Clara Pandolfo, uma pioneira em defesa da floresta
Por Murilo Fiuza de Melo*
Este ano os paraenses terão a oportunidade de conhecer a história de uma das maiores cientistas do Estado no século 20, e que nos deixou em 2008, aos 97 anos, ainda lúcida. Falo de Clara Pandolfo, a grande homenageada na Mostra de Ciência e Cultura 2011, organizada pela Secretaria de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia (Sedect), e que começa a percorrer várias cidades paraenses este mês. A mostra antecede a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, evento de divulgação científica organizado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia desde 2004 e que este ano ocorre em outubro.
Clara era filha do comerciante português Albano Martins, que se mudou para Belém no fim do século 19 atraído pela borracha, com a paraense Judith Barreau, neta da irmã do seringueiro e jornalista Eduardo Angelim, um dos líderes da Cabanagem. Em quase tudo que fez, foi pioneira. Em 1926, aos 14 anos, ingressou na antiga Escola de Química Industrial do Pará, cujo diretor era o naturalista francês Paul Le Cointe, um dos maiores pesquisadoras da flora amazônica na primeira metade do século 20.
A escola durou apenas 10 anos, entre 1920 e 1930, e neste período somente nove alunos se formaram. O curso exigia muita dedicação, com aulas em tempo integral, ministradas em francês e português. Clara foi a primeira mulher a se formar em química na região Norte e uma das cinco do país, ainda em 1929. Anos mais tarde, a ex-aluna de Le Cointe liderou o movimento pela reabertura da Escola, o que aconteceu em 1956, graças ao apoio financeiro do Estado e da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), intermediado pela cientista, então funcionária da autarquia. Logo depois, a escola foi federalizada e incorporada à UFPA, onde está até hoje.
Clara sempre defendeu que a química era uma ciência importante para entender a biodiversidade da Amazônia. E como professora, cujo magistério exerceu por mais de 20 anos em colégios de Belém e na própria UFPA, achava que esta ciência deveria ser dominada e exercida por pessoas da própria região – não por ser tratar de mero bairrismo, mas por acreditar que era preciso formar mão de obra localmente, em prol do progresso científico da região.
Mas foi nos principais órgãos federais de desenvolvimento regional da Amazônia – a SPVEA e a sua sucessora, a Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) – onde Clara desenvolveu suas principais pesquisas. Na SPVEA, ainda no início dos anos 60, conseguiu que fosse assinado um acordo com o Institute de Recherches Pour Les Huilles et Oléagineux (IRHO), da França, para a implantação de um projeto experimental de cultura do dendê. O projeto foi incorporado pela Sudam, que desenvolveu uma plantação na estrada do Mosqueiro, nos anos 70. Apesar das críticas que recebeu – muitos o ironizavam, dizendo que Clara queria “levar o acarajé para o Pará” – o plantio se mostrou viável economicamente. A experiência abriu as portas para esta cultura no Estado, hoje o maior produtor de dendê (ou óleo de palma) do Brasil, considerado o biodiesel de melhor resultado econômico – 10 vezes mais produtivo que a soja!
Como diretora de Recursos Naturais da Sudam, Clara foi uma das maiores incentivadoras do desenvolvimento tecnológico na região. Realizou convênios com universidades do Sul do país, com o intuito de formar engenheiros florestais, importantes para as pesquisas que eram empreendidas pelo órgão. Nunca deixou que o trabalho do Centro de Tecnologia Madeireira da Sudam, em Santarém, e as pesquisas silviculturais da Estação Experimental de Curuá-Una, criados graças a um convênio com a FAO (agência da ONU para a agricultura e alimentação), fossem abandonadas. Em Curuá-Una, foram desenvolvidas as primeiras pesquisas com manejo florestal com espécies amazônicas. Até então, havia dúvidas se isso seria viável pela alta heterogeneidade da região - o INPA, por exemplo, tem catalogado mais de 11 mil espécies de madeiras e a indústria comercializa somente 350.
Os trabalhos desenvolvidos em Curuá-Una foram fundamentais para Clara criar um plano de exploração sustentável da floresta, ainda nos anos 70, chamado Florestas Regionais de Rendimento. A ideia era instituir 12 áreas na Amazônia, que seriam concedidas à iniciativa privada para exploração madeireira por meio de manejo florestal sustentável, sob fiscalização de uma empresa pública criada para este fim. Tais florestas seriam entrecortadas por áreas indígenas, de preservação, parques nacionais e outras unidades de conservação. A intenção era buscar racionalizar a exploração madeireira e mostrar que, com o manejo sustentável, seria possível explorar a floresta infinitamente.
O projeto foi inicialmente apresentado em 1974, como uma das metas do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), do governo Geisel, e, depois, publicado em livro, em 1978, sob o título A Floresta Amazônica Brasileira – enfoque econômico-ecológico. Pela primeira vez, eram utilizados os dois conceitos juntos, então aparentemente antagônicos, para se falar de “desenvolvimento racional” - bem antes, portanto, da expressão “desenvolvimento sustentável”, criada pela Comissão Brundtland, da ONU, nos anos 80, e hoje largamente adotada.
Na época, o projeto de Clara foi bombardeado pela direita e pela esquerda. A direita achava-se ameaçada, por acreditar que a adoção das Florestas de Rendimento iria diminuir o espaço destinado ao gado e à agricultura, enquanto a esquerda via o projeto como uma saída para a “internacionalização da Amazônia”. O fato é que, apesar das críticas, em 1979, o presidente João Figueiredo criou uma comissão, com especialistas de vários órgãos e universidades, entre os quais a própria Clara, para estudar um projeto de lei que visasse ao planejamento de ocupação sustentável da Amazônia. A comissão produziu um projeto muito avançado para a época, que previa a concessão de florestas públicas e o zoneamento ecológico-econômico da Amazônia.
Figueiredo o enviou à Câmara no fim de seu mandato, em 1984. Em 1995, entre idas e vindas nas comissões da Casa, o projeto acabou sendo arquivado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia da concessão florestal à iniciativa privada foi retomada somente em 2006, na gestão da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva – com a aprovação da Lei 11.284, que recriou, entre outras coisas, o Serviço Florestal Brasileiro, hoje responsável pela gestão das concessões públicas. Por tudo que realizou, Clara foi uma cientista muito à frente do seu tempo, uma pioneira em defesa da floresta.
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*Jornalista e historiador
Nota: O artigo vai reproduzido neste sítio com expressa autorização do Autor. Publicado na ed. de Domingo, 19 de junho de 2011, do jornal Diário do Pará
Por Murilo Fiuza de Melo*
Este ano os paraenses terão a oportunidade de conhecer a história de uma das maiores cientistas do Estado no século 20, e que nos deixou em 2008, aos 97 anos, ainda lúcida. Falo de Clara Pandolfo, a grande homenageada na Mostra de Ciência e Cultura 2011, organizada pela Secretaria de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia (Sedect), e que começa a percorrer várias cidades paraenses este mês. A mostra antecede a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, evento de divulgação científica organizado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia desde 2004 e que este ano ocorre em outubro.
Clara era filha do comerciante português Albano Martins, que se mudou para Belém no fim do século 19 atraído pela borracha, com a paraense Judith Barreau, neta da irmã do seringueiro e jornalista Eduardo Angelim, um dos líderes da Cabanagem. Em quase tudo que fez, foi pioneira. Em 1926, aos 14 anos, ingressou na antiga Escola de Química Industrial do Pará, cujo diretor era o naturalista francês Paul Le Cointe, um dos maiores pesquisadoras da flora amazônica na primeira metade do século 20.
A escola durou apenas 10 anos, entre 1920 e 1930, e neste período somente nove alunos se formaram. O curso exigia muita dedicação, com aulas em tempo integral, ministradas em francês e português. Clara foi a primeira mulher a se formar em química na região Norte e uma das cinco do país, ainda em 1929. Anos mais tarde, a ex-aluna de Le Cointe liderou o movimento pela reabertura da Escola, o que aconteceu em 1956, graças ao apoio financeiro do Estado e da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), intermediado pela cientista, então funcionária da autarquia. Logo depois, a escola foi federalizada e incorporada à UFPA, onde está até hoje.
Clara sempre defendeu que a química era uma ciência importante para entender a biodiversidade da Amazônia. E como professora, cujo magistério exerceu por mais de 20 anos em colégios de Belém e na própria UFPA, achava que esta ciência deveria ser dominada e exercida por pessoas da própria região – não por ser tratar de mero bairrismo, mas por acreditar que era preciso formar mão de obra localmente, em prol do progresso científico da região.
Mas foi nos principais órgãos federais de desenvolvimento regional da Amazônia – a SPVEA e a sua sucessora, a Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) – onde Clara desenvolveu suas principais pesquisas. Na SPVEA, ainda no início dos anos 60, conseguiu que fosse assinado um acordo com o Institute de Recherches Pour Les Huilles et Oléagineux (IRHO), da França, para a implantação de um projeto experimental de cultura do dendê. O projeto foi incorporado pela Sudam, que desenvolveu uma plantação na estrada do Mosqueiro, nos anos 70. Apesar das críticas que recebeu – muitos o ironizavam, dizendo que Clara queria “levar o acarajé para o Pará” – o plantio se mostrou viável economicamente. A experiência abriu as portas para esta cultura no Estado, hoje o maior produtor de dendê (ou óleo de palma) do Brasil, considerado o biodiesel de melhor resultado econômico – 10 vezes mais produtivo que a soja!
Como diretora de Recursos Naturais da Sudam, Clara foi uma das maiores incentivadoras do desenvolvimento tecnológico na região. Realizou convênios com universidades do Sul do país, com o intuito de formar engenheiros florestais, importantes para as pesquisas que eram empreendidas pelo órgão. Nunca deixou que o trabalho do Centro de Tecnologia Madeireira da Sudam, em Santarém, e as pesquisas silviculturais da Estação Experimental de Curuá-Una, criados graças a um convênio com a FAO (agência da ONU para a agricultura e alimentação), fossem abandonadas. Em Curuá-Una, foram desenvolvidas as primeiras pesquisas com manejo florestal com espécies amazônicas. Até então, havia dúvidas se isso seria viável pela alta heterogeneidade da região - o INPA, por exemplo, tem catalogado mais de 11 mil espécies de madeiras e a indústria comercializa somente 350.
Os trabalhos desenvolvidos em Curuá-Una foram fundamentais para Clara criar um plano de exploração sustentável da floresta, ainda nos anos 70, chamado Florestas Regionais de Rendimento. A ideia era instituir 12 áreas na Amazônia, que seriam concedidas à iniciativa privada para exploração madeireira por meio de manejo florestal sustentável, sob fiscalização de uma empresa pública criada para este fim. Tais florestas seriam entrecortadas por áreas indígenas, de preservação, parques nacionais e outras unidades de conservação. A intenção era buscar racionalizar a exploração madeireira e mostrar que, com o manejo sustentável, seria possível explorar a floresta infinitamente.
O projeto foi inicialmente apresentado em 1974, como uma das metas do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), do governo Geisel, e, depois, publicado em livro, em 1978, sob o título A Floresta Amazônica Brasileira – enfoque econômico-ecológico. Pela primeira vez, eram utilizados os dois conceitos juntos, então aparentemente antagônicos, para se falar de “desenvolvimento racional” - bem antes, portanto, da expressão “desenvolvimento sustentável”, criada pela Comissão Brundtland, da ONU, nos anos 80, e hoje largamente adotada.
Na época, o projeto de Clara foi bombardeado pela direita e pela esquerda. A direita achava-se ameaçada, por acreditar que a adoção das Florestas de Rendimento iria diminuir o espaço destinado ao gado e à agricultura, enquanto a esquerda via o projeto como uma saída para a “internacionalização da Amazônia”. O fato é que, apesar das críticas, em 1979, o presidente João Figueiredo criou uma comissão, com especialistas de vários órgãos e universidades, entre os quais a própria Clara, para estudar um projeto de lei que visasse ao planejamento de ocupação sustentável da Amazônia. A comissão produziu um projeto muito avançado para a época, que previa a concessão de florestas públicas e o zoneamento ecológico-econômico da Amazônia.
Figueiredo o enviou à Câmara no fim de seu mandato, em 1984. Em 1995, entre idas e vindas nas comissões da Casa, o projeto acabou sendo arquivado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia da concessão florestal à iniciativa privada foi retomada somente em 2006, na gestão da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva – com a aprovação da Lei 11.284, que recriou, entre outras coisas, o Serviço Florestal Brasileiro, hoje responsável pela gestão das concessões públicas. Por tudo que realizou, Clara foi uma cientista muito à frente do seu tempo, uma pioneira em defesa da floresta.
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*Jornalista e historiador
Nota: O artigo vai reproduzido neste sítio com expressa autorização do Autor. Publicado na ed. de Domingo, 19 de junho de 2011, do jornal Diário do Pará