”, modinha dos tempos de inocência, a preenchia com toda a infância e a juventude deles. Maurício e Ana, que permanecem um dentro do outro rios profundos, há muito sem pedras pontiagudas nos respectivos leitos.

A mãe estudou até o 3° ano primário, como se dizia naquela época. Durante toda a vida viveu para as filhas, o marido, a casa; nunca leu um livro, só consultou um ou outro de receitas culinárias. Em verdade, leu o livro de poesias de Ana, não pela poesia, só porque era de Ana. Após três anos na cadeira de rodas, três anos alijada de todas as tarefas próprias, pediu ao seu Anjo algo em troca do mundo perdido: nesta noite, no meio de um sonho, nasceu-lhe o primeiro, ultrarromântico versinho que, a partir da alvorada do novo dia, começou e continua a se multiplicar em rimas infantis e príncipes encantados com beijos tardios, mas ainda a tempo.

Ana observa as mãos de Cecília a prepararem uma torta: Inicialmente elas, mãos, colhem no armário os múltiplos utensílios de diferentes tamanhos e espessuras nos quais será colocado, individualmente, cada ingrediente específico: sal, açúcar, fermento, óleo, palmito, farinha de trigo, os tomates escaldados em cubinhos sem pele, as ervilhas, os ovos... Depois misturam tudo, com critério e amor, enquanto os ouvidos de Cecília ouvem, com atenção, os fragmentos das múltiplas histórias de Ana, todas pretéritas – a mãe, no quarto, também conversa por dentro de si mesma, com os antigos. A torta começa a recender, as mãos de Cecília dispõem a mesa para o almoço. A casa inteira recende a som, movimento, alma, o mundo lá fora, quando Cecília é presença nela.

As tantas pessoas em volta pareciam não ouvir a Poesia gritando de dor, dor funda, do mais fundo das entranhas, dor aguda, de pânico, de agonia. Sobre as faces da Poesia, um suor gelado. Alguém via? A Poesia com a garganta fechada, sem voz, sem respiração, o sacerdote na sala ao lado, a serviço de outro doente terminal. A amiga disse a Ana: “Vamos embora”. No bar, diante das taças púrpura, oraram por uma morte tranquila para a Poesia e por sua Ressurreição.

Fernando reaparece, após uma década. Em 1984, ele e Ana estudavam Filosofia na PUC. Ele foi até o fim, ela não: abandonou o curso para cuidar de um amigo, o Ricardo (não havia outra pessoa que o pudesse fazer) de Ricardo que começou a apresentar todos os sintomas de uma das Pestes do nosso tempo. Não tinha a doença, só a síndrome dela, mas, até que fosse curada tal síndrome, o navio filosófico teve tempo para naufragar por completo. Nome do iceberg? Ana, é claro.

Fernando e Ana decidiram fazer um tour, como nos velhos tempos: Dois belíssimos bifes com fritas e cervejas preliminares no Sujinho; bar na Vila Madalena que, época deles, ainda não era o point de agora; por fim, boteco na Pompéia, para as saideiras.

Falou-se dos naufrágios e das sobrevivências. Depois das múltiplas cervejas (ainda não havia sido instituída a Lei Seca) os dedos de ambos quedaram-se a secar as lágrimas um do outro. Foi demasiadamente bom o reencontro.

Antigo apaixonado vem telefonando para a mãe de Ana. Às vezes, se desentendem. Dia desses, após uma das brigas telefônicas, ela relatou a filha a seguinte fala dele: “Por que você é tão grosseira comigo? Sua mãe é sempre tão delicada!”

Ada mal tem tempo para a Dulce e o marido, quanto mais para a mãe e a irmã. Quando esta telefona, vem logo a pergunta: “Aconteceu alguma coisa?” Ana nunca sabe como nem o quê responder, mas elas se veem com muita frequência no Natal, na Páscoa, no Dia das Mães, no Dia das Crianças. Durante a Reforma na casa, que durou quatro meses, a mãe ficou três dias na casa da sua única outra filha, da sua verdadeira Bem-Amada, pela segunda vez, em 20 anos. Quem sempre desconheceu quem?

Depois dos três anos na cadeira de rodas, paira sempre em torno de tudo a dependência emocional dela, infinitamente pior do que a dependência física. Os joelhos desgastados de Ana (o direito pior do que o esquerdo), dívidas, úlcera, nódulos, medo enorme de cair, de quebrar outros ossos, pouquíssimo pecúlio para táxi; há um ano, aposentadorias e os votos definitivos de clausura, só atenuados pelos alunos, nas aulas particulares. Cecília, enquanto lhe é possível, a acompanha ao supermercado, ao pagamento das contas, a uns e outros tantos médicos... a farmácia. Vida demasiada para evocar... doer... Vida sem anestesia.” Ana: lembra-te dos sem-trabalho, dos sem-teto, dos sem-saúde, dos sem-família e jamais te esqueças de tua mãe. “

De vez em quando uma das três mosqueteiras amigas, a Dora (as outras são a Milena e a Tamara) a retira um pouco de casa. Nestes anos, até o ano de 2008, não mais do que três vezes no espaço de doze luas completas, Rubem a tem vindo visitar e eles “ficam”. Daniel... bem... de Daniel só se deve dizer que se falam, trocam e-mails, Ana vai aos lançamentos de seus livros, ele foi ao lançamento do livro dela no já referido ano de 2008, como se tudo fosse normal. Como se, pois ainda hoje Ana estremece quando toca o telefone, sem contar que o tempo dos relógios jamais reconquistará, no seu reino, a coroa de Imperador.

Em maio de 2009 reaparece, pela internet, um amigo de adolescência que Ana não via há décadas e que, por necessidade de permanecer incógnito, atribuiu a si mesmo o nome de Amir. Começaram a escrever, via e-mail, um livro comum, livro que, ora por intermédio da escrita dele, ora da dela, volta e meia despencava em ribanceiras, caía em lagos fundos, perdia-se em florestas densas e aí, quê luta para resgatá-lo, a este livro escrito a duas mãos! Uma das razões para terem cessado a escrita dele, do livro comum, foram os impasses existenciais e amorosos do Amir; a outra razão e a principal, da qual Amir não ficou sabendo, foi o fato de Daniel (que apesar de todos os mundos que o separam de Ana consegue ainda sabê-la por dentro dos pensamentos dela, como se ele continuasse a ser o alterego de sempre, nela), ter sentido a presença do Amir e o perigo que, de algum modo, este representava. Ana, para sua desdita e deleite, sabe que nada nem ninguém tem o poder real de ameaçar, para além de alguns poucos dias ou semanas (quando muito e isto é tempo demasiado), o reinado de Daniel.

Em setembro de 2009 Ana conheceu Andréia, uma apaixonada perene por Daniel e os universos de ambas se viram totalmente convulsionados, assim como o universo de Daniel. Cenários de 20 anos atrás voltaram bruscamente, para todos. Ana não sabia que Andréia havia feito parte daqueles cenários e Andréia muito menos que Ana também o tivesse feito. Ainda não ultrapassaram este presente ciclo de Dor, de Dor, e de Dor e não conseguem tampouco vislumbrar a possibilidade de um tempo em que o venham a superar, a este referido ciclo. Queira Deus que estejam enganadas, desde o âmago de cada uma.

Quanto a Rubem, companheiro de Ana por 18 anos, poderiam até tentar conviver como amigos e, eventualmente, “ficar” mas, para Ana não pode mais haver corpo, nem alma que se ponham e se interponham entre ela e Daniel, mesmo entre os corpos e almas(???) para sempre separados de ambos; simplesmente não pode mais haver.

Como confrontos poucos são bobagem, neste ano de 2011, também tiveram que se rever, face a face, Ana e Márcia, ainda uma outra de Daniel, Márcia, o rosto-sombra de Ana, há uma vida. Impossível dizer das consequências desse reencontro.

O pior de tudo, porém, o pior de tudo mesmo, é que Cecília precisará partir, no ano de 2012. Cecília, anjo da guarda encarnado, precisará partir e aí, Ana e o ser que a trouxe à luz seguirão sós, seguirão sós, e a sós. Que Deus lhe dê forças para cuidar dele, do ser que a deu à luz, forças para cuidar dela própria, Ana, forças também para calar de si os gritos da quase totalmente absoluta solidão; para suprir da outra a sua também quase absoluta solidão. Às vezes Ana ousa imaginar algo para além desse destino, ainda um pouco de sua música, ainda um pouco de sua poesia, ainda algo de seus passos pelo mundo. Só às vezes, mas, afinal, tal jogo de imaginação é perfeitamente válido e não constitui, que se saiba, crime nenhum.

Ana olha o papel em branco e se pergunta por sua poesia. Ana olha o microfone e se pergunta pela sua voz. Ana olha o mar virtual, as montanhas virtuais e se pergunta pelos próprios pés. Ana se olha no espelho e se pergunta por seu próprio coração. Ana olha os olhos adormecidos daquela que a deu à luz e lhe pede, todos os dias, um silencioso perdão, pelo silêncio, pelos próprios fracassos que, por menos que ela, Ana, o queira, pairam sempre no ar de ambas. Ana se queda em silêncio diante da inocência de cada um desses todos seres cuja sorte lhe tem cabido partilhar ao longo desta presente vida e deste presente mundo. Ana se pede perdão. Ana olha todos os dias pela janela e vê a sua paineira, símbolo também do seu amor imortal em que Daniel não crê, e respira. Ana respira. Ainda respira.

Republicação na manhã de 31 de março de 2012.