Eu calço é 39, meu pai me dá 36.
Quando eu era criança meu pai sempre dizia, e não perdia a oportunidade de dizer, em meio seus devaneios ilícitos, e descontrolados conceitos da realidade, e a longitude da sobriedade, e a implícita derrota,
mesmo com seus equivocados pensamentos, e mesmo pensando que era um coronel aposentado, nas épocas de suma e supra aceitação do estado ébrio:
"Minha filha cuida com o que tu faz, por que tu tá marcada.
Tu tens a marca, esse corte na tua cara, o olho. As pessoas vão te reconhecer onde tu andar. Por que tu tá marcada. Então não faz coisa errada na rua. Não pega o que é dos outros. Não mente.
Por que a gente colhe, aquilo que a gente planta."
Os anos se passaram e a cada dia, tudo o que o meu velho
dizia não adiantar falar pra mim, com a argumentação que me entrava por um tímpano e saía por o outro. Por que falar comigo, é o mesmo que falar com um cachorro.É sempre tive dificuldade em prestar atenção. Dos quatro filhos que a minha mãe teve, sou a única desajustada, opiniosa, sugestiva, equivocada, teimosa, do humor irreverente, que fala alto e encara olhando nos olhos do sujeito.
Mas queria que você acreditasse em mim, por que ouvi seus ensinamentos e segui. Tudo quanto acho lúcido. Por que você me traz a sensação de ódio e carinho, súbito. Escutar um sermão durante uma manhã toda, até a hora de ir ao colégio. E também depois que eu voltava. E durante o final de semana. Parecia interminável,
e sem sentido. Mas eu segurei aqui na minha garganta o choro,
por cada palavra afiada, cada palavra mal(dita), e maldita por assim dizer.
Ninguém sabe o valor de uma guerra, sem nunca ter posto o pé na lama, sem nunca ter levado um tapa na cara, ou um soco no estômago. Não se sabe o valor que se tem, antes de se aprender a prender o choro na garganta, quando se está sendo vaiado no pátio da sua escola, aos seis anos de idade. Certamente não conhece o valor de uma guerra, quem nunca encarou de peito aberto uma vaia,
um deboche, um esculacho público, uma traição, um abandono.
Por que todos pensam que me conhecem, e me reconhecem
quando eu ando por aí. Mas quem sabe das feridas que eu tenho?
Para que o meu nome esteja na boca suja, dessa gente
que desumanamente julga, dispara e não sente o gosto do sangue na garganta.
Por que lutamos pelos motivos errados. Por que apesar de toda frieza que congela o nosso corpo, que faz com que não tenhamos compaixão ao ver alguém morrer, pedindo a nossa mão. Eu acredito na recuperação do ser humano. E o que mantém de pé, é a esperança
de ter dias melhores, e de paz.
Por que já não me esquivo dos fatos. Estou marcada.
O titulo tem haver com uma música do Raul Seixas.
Que eu pessoalmente gosto muito. Sapato 36 é o nome.
Ao som de quem eu já pranteei muitas vezes.