TEMPOS DE ONTEM

 

Um e-mail deveras interessante me levou a uma quase autobiografia: “Tempo bom já passou...” é o título do e-mail recebido.

Eu digo que tempo bom é agora, mas foi bom aquele também... Com dores de crescimento, mas foi bom! Um caderno em branco preenchido à mão com tintas de vários matizes. Foi assim!

Época de aprendizado, de novos conhecimentos, de decisões nem sempre acertadas, de posicionamento diante da vida. Época de sonhos, de provocações, de estabelecimento de metas, de esforço à procura de um espaço e um tempo para que tudo acontecesse. Época de deslumbramentos diante do desconhecido, do descobrimento de pessoas e como lidar com elas. Decepções com parentes, com supostos amigos e com os pais – não eram os heróis imaginados... eram apenas “gente”, seres humanos. Amigos limitados e não tão amigos. Conhecimento das diferenças sociais e intelectuais. Saída à procura de um lugar no mundo, cavando espaços e criando o próprio tempo. Avaliação de valores doados e outros a serem adquiridos. A vida ensina e, se você for receptivo a mudanças, você muda. Se não mudar, então você se “ferra”! Muito estressante...

Infância de dificuldades, de falta do básico, apenas o da sobrevivência. Mas alegria dos anos passados no colégio – saudaaaaades! Freiras doces... mas outras nem tanto, castigos no meio da classe - eu “aprontava” muito. Carregar as fitas do andor de Nossa Senhora da Boa Morte, uma honra, na procissão de 15 de Agosto. O orfeão do colégio, cantando Ave Maria de Schubert no coro da igreja - emocionante -, destaque no orfeão, segunda voz, pedaços de rapadura para afinar a voz, antes dos ensaios - carinhos da filha do maestro Bove. Exibições do orfeão nas principais salas de Campinas, um acontecimento! Olhares compriiidos pro coroinha do padre, na hora da comunhão. Morte e velório da Irmã Virgínia - ataque do coração -, no colégio. Castigo no salão da irmandade repleto de quadros de irmãs falecidas, nas paredes - medo! O ranger dos sapatos das irmãs caminhando pelos corredores. O barulho do sacolejar dos baldes com água morna à noite, no corredor de acesso ao dormitório, para o banho das três irmãs na pequena clausura do dormitório das internas. Primeira dor de ouvido, inesquecível, descida pelo corrimão da escada do colégio, braço quebrado. Banho às escondidas na banheira da sala de sanitários do colégio - eram quatro reservados - nos dias de calor intenso. Primeira peça, no teatro do colégio, em que participei, “Os Óculos da Vovó”, e a queda da escada logo na entrada do palco - vexame total. Aulas de música com irmã Cecília, o aprendizado dos Hino Nacional e Hino à Bandeira. Semana das Missões na qual nos eram mostradas, através de fotos e jornais, as obras dos missionários e missionárias no desenvolvimento religioso na selva amazônica. Mês de maio, procissões, muita emoção, ladainhas, terços e rezas à noite. Dia de visita dos pais, uma vez por mês – contato com a realidade da vida. Sala de trabalhos manuais – eu gostava muito, especializei-me em roupinhas de bebê e em ponto cruz. Colegas preferidas, puro amor infantil, e as mais velhas eram as mais preferidas – carência afetiva. Dias em que fiquei acamada, doentinha, e da janela do dormitório, deitada em minha cama, via as nuvens passarem formando “carneirinhos” no céu. O carinho das irmãs e uma comidinha especial. Perna quebrada, internação no hospital por alguns dias e perda de aulas. Finalmente, saída do colégio aos 12 anos. Enfrentamento da vida difícil de minha mãe e irmãos, a outra face da realidade.!

Sem pré-adolescência. Passei do Colégio para o trabalho em uma fabriqueta de roupas de batizado. Iniciei minha vida no trabalho aos doze anos. Passava horas e horas, sentada, bordando roupinhas de nenê, numa oficina de roupas de batizado. Aos quatorze anos fui trabalhar na Fiação Matarazzo. Levantava às 4h30 da manhã e às 6h iniciava o turno de quatro horas, saia mais quatro horas e finalizava o turno com mais quatro horas. Não havia condução. Então, ainda escuro, uma colega de turno, vindo de mais longe ainda, passava pela minha casa para me apanhar e, juntas, seguíamos para a fábrica na boleia de uma carroça de pães. Era divertido.

Mas a minha vida de adolescente não foi só dificuldade, não! Tinha amigas, cinco, e estávamos sempre juntas. Íamos à matinê do cinema aos domingos, bailes nos melhores salões de Campinas, namoradinhos, vestidos rodados com saiote engomado (new look), cinturita, cabelos longos, flores nos cabelos, laçarote com margarida no pulso esquerdo e no fim do ano, dezembro, conseguíamos convites para todos os bailes de formatura – Campinas era uma cidade universitária, A primeira valsa num baile de formatura. Eu costurava meus vestidos de baile e os das minhas amigas também. Já mostrava, aí, o meu talento para a moda. Nisso tudo, o primeiro namorado e no escurinho do cinema as tentativas de pegar na mão, um primeiro beijo roubado - um caaaalor... -, amassos no portão de casa. Risadas de bobeira, sem razão nenhuma, com as amigas no bonde – ainda havia bonde em Campinas -, passeio nas noites de domingo no coreto do jardim – os rapazes ficavam parados ao redor do coreto e a moçoilas passeando em frente -, footing na Barão de Jaguara. Sorvete da sorveteria Sonia (cheiro inconfundível), primeira maçã, primeiro sutiã. Primeiro emprego no comércio, Lojas Americanas, missa do galo no Natal, procissões saindo da Catedral, pic-nic em Souzas à beira do rio com minha mãe e irmãos. Primeira ida ao teatro Municipal – um acontecimento -, exibição de “... E o Vento Levou" no cinema, filmes em série “Os Tambores de Fu Manchu” aos domingos na matinê. Primeiro sentimento de inveja - horrível, provoca dores no estômago -, fui ao teatro assistir a uma apresentação de dança. Eu queria estar no palco... Por que eu não estava lá, eu também sabia dançar! Talvez porque minha mãe não pudesse comprar um vestido bonito? Infantilidade!

O primeiro livro pornográfico - não me recordo do título - lia-o às escondidas no banheiro. Primeiro livro da literatura brasileira "O Tronco do Ipê", pesado para a minha idade, 11 anos, impressionou-me muito, primeiro livro enciclopédico “Os Tesouros da Juventude”, adorei, abriu-me as portas do conhecimento. Desse momento em diante, não parei mais de ler.

Primeiro amor aos quinze anos – ainda o sinto presente, seu cheiro, o perfume da loção de barba (pelugem???), ainda vejo seu jeito de andar, aproximando-se da esquina para o nosso encontro, o primeiro beijo - um calooooôr, joelhos trêmulos -, o encontro surpresa na noite de 31 de dezembro, réveillon de 1950, meu coração disparou e fiquei sem fala... Um momento mágico! Descobri que o amor dói!!! Uma dor gostosa de sentir!

Adolescência sofrida, incertezas de futuro, saída de casa para viver sozinha em São Paulo, aos quinze anos, a vida em casa de minhas tias, a inveja de minhas primas, a rigidez moral de meus primos - cuidavam para que eu não me tornasse uma prostituta, uns imbecis, produtos das décadas de 1940, 1950. As barreiras e as portas fechadas, em razão da pouca idade.

Retorno a Campinas, insatisfação, angústia da adolescência. Eu queria mais da vida. Campinas estava se tornando pequena para mim. Volta a São Paulo aos 20 anos. Nunca mais retornei para morar, apenas ia em visita à minha mãe e irmãos. Mas com angústia ou sem angústia foi um bom tempo, uma adolescência sem compromissos, sem contas pra pagar, sem preocupação com algo mais que certamente viria mais adiante. O futuro estava a me pedir providências. Eu fui em frente!

Aprendi a viver com estranhos, aprendi a me adaptar aos costumes e percalços da vida em uma cidade grande. Aprendi a conviver com pessoas de princípios e de educação diferentes. Foi um aprendizado difícil, mas ganhei muito com as experiências. A vida me abriu novos horizontes e mostrou-me a realidade das coisas e das pessoas. Tracei uma meta e fui driblando a tudo e a todos até chegar aonde me havia proposto. Passei por falta de dinheiro, de amigos e de incentivo aos meus projetos. Mas, fui bastante favorecida pela natureza. Foi uma garota bonita, simpática, e agradável a todas as pessoas que fui conhecendo pelos caminhos. Eu as agradava pela minha alegria de viver e pela quase simplicidade com que fui enfrentando os desafios. Aprendi que, em algumas situações, mais vale um favor e um sorriso do que dinheiro.

Primeiro emprego em São Paulo, na creche para filhos de hansenianos, Margarida Galvão, depois no Hospital São Lucas, no berçário, e depois na Pró Matre Paulista, no centro cirúrgico.

Primeiras amigas da faze adulta, amigas caindo em minha vida como bênçãos. Aquisições das mais felizes que alguém pode fazer. Essas amigas foram entrando em minha vida através da minha experiência como costureira. Passei 25 anos da minha vida como modista de alta costura. Produzi roupas lindas para mulheres lindas... Esse campo de atividade me proporcionou aberturas para os meus projetos. Cursei “madureza”, supletivo de 1° e 2º Graus e consegui, além de ganhar muito dinheiro, concluir meus estudos na área da Saúde, e ainda cursar Letras, um sonho acalentado por duas décadas. Fui modista num tempo que a confecção industrial era incipiente. Saí da área de modas em tempo de continuar meus estudos. Cursei duas pós-graduações, uma em Administração Hospitalar, outra em Língua Portuguesa e fiz um filho.

Isso tudo aconteceu enquanto curtia o segundo e definitivo amor da minha vida e pai do meu filho. Foram vinte e cinco anos de grandes experiências, conhecimento de mundo, de lugares e de convivência com as diferenças. Conheci lugares jamais imaginados por mim. Viajei muito, frequentei, com meu companheiro, boates da moda, teatros, restaurantes, conheci personalidades da política, dos negócios, e fiz amigos passageiros. Curti, à época, grandes casas de espetáculo do Rio de Janeiro, São Paulo e exterior. Ele foi meu primeiro amante, o homem que me fez mulher e pai de meu filho. Ele esteve sempre presente! Esteve ao meu lado no primeiro aborto e no nascimento do meu primeiro e único filho. Eu o amei muito e fui muito amada por ele! Esse amor também já foi para o “andar de cima”.

Depois, as primeiras perdas de amigas verdadeiras. Eu as perdi, infelizmente, anos depois. Queria tê-las ao meu lado nesse momento da vida em que mais precisamos de amigos. Foram ainda jovens para o “andar de cima”. Amigas com as quais partilhei os natais, os carnavais, as idas à maternidade, os palpites com as crianças, os primeiros passos dos nossos filhos, aniversários, primeira comunhão, primeiro dia no prézinho, fotos de uniforme, lancheira, primeiro dia de aula, a mochila, a flor para a professora nova e festas da escola. Os primeiros casamentos, os primeiros netos e tudo o mais de uma vida social repleta de bons momentos. Uma vida social bem vivida.

A vida me proporcionou o bastante para me sentir uma privilegiada. Mas, ainda espero mais e mais!

Ontem foi muito bom, mas hoje é bem melhor. Não sinto saudades. É uma palavra muito forte! Uma questão semântica. Curto as recordações... É isso aí!

Esturato

10/01/2012

Esturato
Enviado por Esturato em 10/01/2012
Reeditado em 15/01/2012
Código do texto: T3433155
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