Recortes

Recortes

Toda a vida, toda ávida, desde muito menina, habituei-me a copiar trechos de livros, recortar revistas, anotando cuidadosamente ou colando em cadernos , até aproveitando livretos de propaganda para meus tesouros.Chamava a isso, Coleção de Belezas.A autoria, que considero sagrada, bem à mão.

Sempre achei que mesmo o autor mais medíocre, há de ter um momento de grandeza, insight ou originalidade total.Muitas vezes, li um livro inteiro, para dele sobrar, para a minha coleção, uma única frase ou oração.

Esses guardados muito me auxiliaram quando, mocinha,mantinha, na extinta Gazeta Comercial de Juiz de Fora, um página de domingo, muitas vezes dupla, no início intitulada Ribalta Lítero-artística, depois Carrossel e por fim, em parceria com o poeta Messias da Rocha,Gente, Letras e Artes...Mais tarde, casei-me por um tempo curto, com esse colega de redação e minha primeira poesia concreta sem dúvida, é nosso filho o bassman e desenhista Alessandro.O segundo,Gabriel, é filho de engenheiro, alguém que realmente entende muito de concreto e pouco de poesia, o segundo ex-marido...

Mas não era só Literatura.Tudo que me atraía era guardado.Assim, quando o jornalista e poeta Gelso Bertelli, de Visconde do Rio Branco, Minas Gerais, convidou-me para fazer a página A Voz da Mulher, em seu jornal(A Voz de rio Branco), foi fácil coordenar um mix de receitas culinárias e de glamour(é preciso que entendam que eu escrevia para a mulher da época,querendo libertar-se mas ainda muito presa às lidas domésticas) com novidades ,Arte e Literatura.Lembro que numa delas, para falar de Adolescência(anos mais tarde uma das minhas mais queridas especialidades, como psicóloga), coloquei o poema em prosa, do mineiro de Divinópolis, Lázaro Barreto, que iniciava de forma magnífica,o texto “QUERIDA”:”LENTAMENTE O PÓLEN SE ADENSANDO EM FLOR”, ao lado da poesia de Machado de Assis,”ESTÁ NAQUELA IDADE INQUIETA E BULIÇOSA/QUE NÃO É DIA E JÁ É ALVORECER/ENTREABERTO BOTÃO, ENTREFECHADA ROSA/UM POUCO DE MENINA E UM POUCO DE MULHER”...Poderia ainda ter colocado o xote cantado por Luiz Gonzaga:”(...)”MEIA COMPRIDA/VESTIDO BEM CINTADO/, NÃO QUER MAIS SAPATO BAIXO/ NEM QUER MAIS VESTIR TIMÃO”...Tinha tudo dobrado, recortado, copiado-de guardados,na memória ou recortes de revistas e jornais.Com a era do xerox, tudo que achava bom, xerocava para uso posterior-o que foi de muita utilidade para minhas pesquisas,na faculdade de Psicologia(o CES,Centro de Ensino Superior, em Juiz de Fora,lembrando que o último ano foi cursado na FUMEC-Faculdade de Ciências Humanas,em Belo Horizonte-MG).Acho que era a maior xeroteca da Paróquia...Rsss

Os mais jovens, ao lerem estas linhas hão mesmo de se espantar:hoje, tudo , num computador, pode ser armazenado, copiado em CD ou disquete,o volume minimizado.Em vez de “calhamaços” de papel(o termo há de estar em desuso, exceto, claro, nos cartórios, fóruns, delegacias, onde ainda se guarda muito papel, embora a informatização já permita reduzir a papelada),arquivos compactados....

Achava uma delícia descobrir velhos guardados, artigos de revistas antigas e novas, de “A Cigarra”e “O Cruzeiro”, que meu avô me dava,às novas publicações.Mas minha família é de muito mudar e eu própria, já adulta, viajei muito.Caixotes de pastas se perderam, preciosos xerox foram rasgados porque os homens das mudanças pensavam ser lixo, ou usavam para embalar louças e cristais...Quando fui para o Rio, após meu primeiro casamento,deixei, no quartinho de trabalho onde meu pai desenvolvia seu hobby, a eletrotécnica,muitos recortes, em especial jornais e jornais,excertos da gazeta Comercial de Juiz de Fora, da revista O Lince,onde escrevia na cidade de Juiz de Fora.Essa casa foi passada para minha irmã e a primeira providência de meu cunhado Mauro de Aquino foi...queimar a velharia, certamente temeroso de insetos e ratos em seu quintal, onde suas lindas crianças,tidas de um amor eterno por minha irmã Cleone(já são avós e ainda se namoram!)brincavam...Cheguei em lua de fel,ops, de mel, para levar esses citos guardados e...surpresa!Nem as cinzas...Como a Gazeta Comercial onde militei fervorosamente na imprensa, como quem come morangos e bebe água de coco,fechou, sei que apenas na biblioteca local, encontrarei, encadernados para a posteridade, exemplares diários de “A Tarde”(uma espécie de cópia vespertina do jornal principal) e da Gazeta dos saudosos Theo Sobrinho e Paulo Lenz.Ainda possuo, claro, alguns recortes amarelecidos pelo tempo, uns enviados por Vilcar, uma premiada pintora de Juiz de Fora(Elzira Vilela carneiro), quando precisei comprova esse trabalho)mas isso, é uma outra história)...

Noutro dia, a Irmã Josephina de Gusmão, minha frágil , encantadora e octagenária professora de português que me incentivou a carreira de escritora, tendo, inclusive, publicado uma de minhas redações, Sapatilhas e Botinas,na revista da Congregação,mandou-me a página ,em ótimo papel(couché),desse texto.Ao relê-lo, descobri que eu tinha uma filosofia de vida própria.Falava de militares e balerinas,como se antecipasse, poeticamente, os Anos de Chumbo,numa premonição-ela encomendara-me uma crítica literária...Isso me faz lembrar que noutro dia, encontrei meu nome cito por um colunista do website A Nave da Palavra, onde um escritor chamado José Luís enumera os melhores críticos literários do país.E lá estou eu.O achado deu-me um contentamento grande:então, a menina que escrevia, era lida.E aprovada.É certo que as grandes editoras de então que me mandavam seus livros para minhas críticas,deviam confiar em mim, pois foram anos de permuta:a José Olímpio,do Rio,(onde Ismênia Dantas mandava-me o supra sumo de suas edições), a Difel,a Laudes, a Coordenada Editora de Brasília, a Vozes de Petrópolis,a Globo, do Rio Grande do Sul-entre outras o que me possibilitou trocar linhas com autores, de Veríssimo(o pai,Érico,que em Gato Preto em Campo de neve falava de seu filho tímido e adolescente, o Fernando grisalho e calvo cronista que todos agora aplaudem,inclusive eu, apaixonada pelo gênero)a Raquel de Queiroz,de Drummond a Malba Tahan,de JG de Araújo Jorge a dezenas de outros poetas, até os de cordel, como o festejado Rodolfo Coelho Cavalcanti(de Jequié, Bahia), que me pediu para desenhar umas capas para seus livretos.Àquela época, trocávamos cartas.Às vezes telegramas.Correspondência nacional e internacional, pois nomeram-me delegada do Instituto de Cultura Americana e da ARIEL(Associação de Livres Pensadores).Então, além dos recortes perdidos, perdi todo um documentário epistolar, embora ainda guarde alguma coisa que por sorte, estava com minha mãe.Claro, uma parte das missivas era censurada.Ou não chegava às mãos dos destinários...O barão Elias Domit, Presidente Internacional do ICA, puxava-me as orelhas por correspondência,, porque os recortes,cartas e relatórios da ”Srta de Araújo” chegavam-lhe além de atrasados, sem data(!), razurada(AH!( e etc..),sem desconfiar que os envelopes eram abertos, retardados...O intercãmbio internacional perdia muito, com isso, mas nada podíamos fazer...A censura existia, inexoravelmente:ou era camuflada,ou aberta,côo forma explícita/implícita de repressão...

Até hoje, o verbo deletar me assusta.parece-me a maior falta de respeito “deletar” algo de alguém.Provavelmente associo ao um saber terrível daquela época:assim como escritos eram “deletados”, pessoas o eram também...Quando iniciei-me na Internet, queria guardar tudo.Por ignorância também perdi muitos textos escritos diretamente na telinha, sem tê-los salvos.

Na verdade, espero que em algum lugar, numa galáxia qualquer do Cosmos, alguém se pareça com a jovem que guardava recortes e esteja guardando meus escritos perdidos nesse bichinho tecnológico...Num plano mais adiantado do Universo, certamente algum Arcanjo de alta hierarquia,recorta e guarda, num grande álbum de luz, todos os versos dos poetas hodiernos,não escritos no papel.Talvez após fechar os olhos , nesta dimensão, tenhamos acesso a incríveis máquinas que armazenem todo o nosso imaginário e produções literárias...Ou, quem sabe, cartas de amor em segredo...Nossa!Vou passar o resto da minha eternidade me encontrando comigo mesma...Rsss