Fascinado por chuvas XI
Logo na saída do colégio, havia um bar. Certa vez passei em frente e vi um cidadão deficiente tocando um violão com muita autoridade. Era um vendedor de livros de outro estado, que acompanhava um cantor, este, eu já conhecia da cidade por ser meio fanfarrão, mas dono de uma boa voz. Depois, sabendo que eu gostava de violão, não me faltavam convite prá parar, tomar uma caninha e acompanhar alguma canção. O local era o bar do Alfredo Narciso, havia um bom tira-gosto de caldo e eu não tomava só uma pra almoçar, o ambiente era espaçoso e calmo. Não tenho notícia de que, algum colega meu de colégio tenha tido contato com a aguardente antes de mim. Serenatas? cheguei a fazer muitas, ia animar as farras de papai e nem por isso deixei de freqüentar a escola, nem me tornei inveterado nem vagabundo. Mas aí entra em cena a professora, irmã paraense. O caso foi assim: por ter ela sabido e constado com os próprios olhos meio esverdeados, marcas em meu pescoço deixadas por uma moçoila desvairada de cabaré, resolveu me interrogar. Não havia nada de novo nem escandaloso no colégio, indisciplina sempre houve da parte de um ou outro mal-criado em todos os tempos, comigo nunca tinha acontecido nenhum incidente como esse que conto agora. Eu fazia minhas farrinhas de violão e mesmo chegando em casa tarde e com o hálito de aguardente, procurava entrar sem fazer barulho e dormia. Pela manhã cedo, metia a cara no mundo e ia pro colégio, é tanto que naquele dia nem me vi no espelho nem senti dor de marca nenhuma. Um dos alunos viu a mancha arroxeada e me perguntou o que tinha sido aquilo, aquilo o quê? Perguntei! mas ao encostar o dedo senti pequena dor e a cena da noite anterior me veio à memória. Estava feito, era aquilo mesmo eu sabia, mas ingenuamente respondi não saber e não tive engenho de alegar que possivelmente aquilo tivesse sido uma pancada ou quem sabe um morcego... não, essa era a mais improvável das mentiras que eu poderia usar. Logo, logo as novidades se espalham. Sem querer eu notava depois disso muitas das garotas a me olharem de soslaio, não sei se me reprovando, não sei se tendo alguma aversão por mim, quem sabe que pensamento se passava pelas cabeças delas? não sei, sei que o acontecido da marca no meu pescoço se espalhou. Igualmente o caso de uma flor que eu um dia arranquei do jardim da diretora, algum aluno me entregou e por isso fui chamado e advertido para que aquilo não mais se repetisse, sim senhora... esse caso da marca, igualmente chegou aos ouvidos da professora Ivete, a paraense. Em particular e depois da última aula, sentindo bastante fome, ouvi dela inúmeras interrogações, tipo se eu queria ser como meu pai, se achava correto o que ele fazia referindo-se às bebedeiras dele, e mais e mais perguntas que de cabeça baixa eu escutava e nem sempre respondia. Pois bem, depois de grande sermão, ela dispunha de um manual para me fazer voltar aos trilhos da correção, era da opinião de que esse jovem talentoso do violão não podia se desgarrar. Deu-me um livro pra eu ler, e todos os dias depois da última aula eu ficava em sala para dizer o que tinha entendido do capítulo, que reflexões tinha feito e o que pretendia colocar em prática na minha vida: “construir o homem e o mundo”, era esse o nome do livro de um autor francês “ Michel Quoist” que tratava das virtudes e comportamento cristão. Posso dizer que aquela literatura foi, de grande proveito para mim, tanto naqueles dias turbulentos da puberdade e também alguns anos depois, nos tempos de adulto. Os assuntos me levavam a analisar os valores da vida e dentre tantas coisas que tratava havia uma que achei muito importante, era a frase: “quanto mais privilegiado, mais responsável”. Hoje, sei que não teve grande valia prática os assuntos de ciência que aquela professora diferente ensinava, coisas tais com: porque chove, velocidade média, massa, peso, refração, força centrífuga, centrípeta... sei que, o livro que fui obrigado a ler me trouxe muitos e grandes benefícios práticos de vida.
Comecei a descobrir as escalas e acordes do violão e do piano e gostar mais e mais de música, havia o grupo de jovens da igreja católica, eu ouvia discos de um padre cantor, lia o evangelho de Jesus e lia o livro do francês para me construir e construir o mundo, só que mesmo adolescente e andando amparado por rumos balizados pela virtude, já conhecia o prazer do álcool, já conhecia mulher e não era de ontem, fazia um certo tempo até. Aquela das marcas não tinha sido a primeira. Vou contar: vinham ao frigorífico onde papai trabalhava, compradores de pescado de outras cidades, costumavam ferver a água da panela usando eletricidade para cozinhar peixe, armavam suas redes no galpão onde dormiam depois de ter voltado dos cabarés ali perto, do outro lado do muro. Um dia, ao saberem que eu tocava violão, um deles pediu a papai para me deixar ir com eles ao tal lugar e assim foi. Lá, vieram algumas mulheres para a mesa, depois de alguns goles de cerveja e alguns boleros que eu toquei me acompanhando, disseram-me para eu escolher a que eu quisesse, não foi surpresa para mim, já estava prevendo alguma coisa assim, devido aos olhares e às conversas deles. Aquela ia ser a primeira e ia me deixar quase viciado naquilo. Ao entrar no quarto com a mulher, ela se virou para mim e pediu para eu abrir o zíper do seu vestido, era uma mulher bem jovem ainda. Alguns inexperientes alegam às vezes falhas por nervosismo nessas primeiras viagens, comigo foi tiro e queda, fui até muito veloz, como um desesperado, sem a menor calma, como um bicho que atende somente ao instinto.
Os dias iam se passando e as minhas responsabilidades eram aquelas, de estudar, de levar a garrafa do café pra papai na empresa, .mas comecei a trabalhar cedo para ajudar mamãe, meu primeiro emprego foi vender bolo no mercado, estes eram feitos pelas minhas tias Suzana e Regina. Quando eu não tinha o que fazer, ficava no frigorífico, lendo livros e revistas doados por Testemunhas de Jeová... Nesses ensinamentos falavam que o homem não devia ser ímpio nem fornicador, quem assim fosse não poderia receber a herança do paraíso terrestre para viver em harmonia com o Criador e os animais. Eu achava bonitas as fotos de paisagens e figuras das revistas com pessoas e animais ferozes numa paz comovedora. Durante aqueles quatro anos eu iria viver bons e inesperados momentos com uma garota de outro colégio. Foi assim, eu tocava violão nas reuniões do grupo de jovens, em missas e orações. Certa vez fui convidado para ir com a turma para um festejo numa outra cidade do vale: Jaguaribe. Uma das meninas que era cantora se engraçou comigo e durante a viagem na combi, ficamos de beijinhos e sarros, depois da viagem não a vi mais, podia tê-la procurado mas, a paixão não foi febril. De outra feita fui com a turma num encontro que houve em Fortaleza no colégio da Imaculada Conceição e uma das que iam com a gente parecia ter o mesmo interesse, durante a viagem não aconteceu nada só olhares e desejos enigmáticos, depois eu daria uns amassos nela e assim foi mas não era nada pra se manter firme, era como dizem hoje: “ficar”, mas eu estava atento a todas e notava as segundas intenções. Depois participei de uma apresentação festiva que não era do grupo de jovens, no colégio Salesiano, executando uma guitarra base e cantando a música “o sósia” do Roberto Carlos, e quem estava na platéia? Mais linda do que antes, a inesquecível Josilene, minha pura paixão, a linda do quarto ano, meu nervosismo aumentou mas consegui fazer a apresentação sem me atrapalhar. Meu contentamento reviveu, mesmo depois de já ter tido contato com outras garotas e até mulheres lá estava eu, hipnotizado mais uma vez por aquela beleza que me atraía e fascinava, que coisa fácil de explicar e mais ainda de entender! Por essa época ela estava com um namorado. Mesmo assim, foi minha febre maior de adolescente, talvez, por nunca ter conseguido dela um beijo sequer... Platão talvez explique!
O grupo de jovens da igreja, que fazia reuniões para se falar coisas sobre vocação, foi excelente lugar para apaziguar um pouco minhas energias, mas de vez em quando, fora dali eu ajudava a secar uma garrafa de aguardente e nessas ocasiões o violão estava presente e as toadas apaixonadas também. Como de costume, minha freqüência era normal na escola, mesmo de ressaca e mesmo depois daquela bronca da irmã-professora e de começar a ler o livro de moral cristã. Tive particular cuidado para não deixar mais mulheres me marcarem o pescoço com chupões, mas as farras continuavam, isso era quase inevitável, eu sou filho de papai e gostava dessas libações não posso negar!
Para mim não existia tédio, passava as tardes lendo na biblioteca ou tentando descobrir os acordes de um velho piano que existia no auditório do colégio. De todos os alunos, somente eu tinha acesso à chave dele, isso porque era também o único interessado nisso. Naquela minha insistência obstinada, mesmo sem nenhuma dica de professor, apenas experimentando a escala do violão, descobri como se formava os acordes maiores e menores de dó a si no piano. Não era muito, mas foi isso que me levou a participar do grupo musical, um conjunto como se chamava na época, atuei no “Alta Tensão”. Viajei com esse grupo de músicos, todos mais velhos que eu, para muitos lugares e às vezes chegava de manhã. O guitarrista era uma cabeludo da cidade de Açú, tinha fama de fumar maconha e fumava sim, antes das apresentações, os outros eram da cidade mesmo, Sérgio, Messias e Flávio. Os poucos acordes que eu fazia me davam condição de fazer uma harmonia de base no órgão. As festas fora da cidade eram geralmente aos sábados, na cidade, aos domingos. Um ano antes de fazer parte do grupo, como eu já tinha fama de gostar de violão e fazer serenata, recebi o convite de um primo meu, o Roderico que era da Marinha e estava de férias, para ir com ele e outro colega fazer uma serenata na porta da casa de uma mocinha. Era um domingo, fomos. Com eles, além do violão traziam um coco cheio de cana do cumbe que me serviu para temperar um pouco a voz e afastar o frio. Depois da serenata, ainda se ouvia o som de um grupo musical animando a festa no clube da juventude. Ah, aquilo era fantástico, a acústica na rua grande, naquele tempo quando as caixas de som possuíam cabeçotes valvulados, que som puro... chegamos por lá, entramos e aí pude ver e ouvir melhor. O palco e o salão com uma luminosidade que refletia um branco em algumas partes das roupas, os casais dançando e os músicos executando com extrema beleza as músicas. Eram Os Espaciais, simplesmente os melhores da cidade, pra minha sensibilidade de principiante aquilo era fascinante! Imaginei e desejei muito estar num lugar daqueles e fazendo aquilo um dia, isso se realizou com uma brevidade maior do que eu pensava. Não posso me queixar da minha juventude, apesar das dificuldades, se consegui o que eu quis, foi com muita humildade e perseverança. Muita coisas estavam por vir e eu começava bem, era preciso estudar as matérias do colégio e não relaxar com as obrigações, seguir os passos do livro para me construir e construir o mundo, e mais que isso, não esquecer a humildade recomendada por Jesus. Sendo o jovem que era, me descobrindo aos poucos, mesmo sem as idéias de vocação celibatária, certamente ia chegar aonde desejasse, e assim foi. Em setenta e sete nasce meu último irmão, o Francisco Luciano, que tem síndrome de down, sem esquecer que tenho mais dois irmãos naturais: uma parecida com a Wilma e o outro tem a cara do Ari Matéia, frutos das aventuras de papai com outras mulheres da cidade.
No estudo eu ia bem, graças a Deus, continuava fazendo as prazerosas serenatas, freqüentava o grupo de jovens, acompanhava as músicas da missa, ia à praia, ao rio. Na época das estiagens, outubro, novembro, chegava a atravessar o jaguaribe a nado, prá ir colher cajús no outro lado, perto da ponte. Em somente duas das minhas férias fui a lugares diferentes da Mata, uma foi à cidade de Cascavel, noutra à capital com o meu primo João josé que todos chamavam de Vevei. Em ambas ficávamos nas casas das nossas tias, irmãs da mamãe.
Em setenta e sete morreu meu avô da Mata, tio Áureo trouxe a nefasta notícia. A saúde do velho já não estava nada boa naqueles últimos meses. Eu quis ir com papai ao enterro mas ele não permitiu...sempre relembro meu avô, das vezes que fomos tirar mel de abelha nos troncos de árvores, seu jeito calmo de falar, e o seu gosto terno de ouvir as aves da nossa região... da hereditariedade daquele homem comedido era que certamente vinha a parte maior do meu gosto pela música. Por não ambicionar riqueza e ser despreocupado com as coisas da política se livrava de impasses, de desagrados que lhe pudessem tirar a paz. Se a despreocupação com o poder dos mandatários lhe dava calma e longevidade, com o descuido da saúde seus dias iam ser abreviados, aliás, isso acontecia com todos os moradores dali. Só iam a um médico quando a doença já estava instalada.
A casa da tia Isaura onde eu ficava na capital, era perto da praça da estação, ao lado de um muro da estrada de ferro. Na rua havia uns rapazes que também gostavam de violão e isso serviu para aumentar um pouco mais meus conhecimentos. Em setenta e oito, papai passou a trabalhar num frigorífico à margem do jaguaribe bem perto da ponte, era outra empresa e a vida continuava e pouca coisa mudava. Mas mudava sim de vez em quando. Todo fim de semana havia festa em algum dos três clubes da cidade. No colégio Marista as vezes havia festival de chopp. Bastava comprar uma caneca bonita daquelas e ir beber até não querer mais...
Uma vez fui com um grupo musical do saxofonista Bastião, animar uma festa noturna que acontecia num festival de pescaria no mês de setembro na vizinha Itaiçaba. O responsável pelo ensaio do grupo era um grande violonista da cidade, Monteiro Roland...não me esqueço da música de abertura que era um choro solado por ele: “ delicado”. Com o outro grupo, o Alta Tensão, fui animar a festas em outros lugares: Russas, Fortim, Parajurú... Íamos numa combi fretada que conduzia as caixas de som, instrumental e pessoal. As conversas eram divertidas tanto na ida como na volta, o guitarrista era grande loroteiro e dizia bem sério, saber de um remédio para a cura do “câncero” que era como ele pronunciava a palavra câncer. A interrogação dos outros vinha logo: qual é? Era o doente beber todo dia uma garrafa de cana, e aí vinha a risada geral.
Nesse mesmo ano, foi contratado pela prefeitura um sargento da polícia, um mestre que veio formar e fundar a banda de música da cidade. Era o Maestro Cordeiro. Fui um dos primeiros a me alistar para estudar música e nem aprendi a bater o compasso binário já estava com o instrumento, uma trompinha sax-shorn, que tocava as notas geralmente em contratempo nos dobrados. A inauguração foi no dia sete de setembro de 1978 e eu me apresentei à Marinha no dia onze do mesmo mês. Levei saudade dos amigos saudades lá de casa, do colégio, e dos grupos de música que fiz parte.