Pais mentem, também

Ele morava no quinto andar - eu, no quarto.

nós encontravamos na portaria do prédio em Copacabana

- e falávamos dos nossos problemas de adolescentes.

- espinhas, masturbação, músicas, beatles, jovem guarda.

dominava matematica

enquanto eu era um romântico

incorrigível,

como até hoje.

um dia ele me olhou sério

e disse:

¨seu pai me contou que você matou um burro

em minas e ele teve que pagar um dinheiro

ao dono ! ¨

não me lembrei da história

nem recordo até hoje.

acho que meu pai a inventou

por razões que desconheço.

¨pais mentem, também ! ¨

costumeiramente

executavamos uma estrategia de conquistas:

¨um vinha do posto 6, pela avenida copacabana

e o outro partia da duvivier,

no beco das garrafas.

nos encontravamos na santa clara,

cortejando as moças.¨

nunca ¨pegamos ¨ ninguém !

¨acho que não temos o perfil

das garotas !

somos intelectuais, por demais.

além disso, não temos carro, somos baixos, feios e duros ! ¨

concordavamos,

mas insistiamos,

sempre.

havia um prazer semi-sádico naquilo,

uma caçada, quem sabe.

o tempo foi passando,

cresciamos,

cada um tomava sua direção.

um dia ele me disse:

vou fazer um concurso,

venha fazer também.

cheguei à ir com ele ao local da inscrição

mas desisti na hora.

tive medo, confesso agora.

ele fêz, passou.

sua vida mudou

como a minha mudaria se o seguisse.

são nessas encruzilhadas

que os destinos se definem

e se trocam.

mas, veio o drama !

no dia de sua posse

no novo emprego

não tinha terno para vestir.

nosso barbeiro

o emprestou.

¨meu barbeiro foi mais amigo que meu pai,¨

queixou-se.

¨não ligue para isso,

a vida segue. ¨

e continuei:

¨pais mentem, também ! ¨

no trabalho,

apaixonou-se por uma linda moça

que tinha uma voz bonita como ellis.

¨seu pai não a deixava seguir a carreira

de cantora !

achava que cantoras eram vagabundas ! ¨

¨fez bem,

ellis está morta,

sua amada está viva,

disse-lhe,

recentemente. ¨

lembrei-lhe: ¨os pais de ellis também não a queriam cantora !¨

¨está vendo ?

pais acertam, as vezes ! ¨

ele me olhava espantado

como se eu fosse um bruxo

com bola de cristal e tudo.

parecia apreciar minhas palavras.

recentemente, aconselhou-me:

¨vá para holywood,

tem talento,

terá uma vida promissora ! ¨

respondi-lhe:

¨minha holywood é aqui ! ¨

e repeti manoel bandeira:

¨aqui sou amigo do rei,

tenho a mulher que quero

na cama que escolher ! ¨

sempre fumou,

agora deu para beber.

amedrontei-lhe:

você vai morrer duas vezes,

do pulmão e do fígado.

respondeu-me,

¨se vou morrer duas vezes,

agora que beberei mais,

para comemorar ! ¨

de uma certa forma está certo.

todos morreremos de uma coisa ou de outra.

¨piores são os ¨normopatas¨que morrem sem ter nada !¨

fiquei com a missão de tomar conta dele.

descobri que sou péssimo como anjo da guarda.

uma noite, num pé sujo,

sentou-se ao nosso lado

uma prostituta.

¨é uma coitada,

faz isso para sustentar o filho !

tenho pena,

vou ajuda-la ! ¨

¨não faça isso,

as prostitutas de copacabana são perigosas,

andam com cafetões,

colocam pílulas na nossa bebida. ¨

pela primeira vêz na vida

exaltou-se comigo:

levantou-se,

falou ríspido:

¨vá com deus,

fico com nossa-senhora ! ¨

no outro dia

encontrei-o,

desolado:

¨você tinha razão, fui roubado !

a puta era também uma ladra ! ¨

prometeu-me:

¨vou ficar rico,

financiarei seu disco

e o remeterei para todas

as igrejas do brasil.

será famoso como roberto carlos ! ¨

¨e se você esquecer ?¨

perguntei-lhe.

¨você me lembra,

porra ! ¨

não esquecerei, amigo !

joão joão
Enviado por joão joão em 23/04/2011
Reeditado em 09/06/2013
Código do texto: T2926052
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.