A Sobrevivência de Um Incapaz

Acordei pensando em uma coisa. Estive avaliando meu desempenho durante toda a minha vida até aqui. Recordando meus fracassos na escola, minhas tentativas frustradas de executar bem um instrumento e meu eterno papel de paspalho em muitas situações. Notadamente tendo um olhar especial para a minha sempre e constante falta de aptidão para a prática de qualquer esporte, até mesmo o xadrez (que não exige maiores habilidades físicas) no qual nunca consegui avançar além do nível de um jogador elementar, mas seria mais apropriado designar-me com um Rating denominado “sofrível”. Sobretudo destaquei-me pela minha completa incompetência para esportes que exigissem algum movimento físico. Completa inabilidade com bola, tacos de bilhar, cartas de baralho etc. E é claro aquela, que talvez, tenha sido a pior de todas as minhas piores frustrações, a falta de tato no trato com as mulheres. Lógico que ainda tenho muito desta falha, mas com certeza ela foi superlativa na adolescência e na juventude, quando me parecia que todas as meninas quando riam, se eu estava em um raio de pelo menos uns cinco metros (ou até mais), com certeza riam de mim. Isso eu “achava” naquela época, hoje tenho certeza que estavam rindo de mim mesmo. Matemáticas, idiomas, geografia, história, sempre fui fraco. Português? (não se enganem: se não aparecerem aqui erros de ortografia foi graças ao corretor ortográfico do Word: para sempre seja louvado). Em criança, pasmem, e não pensem que eu minto, fui um garoto que nunca soube fazer um papagaio (papagaio pipa, não ave). Mas tive uma maritaca, a qual (e nada me tira isso da cabeça) eu matei. Sim, eu que hoje sou um defensor de todos os animais (nós entre eles), pois então, nada me faz desacreditar que fui o responsável pela morte da minha maritaca. Como? Inocentemente. Ela assobiava e batia as asas quando me via mascando chicletes. Eu, com pena do bicho, e talvez sugestionado por alguma superstição incutida em mim na mais tenra infância e que ditava que a vontade comer algo pode levar até a morte, ia recortando fragmentos quase microscópicos daquela massa de mascar e os dava para o pobre animal. Não houve autópsia. Mas acho que com o tempo algum transtorno digestivo fez com que o pequeno animal ficasse doente tivesse algumas poucas crises convulsas por uma noite e, se me permitem a expressão, acordasse morto. Pelo menos teve uma morte marcante, pois sucumbiu em 1977, no mesmo ano em que o mundo perdia Elvis Presley. Se isso for computável para meus fracassos, já ouvi que tem maritacas (não só papagaios, estes aves, não pipas) que falam. Bem, a minha nunca falou. Gritava muito, mas, definitivamente, não tinha uma voz que pudesse rivalizar com o seu famoso companheiro de ano-óbito. Mas voltando um pouco no tempo, eu não só não sabia confeccionar uma pipa, mas fazê-la levantar vôo, eu não me lembro de jamais haver conseguido. Guardo na memória a sensação de segurar a linha com pressão, estirada, e lá no alto, no céu azul, um pontinho colorido sobrevoando todos nós e todas as coisas. Mas para sentir isso eu tinha que passar por uma espécie de humilhação e pedir para segurar um pouco o carretel ou a carretilha depois que algum amigo muito mais hábil já colocara o papagaio planando nas alturas. No futebol tenho um recorde: o único brasileiro que jamais fez um gol. Nem em uma única pelada de rua, daquelas que colocávamos duas pedras ou dois chinelos para formar a trave e jogávamos num campo de paralelepípedos, saudosos paralelepípedos! Meu irmão era goleiro, jogava para um time da cidade, eu não tinha autoridade nem para citar a palavra futebol perto dele. Não falo completamente a verdade sobre algumas de minhas conquistas, pois algo ninguém pode nunca tirar de mim, nisso fui melhor que meu irmão mais velho e que minha irmã mais nova: eu fui o filho da mãe que mais se machucou. Era tombo de bicicleta, cortar pé em caco de vidro, e levar ponto sem a anestesia pegar. Uma agulhada, um grito, um derramamento de mercúrio, um alívio. Tive a incrível capacidade de ser atropelado por uma bicicleta em frente a minha casa jogando bola. Uma bicicleta, destas muito magrelas, bicicleta peso pena, praticamente somente tocou em minhas costas, e eu, peso “fio-de-cabelo”, cai com a testa na rua calçada com alguns, nada saudosos, paralelepípedos. Sobrevivi. Meu pai pegou o carro (não antes de tomar um cafezinho: testemunhas podem confirmar), e minha mãe embrulhou minha cabeça em uma toalha branca que chegou vermelha no Hospital Regional. Eu gritava a todo pulmão num choro terrível entremeado com afirmativas de que eu ia morrer, enquanto minha pobre mãe afirmava que Nossa Senhora não ia deixar. Eu, menino, desde então, já fugitivo do catecismo, não me fiava muito nisso, Mas as mães conseguem coisas sobrenaturais mesmo que elas não existam. O fato é que não morri. E apesar de vários pontos e um galo dolorido eu tive uns dias de liberdade longe da escola, e, já fora do perigo iminente da morte, pude pensar: bendito paralelepípedo! Sim, porque a bicicleta e o seu condutor foram apenas os instrumentos para me atirar contra o calçamento da rua. Há muito já os perdoei. As histórias são muitas, que passam por gases enganosos que sem nos darmos conta eles se transformam, como por mágica, em algo, meio líquido, meio sólido, que começa a escorrer pernas abaixo, em momentos mais do que inoportunos (geralmente com meninas por perto). Professoras que encontraram lêndeas na minha cabeça e em uma demonstração invejável de psicologia da educação à moda militar gritaram: “você não lava a cabeça, moleque!” como a lista é infindável eu prometo para quem gostou de ler, uma, ou mais de uma continuação de minhas façanhas de menino - Quixote. Há muitas coisas para contar, como as penúrias que vivi numa época que acompanhava um primo que sempre se dava muito bem com as meninas, catava todas, era bonitão e tinha o dom da conversa com o sexo oposto, enquanto eu ficava apenas olhando e me lamentando. Ou sobre a primeira vez que beijei uma garota e de como tive ânsia pra vomitar, o que fez com que eu passasse alguns meses em um difícil dilema imaginando se eu era ou não gay (e eu ainda nem conhecia Hamlet). De como levei de uma vizinha, menina também, um soco no nariz o qual me arrancou sangue, que estancou logo, mas de como também continuei vertendo por ela uma admiração por sentir que ela era uma das minhas primeiras paixões. Por hora basta dizer que o que me motivou escrever estas primeiras lembranças de minhas manias de meter os pés pelas mãos, foi o que já comentei no início do texto. Que hoje eu acordei pensando em uma coisa. Este pensamento que me intrigou se resume nisso: como foi possível que ao concorrer com milhões de outros espermatozóides em uma corrida alucinada, frenética, sem pausa ou trégua, aquele que viria a se transformar em mim, conseguiu vencer e chegar antes de tantos outros que poderiam ter sido, quem sabe, grandes concertistas, astros do basquete, campeões de xadrez, artilheiros no futebol, boxeadores, Casanovas, ou sabe lá mais o que? Então chego a uma primeira conclusão não muito favorável, que mesmo sendo eu um evolucionista convicto, sou obrigado a admitir que se a luta pela sobrevivência do mais capaz começa já na briga para se chegar ao útero, este detalhe escapou ao meu amigo Darwin.

Kastrirvm
Enviado por Kastrirvm em 29/01/2012
Código do texto: T3468391