Atrás do lixo, o homem

Enos Antunes do Amaral vivia em meio a 16 toneladas de materiais considerados lixo pela Prefeitura e para ele, não: Tudo tinha utilidade

Quem encontra pela primeira vez Enos Antunes do Amaral, um morador da cidade de Porangaba (a 80 km de Sorocaba), diz que ele é o retrato da solidão. Aos 62 anos, solteiro, sem filhos, Enos jamais esquecerá o dia 9 de novembro de 2006, quando funcionários da Vigilância Sanitária entraram na sua casa, retiraram 16 toneladas de lixo e interditaram a moradia. Pastas recheadas de papéis, 890 a mil livros, fotos, televisão, uma balança, um ventilador, uma roda de charrete, uma coleção da revista Playboy, todo esse material ocultou o homem por mais de 20 anos. Ao ao ser retirado da casa em 53 viagens de caminhão, o lixo acabou por revelar a figura de Enos: autodidata, pesquisador, fotógrafo, artista plástico, sonhador.

Ele rebate a classificação de lixo para o material que tinha em casa: Não tem valor para eles (funcionários da Vigilância Sanitária). Para mim tinha valor. Preocupado com qualquer diagnóstico de loucura na sua mania de acumular tantos papéis e objetos em casa, Enos garante que está em plena sanidade. Desde a interdição da casa, passou alguns dias numa pousada e vive agora em um abrigo cedido pela administração municipal. Enquanto isso, aguarda a autorização para voltar ao teto que o abrigou por 54 anos no número 311 da rua 4 de Junho, a principal da cidade.

Como contraste, o que para a Vigilância Sanitária é lixo e questão de limpeza pública, para Enos é material de pesquisa de imenso valor histórico e cultural e a retirada dos livros e outras peças significou uma tragédia. Eu vejo utilidade em tudo, ele diz. Muitas peças faziam parte de seus projetos de montagem de esculturas de ferro. Ele lamenta: O pessoal não dá valor para um pedaço de ferro, mas é um pedaço de ferro que às vezes resolve um problema.

Um pesquisador

Até o dia em que sua casa foi interditada, Enos pesquisava a história do protestantismo na região sul do Estado de São Paulo. Havia juntado livros, documentos, fotos. Agora não sabe se terá condições continuar o trabalho. As fotos contavam a história do desenvolvimento do protestantismo na região de Porangaba. Entre os livros, havia muitos sobre histórias das igrejas e do protestantismo no Brasil. Papéis que, segundo a Prefeitura, estavam contaminados por sujeira, foram incinerados. Para Enos, isso é dilapidação.

O interesse pela pesquisa do protestantismo tem relação com a origem da família de Enos. Seu pai, Paulo Antunes do Amaral e seu irmão, Eudir Antunes do Amaral, ambos já falecidos, eram protestantes. Sua irmã Eulina Antunes do Amaral, de 72 anos, pertence à mesma linha religiosa.

Na sua pesquisa, Enos quer descobrir por que a família Amaral Camargo, que tinha origem em Porto Feliz, tornou-se protestante ao se instalar em Porangaba. Ele garante que um grupo de pessoas dessa família, em conjunto com outras famílias, fundaram a igreja protestante em Porangaba em 1890. Em 1903, a família optou pelo ramo da presbiteriana independente. Enos também tinha planos de escrever o roteiro de um filme sobre a vida do pastor José Zacarias de Miranda, um dos primeiros pastores brasileiros da igreja presbiteriana.

Ele não sorri

Segundo descrição da Prefeitura, a equipe da Vigilância Sanitária encontrou a casa transformada num depósito de lixo. Havia sucata, papel velho, gatos mortos, restos de alimentos, ratos, fezes humanas. Enos não contesta a sujeira, mas nega que a existência de animais mortos. Havia só um gato, chamado Cinzão, que está na casa. Outros seis cachorros estão abrigados num canil na área rural da cidade.

Em meio ao cenário, estava a irmã Eulina, que não tomava banho havia meses e foi transferida para a casa de parentes em Votorantim. Enos diz que entregava água para a irmã tomar banho. Ele admite que não tomava banho diariamente, mas pelo menos a cada dois ou três dias. Agentes sanitários se sentiram mal e tiveram que ser medicados após trabalharem na limpeza da casa. O prefeito Benedito Machado Neto (PSDB) esteve no local e se espantou com o que viu.

Enos usa boné preto sobre os cabelos brancos e a barba por fazer. Veste camiseta branca e calças e sapatos marrons. Ele não sorri. Os olhos são tristes. Segurando nas mãos uma pasta preta, caminha a passos lentos.

Homem de livros

Enos dá aos livros um destaque à parte: Além dos volumes sobre protestantismo, havia muita literatura e ensaios. Um volume reunindo os romances e novelas de Franz Kafka, o autor de A Metamorfose e O Processo. Havia Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, escritor russo que é autor do clássico Crime e Castigo.

Passados 22 dias da interdição da sua casa, ele se prepara para ver o seu material pela primeira vez num galpão da Prefeitura. E tem receio: E se eu achar muita falta de material lá, como é que fica? No galpão, diante dos seus objetos, ele identifica alguns livros. Um título se destaca na capa de um livro: A tragédia do homem, peça teatral de Henry Madach.

Ele identifica um volume do teólogo americano Harvey Cox: Há três livros dele aí. Um dos títulos de Cox está à mostra: Que a serpente não decida por nós. Cox, segundo ele, é o teólogo da secularização: É o processo que colocou o homem dentro da vida moderna. Os outros dois títulos são citados por Enos: Festa dos Foliões e Cidade do Homem. Um volume de Kal Marx, o criador do marxismo. Ele não encontra quatro cadernos nos quais registrou os resumos e a identificação editorial dos livros.

Ao sair do galpão, caminha de cabeça baixa, em silêncio. Perguntado sobre como se sente, ele diz: Abalado. Não podia ter acontecido isso. Sua figura, diante da fachada envelhecida da casa fechada por tapume, se impõe de tal forma que deixa o lixo em segundo plano.

Carlos Araujo - Jornal Cruzeiro do Sul

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Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 06/12/2006
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