Fascinado por chuvas XVI
Durante os três anos seguintes, mantive no sudeste a pisada do rapazote que fui na minha cidade. Aquele velho e equilibrado sistema de trabalho, estudo e lazer, que era pra não haver deficiência, nem sofrer da estrangeira palavra: stress, nem me deprimir. Era tentar viver o caminho do meio, o do equilíbrio. Eu morava e estudava na ilha do governador. Comecei a ter umas aulas de piano e em pouco tempo desisti por me sentir meio bitolado com as minúcias de ler uma partitura que não me dava a liberdade que eu queria. Ora, eu conhecia os acordes do piano, mas não me achava com a força de vontade necessária para as repetições dos exercícios e escalas, aquilo era mesmo demais. Sempre amei o sons dos instrumentos de corda, mas piano erudito não era definitivamente o que eu queria, era muito formal, eu estava mesmo me conhecendo cada vez mais e melhor, era preciso escolher e ver o que me convinha. Passei a apreciar aquele tipo de música como ouvinte, não como executante. Estava morando num quarto no bairro cacúia, e fazia o pré-vestibular. Chegava antes da meia noite para dormir. Tinha conhecido uma garota numa bebedeira, ela parecia do tipo fácil, e era. Depois, por intermédio dela, conheci uma outra, de olhos esverdeados, alagoana, esta também passou a ser mais uma a dividir comigo noites de prazer. Depois de um ano começou a mudar de idéia e querer compromisso, fui descartando aos poucos. Era mais uma que queria infringir minha regra, mudar meus planos. Deixei bem claro e com brevidade, que nada de compromisso podia esperar de mim, por enquanto. Podia tirar o cavalo da chuva. Eu estava estudando, o vestibular vinha aí, e não era hora de pensar em família. Depois, conheci uma outra, da penha, uma loira bem formosa, gostava mais de flauta do que violão, doida por chopp, pouco letrada nos valores humanos, não distinguia bem a diferença entre ser e ter, ficava de mal com o próprio pai e retrucava que os canalhas também envelhecem, quando lhe aconselhei que voltasse a falar com o seu genitor por ser pai e além disso ser mais idoso. Fui me contrariando com ela, sentia que a distancia entre nós podia estar numa simples palavra. Não era por eu ser nordestino e ela carioca, era a criação, as idéias, pequenas conclusões que me faziam sentir coisa não lá muito boa adiante. Era melhor obedecer ao instinto, àquela vaga premonição. O que seria isso? Não sei, só sei que alguma coisa me dizia que o negócio ali não era do meu feitio, não era pra mim, eu não me enquadrava. Aos poucos o fogo foi se apagando, era paixão e tesão só, a moça era muito sensual, mas com as conclusões que cheguei, era melhor criar coragem e jogar água fria na fervura enquanto era cedo e dar o caso por encerrado. E assim sucedeu, depois de um festival de música que fomos noutro estado, não mais nos encontramos e acho foi melhor assim.
Eu estava servindo no Batalhão de Comando da Divisão Anfíbia e os acontecimentos eram rotineiros, formaturas de parada, pequenas marchas, treinamentos físicos e de tiro, rotina e regime normais mas, certo dia, eu estava de serviço de sargento polícia quando de repente comecei a ouvir tiros e soube por informação de um soldado que um sentinela do posto da praia estava tentando matar o oficial de serviço. O praça havia descido do posto, efetuado vários disparos e parecia estar disposto a fazer uma loucura. Isso me preocupou, mas rapidamente o caso teve desfecho, meio trágico, mas teve. O maluco sentinela pegou mais munição no paiol e saiu de peito aberto no pátio. Vi tudo a partir daí, o tenente com um fuzil estava posicionado atrás de um carro de combate e um sargento aguardando um pouco mais atrás lhe dava proteção com uma pistola. O tenente, no momento em que o soldado aparece a uma distancia aproximada de cinqüenta metros, o ordena para que largue o fuzil e se entregue, advertiu mais umas duas vezes. Por não ter sido obedecido, não titubeou, e disparou um único tiro na perna do soldado, este caiu tremendo e gritando como um porco quando é sangrado. O projétil lhe varou a coxa mas por sorte não atingiu o fêmur. Vim a saber depois que o soldado havia deixado um bilhete no posto dizendo que ia matar o oficial e depois se mataria. Ambos responderam a inquérito e eu não fui chamado a depor.
No quarto onde eu morava, aconteceu algo inesperado que não foi provocado por mim, tentação de mulher quando quer tentar. Foi assim: uma das filhas da dona dos imóveis, casada, puxava de vez em quando assunto comigo e me pedia cigarro. O marido dela trabalhava à noite. Ela observava que a alagoana de olhos esverdeados só vinha dormir comigo nos fins de semana. Numa das noites em que eu vinha do colégio, respondeu minha saudação de boa noite e ficou me seguindo com o olhar, esboçando um risinho de malícia, desconfiei. Pediu cigarro e me olhando sempre com o trejeito safado, pediu baixinho pra eu deixar a porta do meu quarto encostada. Senti ereção no mesmo instante. A porta passou a ficar como ela sugeriu e a luz apagada. Algumas vezes à tarde ou pela manhã eu encontrava o marido dela pelo corredor, nos cumprimentávamos, mas aquilo foi me dando uma sensação de perigo, fui sentindo remorso, era a primeira vez que um caso daquele tipo acontecia comigo, e apesar de eu não ter começado, eu era cúmplice, tinha aceitado correr o risco da nova emoção. E ali estava o cidadão, inocente, pai, indo ficar acordado à noite, pra sustentar a família e a mulher se comportando daquele jeito? não era fácil! Minha consciência de cristão meio afastado da igreja, me acusava claramente, e os conselhos do livro de se construir o homem e o mundo me davam um supapo, e eu despertava da letargia. Amanhecia o dia cheio de olheiras, cansado e amargurado. Nas vezes em que dormia com as mulheres dos portos, mesmo tendo bebido bastante cerveja, acordava bem, era uma aventura jovial, que considerava sem riscos, voltava pro navio e esquecia os pormenores em breve tempo, noutra noite, queria outra mulher, mas ali o caso não era esse, a mulher era casada, mãe, embora sem-vergonha e eu quase sempre via o marido dela indo pro trabalho. Parecia ser calmo, mas sabe-se lá do que era seria capaz se descobrisse o caso? Outra vez me vinha a idéia de mudança, a sensação de perigo, de que alguma coisa podia dar errado, era melhor obedecer, seria isso efeitos das orações que faziam por mim, minha mãe e a mulher da igrejinha em frente à escola de marinheiros, a senhora que cantava o hino de São Francisco com devoção e me emocionava? Não sei, só sei que fui acabando com o caso e trancando minha porta, minha intuição me favorecia. A alagoana de olhos verdes me visitava e era suficiente, nada de muita complicação com outras.
O ano ia se arrastando e no final não me saí bem no vestibular nem me lamentei, não estava tão preparado para ingressar numa faculdade federal. Tentaria outra vez depois, quem sabe! Meu fôlego se encontrava meio saturado e eu sentia que era melhor meditar um pouco antes de tentar novamente. Faculdade? será que era isso mesmo que eu queria? Física prá que? Por que? Será que eu não estava meio fora de compasso e esquecendo de me consultar e ouvir melhor meu coração? Certamente que sim, creio que foi melhor não ter obtido aprovação. O ano novo vinha e eu fui de férias outra vez a minha cidade rever amigos e a namoradinha. Daquela vez resolvi fazer uma caçada na velha Mata Fresca pra não esquecer as minhas origens. Fomos, tio Áureo, meu irmão Isac e eu. Foi lá pros lados de Manguinhos, saímos à tarde levando os apetrechos numa burra, até um violão levamos. Meu tio muito palhaço dizia pra os curiosos que perguntavam pra onde a gente ia: _ vou fazer serenata pros pebas! Levamos um cachorro farejador e isso me faz lembrar outra tirada do meu tio. É comum se dizer que quem não tem cachorro caça com gato, tio Áureo ao ouvir isso era taxativo: quem não tem cachorro, não caça! Já viu gato acuar alguma coisa? Entramos por uma vereda de pé de cerca e depois de uns quarenta minutos de caminhada chegamos num ponto onde meu tio achou apropriado para o acampamento. Era embaixo de um cajueiro, ao anoitecer o cachorro acuou um bicho num formigueiro grande mas não cavamos, o tio conhecia quando valia a pena fazer esforços pra encontrar uma caça num formigueiro abandonado, pelo tamanho do buraco. Dormimos embaixo do cajueiro, depois de tomar aguardente e conversar animadamente. Mais tarde ouvi ao longe as falas dos que estavam discursando contra e a favor da emancipação de distrito de Icapuí. Nessa caçada capturamos com a ajuda do cão um tijuaçú, que serviu de almoço pra gente no dia seguinte. Ainda passamos mais uma noite no mato e voltamos pra casa no manhã seguinte ao nascer do sol, sentindo ainda o gosto de aventura. Aquele dia era um domingo, e ainda fomos à praia numa caminhonete do Nelson de Azarias e foi aí revi o Nego Zé, meu companheiro de infância que estava morando perto de Icapuí. Nessa época eu já havia comprado uma sanfona no Rio de Janeiro e ia deixá-la com papai, para as animações dos festejos dele, o Isac já estava executando no fole um bocado de toque de forró e nos divertimos fazendo barulho à vontade por aqueles dias naquelas paragens.
Foi daquela vez também que levei pra minha namoradinha o livro “ Cem Anos de Solidão do Garcia Marquez”, parece que não gostou, ou não apreciou o tipo de linguagem. Ela gostava de ir comigo às festas, dançava bem, íamos à praia mas não se banhava no mar, não sei porque não queria mostrar o seu corpo, talvez não quisesse expô-lo ao sol. Era uma garota calma, me pedia pra eu tocar música lenta de Geeraldo Azevedo, depois passou a gostar dos graves de Nelson Golçalves, em seguida passou a ter admiração pelas pregações e pelo pastor evangélico que morava em frente à sua casa, e finalmente depois de ouvir de mim que casamento não estava em meus planos antes do término da faculdade dela, resolveu mudar de rumo. Eu tinha meus planos e não ia me desfazer deles, nem por ela nem por ninguém. Ela gostava de uma boa conversa e era dona de uma risada estrondosa. Conversava à tarde e à noite na calçada de sua casa, dando asas ao seu bom-humor. Depois que começou o curso superior, ampliou seu horizonte e eu a perdi de vista. Logo esteve freqüentando a praia dos gringos e é isso, tudo tem seu tempo, as emoções da juventude devem ser aproveitadas enquanto se é jovem, falo sério. Nem sempre estava em casa quando eu ia a sua procura. Como eu não achava nada interessante procurar quem propositalmente se esconde foi que em certo fim semana sem encontrá-la em casa, fui a um baile que chamamos de festa, sem ela, de lá saí com outra, uma aloirada das praias de Mutamba, que gostava de bordado e artesanato, de baixa escolaridade e meio preconceituosa com gente de cor, mas igualzinha às outras, impaciente. Quando falei dos meus planos, pulou fora do barco com brevidade espantosa. Foi a mais decidida que já vi, não tinha tempo a perder, era isso! Nem eu podia mudar meu rumo, boa sorte, adeus! Depois me apareceu outra, com cara de santa, trabalhava no hospital, meio calada, parecia muito boa pra procriar e tinha uma ternura de mãe. Trocamos algumas idéias e fomos assistir à missa do galo na igreja do Bomfim no início de um novo ano. Viajei de volta ao sudeste e escrevíamos cartas um pro outro, a paixão parecia crescer mesmo sem fazer planos para nada muito próximo. Na cidade grande comecei a estudar inglês, conversação. O ano seguia sem novidades no trabalho que, diga-se de passagem não era tão cansativo. Nos fins de semana, tocava violão e bebia muita cerveja num bar da ilha, “o ilha bela” da Marilena, uma pernambucana, e recebia a visita da Maria, a de olhos esverdeados e ela tomava comprimidos para não engravidar. Comprei uma bicicleta de marcha e pedalava pro trabalho nos dia sem chuva. O ano voou, devo ter lido uns quatro livros do Gabriel. Recebia cartas de casa, e da do hospital. Foi por esse tempo que me chegou a notícia da morte do irmão de papai, o tio Zé Ramir, que era motorista e trabalhava na Maisa. Que pena! Qual seria o destino de suas três filhas! Ainda tinham mãe, mas as dificuldades seriam maiores agora, pedi ao bom Deus em oração que as guiasse. Minha avó materna estava doente por esse tempo também.