Infância em Maringá – no circo.

Certo dia, por volta dos meus oito anos de idade, eu estava andando por uma rua de terra em Maringá, uma rua que contornava o Parque do Ingá, lá pelos lados da Escola Teobaldo Miranda Santos. De repente, levantei a cabeça – porque até então contava e, vez ou outra catava para, tão logo minhas mãos se enchessem, torná-los fora, pedregulhos espalhados no chão – e vislumbrei uma casa grande, que destoava de tudo o que até então eu tinha visto. Era uma casa com o teto dando para o céu bicos pontiagudos, como seios magros e firmes feitos com um material parecido com pano. Lembrei-me do nome daquele pano: lona. Lembrei-me na hora que já tinha visto uma lona antes, porém, em outro lugar e com outra serventia. Descobri alí que o homem podia fazer coisas diferentes com um mesmo material. A minha primeira experiência com a lona aconteceu quando estive na casa de meu avô Elias, a quem eu pouco frequentava, na cidade de Engenheiro Beltrão, e ví que alguns homens espalhavam grãos de café em casca para secagem sobre várias lonas estendidas num terreiro imenso. Depois, recolhiam esses grãos e os depositavam em silos. Quanto às lonas, eles as dobravam cuidadosamente. Como elas tinham o formato retangular, com uma área aproximada de 5x20 m², primeiro eles a dobravam de comprido, até ficarem do tamanho de 1x20 m², depois eles as dobravam ao longo de sua extensão até ficarem compactadas num volume de mais ou menos 1x1m³. Como me impunha desafios, na primeira oportunidade tentei dobrá-la, era pesado. Tempos depois este seria um trabalho meu quase cotidiano.

Quanto à barraca grande com tetos pontiagudos, logo reconhecí: era um circo; tal como havia passado na televisão. Na hora comecei a imaginar como seria lá dentro e, como a maioria das coisas me eram de difícil acesso, por falta de dinheiro, pus-me a imaginar, também, como iria fazer para assistir o espetáculo. Essa palavra “espetáculo”, vinda de um alto-falante que tinha sido posto num poste de madeira em frente do circo, provocava em mim um sentimento de que eu estava diante de alguma coisa grande, maravilhosa porque poderia apresentar ao meu espírito novidades que iriam mudar a ordem de tudo. O circo parecia me prometer a chance de um redimensionamento do universo que eu vinha construindo dentro de mim. E essa dimensão me era vital já que eu era ávido de experiências que podiam reformular o até então por mim conhecido. Fui prá casa com uma mensagem gravada na minha cabeça: “sábado, 16 horas, não percam grande show”.

As coisas para mim, naquela época, tinham que ser avaliadas segundo as possibilidades de posse. Estou falando de bens materiais, de tudo o que é preciso dinheiro para se alcançar. Era o caso. Então, quando se tratava de aquisição por dinheiro as coisas mal nasciam já tinham que ser descartadas. Minha estratégia de defesa era não pensar no assunto. Algumas vezes eu esquecia o objeto de desejo e não ia atrás. Neste caso não foi o que aconteceu. Quando deu três e meia do sábado, lembrei do circo. Meus pés foram andando sozinhos e levaram o resto de meu corpo e de minha alma junto e, com eles, a angústia enorme de saber que iria chegar até a porta do circo, ia ver todo mundo comprando ingressos na bilheteria, depois entrando circo adentro, e eu não. Nesta época eu ainda não havia desenvolvido uma estratégia de acesso que mais tarde eu criaria nos parques de diversão.

Mesmo assim, fui. Contava com a sorte mas, sobretudo, contava comigo mesmo. Como tantas vezes anteriores, sabia que algo diferente do roteiro podia acontecer a meu favor e eu entraria. O que não podia acontecer era eu me resignar num status quo que me dizia para ficar onde estava e não tentar. Me era e sempre foi inconcebível aceitar o “não” jogado na minha cara por algumas situações da vida. Não era eu renunciar à luta, não era eu abaixar a cabeça e apenas condizer com o fato de que um lugar de carências me havia sido reservado pela vida sem nada ter a fazer diante dela. Havia uma experiência a ser vivida, e eu a queria. Se tudo à minha volta dizia para eu não ir em frente, então, algo em tudo à minha volta estava errado. Eu não podia consentir. O circo me chamava e tal situação me atravessou como um dardo e eu deixei, em seguida lancei-me e a atravessei do mesmo jeito. Fomos de encontro um ao outro.

De longe pude ouvir as músicas ecoando, alegres e convidativas para o coração de uma criança. Em breve pude ver as bandeirolas, o cheiro das pipocas, o movimento, a felicidade. Crianças de mãos dadas com algum adulto, limpas, protegidas, amadas, com suas entradas garantidas. Eu só. Ninguém. Um mundo imenso e ninguém. Milhares de possibilidades e a minha, realizada, era aquela realidade. Não me queixo, relato este detalhe apenas para dar o tom e a dimensão daquilo que eu viví naquela época, para que se perceba melhor o contexto. Assim, eu mesmo entenderei porque hoje algumas coisas são tão difíceis para mim. A minha relação com as pessoas, por exemplo. Minha enorme dificuldade de romper um relacionamento e reviver o vazio ampliado que via à minha volta todas as ocasiões em que precisava, enquanto criança, contar com a presença e com o amor de um adulto protetor. Talvez seja por isso que hoje eu consiga entender um pouco o que sentem as crianças em seu desamparo. Suas necessidades, sua fragilidade. Suas possibilidades ameaçadas pela grande incompreensão que os adultos ostentam quando olham de cima para baixo e maltratam uma criança.

Estava sem estratégia. A hora passando e eu sem nenhuma ideia de como entrar. Dei a volta em torno do circo. Foi quando ví um vão de cerca aberto o suficiente para passar uma criança tão franzina como eu. Fui de cabeça, sem medo. Passou. Passaram os ombros, os braços, o quadril, as pernas. Primeira etapa completada. Tinha que poder não ser visto. Entre a cerca e a lona era uma eternidade de tempo e de espaço. Três metros. O problema é que tinha que ter um vão na lona também. E tinha, e eu entrei. Dentro do circo, percebí que o acessara por baixo da arquibancada. Olhei para cima e ví pernas e mais pernas. Tinha que subir e me misturar com a multidão sem ser notado, ficar perto de alguém dando a impressão de que estava acompanhado, embora as minhas roupas (andrajos) e aparência física me denunciassem. Mesmo sentindo a alegria do feito, até hoje relembro que não foi sem um gosto de humilhação que entrei naquele circo. Ter que lançar mão de um expediente de burla para acessar algo que eu deveria ter por direito, me colocava no grupo dos excluídos irremediavelmente, mesmo eu tendo entrado. A maneira como eu me incluí tinha uma marca inapagável: não foi como devia ser.

Feita a minha parte, o jeito era esperar que a providência fizesse a dela. Neste dia fez, e eu assisti ao espetáculo. Era mágico, um encantamento. Cavalos salteadores, bailarinas, mágicos, malabaristas, globo da morte...e os palhaços. Eram vários mas, dois em particular me marcaram para sempre. Eles entraram no picadeiro dirigindo uma charanga de verdade. Uma engenhoca sobre quatro rodas apitando e dando estalos no escapamento. Foi fumaça prá todo lado. Eles pulavam, cantavam, davam piruetas, se batiam em peripécias de pastelões, esguichavam água um no outro, na plateia, por toda parte. Por fim, chegou a hora de irem embora. Para saírem com o pequeno caminhão, cheio de tralhas dependuradas, deram a volta no picadeiro, manobraram e o embicaram para a saída de modo tal que a traseira do carro ficou bem à minha frente, já que eu estava na segunda fila das arquibancadas. Olhei atentamente para o carro verde e prata. Quando baixei os olhos enxerguei no parachoque traseiro em letras bem grandes a seguinte frase: “Mãe tenha distância”. Sem vírgula mesmo. Ingenuamente acreditei naquele momento que eles haviam escrito a frase errado. Só quando entendi a piada é que dei risada. Tratava-se de um trocadilho. Ao invés de escreverem “Mantenha distância”, frase comum em parachoques de caminhões, eles brincaram e deram um novo sentido para a frase invocando à mãe que se mantivesse afastada. Não sei porque até hoje me lembro desta frase, e ainda ignoro o seu sentido profundo.