Agostinho de Hipona
Agostinho de Hipona (Tagaste, 354 - Hipona, 430)
Filósofo e sacerdote da Igreja Cristã, filho de mãe cristã (Mónica, santificada pela Igreja Católica) e de pai pagão, Patrício, não é batizado em sua infância. Menospreza o cristianismo até que, aos dezoito anos, enquanto estuda em Cartago, ao ler o Hortênsio de Cícero, inicia uma procura angustiada da verdade. Após uns anos de adesão ao Maniqueísmo, converte-se primeiro a esta doutrina no ano de 374 e posteriormente ao Ceticismo. Tornou-se professor de Retórica em Cartago e depois em Milão. Nesta última cidade (384) conhece as doutrinas Neoplatónicas; isto, mais o contacto com Ambrósio, bispo da cidade, predispõe-o a admitir o Deus dos cristãos. Pouco a pouco, apercebe-se de que a fé cristã satisfaz todas as suas inquietações teóricas e práticas e entrega-se inteiramente a ela; batizando-se em 387. Passa por Roma e regressa à sua cidade natal, Tagaste, na costa africana, onde organiza uma comunidade monástica. Ordenado sacerdote em 391, quatro anos mais tarde torna-se bispo de Hipona, cargo em que desenvolve uma actividade pastoral e intelectual extraordinária até a sua morte.
Entre as suas obras contam-se grandes tratados (Contra Acadêmicos), obras polêmicas contra outras correntes teológicas e filosóficas, e as suas famosas Confissões. O conjunto da sua obra e do seu pensamento fazem dele o grande filósofo do cristianismo anterior a Tomás de Aquino (século XIII). O seu platonismo domina a filosofia medieval.
Para compreender a filosofia de Agostinho há que ter em conta os conceitos augustinianos de fé e razão e o modo como se serve deles. Este é o núcleo em torno do qual gravitam todas as suas idéias; o conceito de beatitude. O problema da felicidade constitui, para Agostinho, toda a motivação do pensar filosófico, isto é, uma indagação à procura da beatitude, ou felicidade.
A beatitude, entretanto, não foi encontrada por Agostinho nos filósofos clássicos, mas nas Sagradas Escrituras, quando iluminado pelas palavras de Paulo de Tarso. Não foi fruto de procedimento intelectual, mas ato de intuição e de fé.
Impunha-se, portanto, conciliar as duas ordens de coisas e com isso Agostinho retorna à questão principal, ou seja, ao problema das relações entre a razão e a fé, entre o que se sabe pela convicção interior e o que se demonstra racionalmente, entre a verdade revelada e a verdade lógica, entre a religiosidade cristã e a filosofia pagã.
Para Agostinho, ainda que as verdades da fé não sejam demonstráveis, isto é, passíveis de prova, é possível demonstrar o acerto de se crer nelas, e essa tarefa cabe à razão. Sustentava que a fé é precedida por certo trabalho da razão, colocando a fé como única via de acesso à verdade eterna. A filosofia é, para Agostinho, apenas um instrumento auxiliar à teologia, destinada a sistematizar a doutrina fundamental da Igreja.
Com efeito, não pode considerar-se Agostinho de Hipona um filósofo, cientificamente falando, se por tal se entende o pensador que se situa no âmbito exclusivamente racional, pois, como crente, apela à fé. Agostinho não se preocupa em traçar fronteiras entre a fé e a razão. Para ele, o processo do conhecimento é o seguinte: a razão ajuda o homem a alcançar a fé; em seguida, a fé orienta e ilumina a razão; e esta, por sua vez, contribui para esclarecer os conteúdos da fé. Deste modo, não traça fronteiras entre os conteúdos da revelação cristã e as verdades acessíveis ao pensamento racional.
Para Agostinho, “o homem é uma alma racional que se serve de um corpo mortal e terrestre”; expressa assim o seu conceito antropológico básico. Distingue, na alma, dois aspectos: a razão inferior e a razão superior. A razão inferior tem por objeto o conhecimento da realidade sensível e mutável: é a ciência, conhecimento que permite cobrir as nossas necessidades. A razão superior tem por objeto a sabedoria, isto é, o conhecimento das idéias, do inteligível, para se elevar até Deus. Nesta razão superior dá-se a iluminação de Deus.
Quanto ao problema da liberdade, Agostinho relaciona-o com a reflexão sobre o mal, a sua natureza e a sua origem. Agostinho, maniqueu na sua juventude (os maniqueus postulam a existência de dois princípios ativos, o bem e o mal), aceita a explicação de Plotino, para quem o mal é a ausência de bem, é uma privação, uma carência. E ao não ser alguma coisa positiva, não pode atribuir-se a Deus. Leibniz, no século XVII, ratifica esta explicação.
Agostinho ensinava e defendia a doutrina “do pecado original”, e os seus inevitáveis efeitos mortais sobre a vida de todos os descendentes de Adão. Agostinho, coerentemente com sua primeira afirmação, ou seja, de que todo ser humano é escravo do seu pecado e que o seu livre arbítrio possui uma fonte pecaminosa, morta espiritualmente, afirmava que o homem carece absolutamente da ação graciosa de Deus em todos os seus aspectos para ser salvo, sendo exposta essa posição na doutrina da predestinação.
Agostinho, falando explicitamente sobre a perseverança em sua obra De Corruptione et Gratia (427), declarou que no caso dos santos predestinados ao Reino de Deus pela graça divina, a ajuda concedida para que perseverassem não foi aquela dada a Adão, mas uma ajuda especial comportando forçosamente a perseverança de fato, (...) sendo de tal maneira forte e eficaz que os santos não podiam fazer outra coisa senão perseverar de fato. Mesmo após essa revisão em sua teologia Agostinho continuou esbarrando em algumas inconsistências em seu próprio sistema. Embora sustentasse a predestinação, em alguns de seus escritos ele não a expressava com coerência, pois esta doutrina estava comprometida com erros doutrinários acerca de seu tendencioso sacramentalismo.
O sacramentalismo afetava radicalmente a doutrina da salvação de Agostinho. Wright concluí que “esse sacramentalismo tornou a salvação dependente, na prática, da boa vontade e da capacidade do indivíduo de obedecer à igreja. Assim, na prática, a igreja e não as Escrituras tornou-se o locus final da autoridade.”
Agostinho chegava a dizer que “as igrejas de Cristo afirmam o princípio implícito de que, sem o batismo e a participação na mesa do Senhor, homem algum pode chegar ao reino de Deus, e à salvação, e à vida eterna.” A maneira como Agostinho tentou resolver esta incoerência foi afirmando que a prova da eleição baseia-se não somente na regeneração, mas também na perseverança, segundo ele “todo o que é batizado é regenerado, mas é verdadeiramente eleito o que possui a graça da perseverança.” Mas isso não anulou a sua inconsistência teológica, pois a sua afirmação continuou sendo dúbia. Embora defendesse a predestinação, ele se tornava incoerente fazendo a perseverança depender de sua doutrina sacramentalista.
Sua doutrina trinitária é decisiva no pensamento teológico ocidental. Para Agostinho, a unidade das três pessoas da Trindade é inseparável, não havendo subordinação entre elas, conforme ensinaram Tertuliano e Orígenes. Em sua explicação do dogma trinitário concebe a natureza divina antes das pessoas, Deus como mistério que se revela no mistério da Trindade, no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Nessa tese, a natureza divina é concebida por analogia com a imagem de Deus no mundo e, especialmente, no homem. A alma é pensamento (lógos) que se exprime em conhecimento (tó ón, "ser") e se ama a si mesmo nesse conhecimento (nous, "espírito"). Ora, análogo a Deus, o homem reproduz o mistério trinitário e, conhecendo-se, conhece-se como imagem e semelhança de Deus. Conhecer-se e amar-se nesse conhecimento, é conhecer e amar a Deus, mais interior ao homem do que o próprio homem.
Desta forma, Agostinho concebe a unidade divina não como vazia e inerte, mas como plena, viva e guardando dentro de si a multiplicidade. Deus compreende três pessoas iguais e consubstanciais: Pai, Filho e Espírito Santo. O pai é a essência divina em sua insondável profundidade; o Filho é o verbo, a razão ou a verdade, através da qual Deus se manifesta; o Espírito Santo é o amor, mediante o qual Deus dá nascimento a todos os seres.
Para Agostinho, o mundo foi criado de uma só vez, todos os seres ao mesmo tempo, na forma de germes ou sementes. A história do mundo é uma perpétua evolução, embora não criadora, pois os germes das coisas nele se encontram desde as origens. Na hierarquia dos seres criados, o homem situa-se logo abaixo dos anjos, composto que é de alma espiritual e simples e de corpo, material e organizado. A origem da alma é um problema que Agostinho se confessa incapaz de resolver e, apesar da influência platônica, não julga a matéria má em si mesma, nem a união da alma e do corpo um castigo. Em tese, o corpo não é a prisão da alma; o pecado é que aprisiona o homem à matéria, da qual ele se deve libertar pela vida moral.
Sobre os registros literários que produziu, “As Confissões”, sua obra de mais interesse literário, são um diálogo contínuo com Deus, em que Agostinho narra a sua vida e, especialmente, a experiência espiritual que acompanha a sua conversão. Esta autobiografia espiritual é famosa pela sua introspecção psicológica e pela profundidade e agudeza das suas especulações.
Em A Cidade de Deus, a sua obra mais ponderada, Agostinho adota a postura de um filósofo da história universal em busca de um sentido unitário e profundo da história. A sua atitude é sobretudo moral: há dois tipos de homens, os que se amam a si mesmos até ao desprezo de Deus (estes são a cidade terrena) e os que amam a Deus até ao desprezo de si mesmos (estes são a cidade de Deus). Agostinho insiste na impossibilidade de o Estado chegar a uma autêntica justiça se não se reger pelos princípios morais do cristianismo. De modo que na concepção augustiniana se dá uma primazia da Igreja sobre o Estado. Por outro lado, há que ter presente que na sua época (séculos IV – V) o Estado romano está sumamente debilitado perante a Igreja.