Fascinado por chuvas I e II

Agamenon violeiro

Fascinado por chuvas

prefácio

Se hoje me decidi a contar algumas passagens da minha vida, foi por considerar que isso vale a pena. Sinto que é humano e muito bom saber dos outros, o que pensam, o que sentem, como enxergam o mundo. Vamos vivendo e aprendendo com as experiências e cada acontecimento pode ser mais que uma simples história. Eu nem falo muito das conclusões que cheguei, escrevo os acontecimentos que, a alguns podem parecer sem importância como um nevoeiro ou uma chuva fina, a outros, talvez eu cause diferente impressão, quem sabe melhor. Se escrevo sobre mim, não é só pelo prazer que me proporciona trazer à tona algumas lembranças minhas, é também para que outros possam sentir ou ter alguma impressão do que comigo se passou. Não me atrevo a fazer nesse pequeno relato nenhuma mistura com ficção, pelo simples fato de não ver caber aqui artifícios de invencioneiro. Sei, nem tudo interessa a todos... escrevo para quem quiser se dar ao ato de ler, se não for hoje, pode ser amanhã, o livro espera. Aos que lerem, faço votos que gostem, aos que não leram, espero que leiam!

Agamenon Viana da Silva, Russas, julho de 2010.

I

É com o início das aulas no começo do ano, o que às vezes coincide com as chuvas do que chamamos inverno, que desperto prá um recomeço, como na época em que freqüentava a escola. O que me faz me sentir melhor não é só esse reinício das atividades e o deleite de sentir a chuva fazendo renascer o campo e a paisagem, é também e principalmente o desejo, o renascer da vontade de viver que em mim é muito intensa. Sinto uma grata satisfação por existir, verdade, insisto nesse ramerrão de gratidão pela existência e creiam, é verdade.

Sou interiorano, cearense, morei em algumas cidades grandes do Brasil e me adaptei como pude, parece mesmo que Deus dá o frio conforme o cobertor.

Meu pai se chama Francisco, o chamam de Chico João e é filho de camponês. Além do gosto pela caça, admira a leitura e a música, eu o considero um poeta, embora ele não tenha escrito versos. É um apreciador das artes, meio indiferente à laboriosidade, mas trabalhou o suficiente para conseguir a aposentadoria. Papai e mamãe se conheceram no Aracati, quando ele estudava por lá no colégio Marista. Minha mãe se tornou professora e dona de casa, possuía um grande instinto materno aliado à moral Cristã e à rigidez de uma família educada ainda no relho de couro cru e na palmatória.

Meu avô paterno, era conhecido por João Luis, homem do campo, possuidor de umas dezenas de hectares, vivia da agricultura doméstica e da exploração da carnaúba. Nasceu pouco antes da chegada do século XX, e deixou o vale do Jaguaribe em companhia do pai na estiagem de 1915, para se fixarem na Mata Fresca. Era alto e esguio, meio índio, puramente sertanejo, atento a tudo quanto é coisa do mato... lembro-me do som produzido pelo maracá da cascavel, quando nós, ele, eu e o nego Zé, íamos pela vereda da cacimba e ele gritou atrás de mim: é uma cobra! Paramos assustados. Era tardezinha, já nem se via mais o sol por detrás da mata de jurema... enrolada bem à minha frente estava a bicha venenosa, de vez em quando estertorando o chocalho. Foi morta a pauladas pelo velho, que depois, ainda extraiu o maracá. O nego Zé e eu ouvimos dele naquela tarde que cada chocalho do maracá representava um ano de vida da serpente... o meu avô, se dizia curado de cobra, e isso eu não sabia bem o que queria dizer, mas dizem que quem é curado de cobra, pode ser mordido por uma venenosa e não ser envenenado, outros dizem que um curado de cobra, se cuspir na boca de uma serpente, ela é quem morre. Essas coisas são ditas por pessoas dos matos e o meu avô se dizia curado, do mais não sei, sei que aquele acontecido foi comentado no caminho de volta e em casa, que uma cascavel quase ia me dando um bote, ante as exclamações de espanto da minha avó paterna e da sua irmã, a cachimbeira Odeta.

__ Valha-me nossa Senhora! ói que uma coisa dessa! Uma cascavel quage ia mordendo o menino!

Eu devia ter uns sete anos.

II

Lembro-me de outra tarde por essa época de estar sentado no chão do saleta lá de casa ao lado de minha mãe, enquanto ela tecia numa grade uma grande toalha de labirinto, ia me ensinado as letras do alfabeto numa cartilha. Eu me distraia do aprendizado quando meu avô passava arrastando umas varas de cana ainda com palhas, me impacientava pra ir vê-lo dar de comer ao gado. Eu gostava de ver os bois bebendo água naquela avidez e grande sucção, gostava de vê-los mastigando a cana, e achava bom sentir o cheiro da cana que se misturava ao cheiro dos animais. Tenho mantido o hábito de sentir os cheiros de folhas de certas plantas, os odores de muitas delas, desde a minha infância me perseguem. Por onde ando e encontro um cajueiro, tenho a mania de arrancar uma folha, amarroto-a pra cheirar, isso se dá com a pinha, com o capim santo, a cidreira, as flores em geral, especialmente a do bogari, o mastruz e até mesmo com a palha de carnaúba. Naqueles momentos de distração, minha mãe era severa comigo e não aliviava no muxicão. Lembro-me dela ainda por esse tempo, professora da prefeitura, em pé com algumas alunas ao redor da mesa na mesma saleta, e todas entoando o hino nacional brasileiro, antes de iniciar a aula. Como gostei daquilo! A música me despertava e já me fazia feliz... a beleza da melodia, o som das vozes, tudo me dava uma nova e boa sensação.

Hoje, ao ler um poema do Patativa chamado “Chiquita e Mãe veia” com grande nitidez me vem à memória e revivo outras novas e inesquecíveis sensações, talvez por serem as primeiras, que uma criança pode sentir, ao se ver envolvida com a ternura do querer bem. Talvez eu tivesse a mesma idade... só sabia que ela tinha vindo de Mossoró com uma tia minha, e ainda era parenta da gente pelo lado da vovó, se chamava Edinha e devia ter a minha idade ou menos. Era época de férias, começo de ano, e as águas da chuva que desde essa época já me fascinavam, faziam lagoas pelas estradas e as noites eram frias. Mas a menina Edinha parecia ter vindo para esquentar tudo, ela era mais agitada que a gente, era graciosa e espevitada, observava tudo ao redor e coisas que sempre passaram despercebidas para nós como o ato de uma galinha por um ovo num quarto de casa, a menina não deixava passar e corria pra dar a notícia a minha mãe, e aquilo parecia nos chamar à atenção também. Ela brincava com a minha irmã, comigo e com o meu irmão Jackson, era de uma meiguice tamanha que fascinava a todos, até um vendedor de pão que vinha da Cacimba Funda ao vê-la, perguntou a minha mãe se ela não dava aquela menina pra ele criar. Pra nós, crianças que não tínhamos outras com quem brincar, Edinha foi como o melhor presente que recebemos naqueles dias. O tempo que ela nos fez companhia naquelas férias foi inesquecível para mim. Quando o jipe passou na curva da quixabeira, levando-a de volta prá cidade, era como se levasse um pedaço de cada um de nossos corações. Jamais a esqueci, e gostaria tanto de revê-la, mas o mais triste e dramático de tudo isso é que sei dessa impossibilidade. Aquela terna mocinha não teve a felicidade de chegar à adolescência... Edinha se encantou ainda menina, pra tristeza minha e de todos que a conheceram.

Meu avô materno, sério e trabalhador, era Viana, descendente de portugueses, de média estatura, alvo, tropeiro e fervoroso católico. Negociava pelo vale do Jaguaribe, vendendo aguardente. Era homem moralista, falava alto e quando descia do cavalo vindo das viagens, entrava em casa pelo portão do quintal que parecia um coronel de patente, bradando incongruências que, com meus oito anos eu não entendia, porém sentia que eram recriminações a algum auxiliar ou coisa parecida, algo a ver com a tropa de burros. Depois de esfriar o sangue, a pitada do rapé o banho e a refeição, o homem se acalmava tomando o café forte, torrado e pilado em casa, e aí minha avó era quem dominava o monólogo, enquanto ele ria um risinho calado e sereno com os pés dentro de uma bacia de água morna. Aquele cidadão sóbrio viveu mais de cem anos e ela menos de oitenta. Esses meus outros ascendentes eram cheios de certas dignidades. Alguns anos depois quando viemos morar na cidade, algumas irmãs de mamãe, reprovavam o meu gosto pelo violão, falavam com desprezo dos que consumiam cachaça como o meu pai e o velho Chico Aldenor Porto, casado com a tia Júlia, irmã de mamãe. Não gostavam e não aturavam malcriações e desobediências dos jovens filhos, meninos ou meninas. Algumas dessas minhas tias usavam com maestria a palmatória e na hora da flagelação, mal se ouvia seus sussurros, enquanto o filho ou a filha padecente gritava mil desculpas, era advertida prá chorar com palavras suaves tipo --- “ chore meu filho, isso é prá você nunca mais me desobedecer”... o baque dentro do quarto era violento aos meus ouvidos de menino e o terror se apoderava também de mim, apesar de não estar sentindo nenhuma dor, meu coração se acelerava. Algo parecido senti outro dia, quando ainda nessa idade assisti pela primeira vez uma apresentação de calungas na casa de Tereza Penha, uma moradora da Mata. Na cena um boneco brigava com outro, com voz muito cavernosa e por fim matava o companheiro com punhaladas brutais. Aquela cena, devia ser proibida para meninos... era no mínimo imprópria para a minha sensibilidade. Imagino hoje que aquelas minhas tias do Aracati, cultivavam alguma forma de sadismo hereditário, todos daquela família tinham sido criados sob o corretivo severo do relho de couro cru da minha avó materna. Aqueles acontecidos chegavam ao meu ouvido contados pela minha mãe e por todos os outros meus tios. Ali, em plena ditadura dos anos sessenta, a tradição dos açoites ia sendo transmitida de mãe para filha ao som das vozes serenas e das mãos pesadas. Posso até dizer coisas mentirosas que me foram ditas, como posso omitir o que julgo necessário não contar, mas inventar não é o meu caso. Castigar alunos nas escolas ainda era corriqueiro naqueles dia. Essas minhas mãos, que hoje escrevem, na adolescência sentiram o peso da palmatória na sabatina de tabuada do Externato Kennedy do professor Régis.

Meu avô da Mata custeava os estudos do meu pai no colégio Marista de Aracati nos anos cinqüenta. Papai era hóspede da pensão de Zé cabeça de bagre e recebeu de presente do meu avô uma bicicleta Phillips... naquela época eram poucos os que dispunham de transporte tão moderno. Um dia a bicicleta de meu pai foi roubada e a polícia foi a procura dos ladrões e os encontraram bem perto de Limoeiro. A família do meu avô era, para o interior onde moravam, uma família abastada naquela metade de século, basta dizer que seu João Luiz da Mata, meu avô, foi o primeiro a possuir uma nota de conto de réis na região. Naqueles anos em que a cera de carnaúba era valorizada, as vacas engordavam prá ele.

Meu pai estudou até o segundo ano do ginásio, serviu o tiro de guerra, namorou um bocado de moças pela cidade e ainda na casa dos vinte e poucos anos conheceu a minha mãe e se casaram sem delongas, isso porque já era de maior e pelos costumes do meu avô, homem sem ambições pra ter doutores na família estava tudo certo. – “ Quer se casar meu filho? pois tá bom! ” . Os recém casados moraram alguns meses na praia de Quixaba e depois se mudaram pra Mata onde lá na casa pequena de frente pro nascente cujos vizinhos era enormes juazeiros e cajueiros, nasceram pelas mãos da parteira Maria Cambota, minha irmã mais velha e eu. Os outros cinco irmãos que tive nasceram em maternidade, o Antonio Jackson, o Isac, o José de Ari matéia, a Eva Wilma e finalmente o Francisco Luciano, todos de parto normal. O Jackson sempre foi traquino e mexia com os animais, é tanto que um jumento de papai, o rouxinho, certa vez se viu acossado pelo meu irmão que chegou a morder-lhe o braço, nesse dia vi papai dar boas umas pancadas no animal.

Papai possuía um rádio à pilha jonhson valvulado de quatro faixas, à noite emitia um som muito puro...menino gosta de algazarra, e papai, nos mandava calar no momento em que o locutor da “voz do Brasil” falava alguma notícia do seu interesse. Foi, certamente numa daquelas noites que foi noticiada as mudanças políticas que ocorreram no país na década de sessenta, mas isso não significava nada pra mim.

Aviso aos amigos leitores do RL que a continuação desse meu relato estará em breve disponível em e-book no amazon.com. Não deixem de ler. Um abraço e até logo.

Agamenon violeiro
Enviado por Agamenon violeiro em 22/06/2011
Reeditado em 09/10/2015
Código do texto: T3051362
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