O MIOMA

O ano de 1978 foi um ano muito atribulado, sentia muitas coisas estranhas, como falei em escritos anteriores, em que as pessoas diziam que era vitima de feitiçarias. Certo dia quando saindo do trabalho uma senhora me abordou pedindo-me uma ajuda, pois estava sem nada em casa para almoçar, abri a bolsa, e dei para ela uma quantia que dava para comprar alguma coisa, feliz ela se afastou, entrando em sua casa. Segui meu caminho, despreocupada, pois eu também era mãe.

No outro dia imediato, ela apareceu na minha frente e me disse que um casal de brancos havia feito feitiçarias para me prejudicar e por isso estava sentindo aquelas coisas, pois o que fizeram usaram peças intimas minhas. Segundo esta pessoa antes de mim casar. Falei com minha mãe e minha irmã indignada. Quem seria capaz de fazer uma coisa desta se em nossa casa é difícil entrar pessoas estranhas?

Minha mãe me falou, deixa para lá, encontrei uns panos de menstruação enterrado nos vasos de planta com muitos nós, tirei os nós um a um, quem seria que fez isso, qual seria o interesse, desta pessoa? Isto na véspera do meu casamento em 1970, como essa coisa veio à tona em 1978, não entendi. Esta senhora disse que poderia me curar, e que necessitava apenas de umas peças minhas.

Mas uma vez falei com minha mãe, ela não me deixou levar a peça de roupa, mas a moça me disse, mesmo assim vou tentar lhe ajudar.

Minha barriga crescia, e eu sentia algo dentro, procurei o medico isto em 1978, estava com uns três meses de gravidez, isto eu acreditava. Não é assim, que entrei numa Clinica, a Drª que me atendeu mexeu na minha barriga varias vezes dizendo que eu estava com um mioma enorme na barriga e que iria morrer, quanto mais ela manuseava minha barriga nervosa, mais me assustava. Mandou fazer um ultrassonografia na hora e depois do resultado não queria me deixar sair de forma nenhuma, pois se não operasse de imediato iria morrer. Realmente para três meses a barriga parecia ser de oito meses.

Ela saiu da sala, e quando me vi sozinha, sai desesperada, peguei meus documentos e exames e o resultado da ultrassonografia e corri como uma louca entrei em outro hospital, pois precisava conversar com um medico. A atendente falou-me que o medico que estava ali dissera que a partir daquele horário não atenderia nem a mãe dele, mas eu insisti, e disse: diga a ele que preciso falar com ele. Enfim ele mandou que eu entrasse, e falei com ele o que a medica me falou e o que fiz, fugi.

Ele mandou que me deitasse, começou a examinar minha barriga, e me disse: “deve haver três bebes ai, porque não estou sentindo nada, e na radiografia não dá nada, mas vá agora mesmo ao meu consultório, isto fiz.

Chegando lá o esperei que apareceu quase uma hora depois, mandou deitar-me e usou um outro tipo de aparelho segundo ele mais moderno, não percebeu nada, disse-me deve haver ai mais de um bebê, na verdade acreditei que ele não queria que eu fugisse dele como havia feito com a outra doutora. Disse, faça esses exames, com urgência, e toda semana quero lhe ver, venha com seu marido.

Isto fiz, ele me deixou na sala e conversou com meu marido, depois me chamou e examinou-me, isto, foi seguidamente durante mais dois meses. Enfim ele me disse: se algum dia sentir como uma falta de ar, não fique em casa, me procure imediatamente. Ele não me falava mais nem de gravidez nem de miomas, era como se estivesse querendo me acalmar.

Até que um dia, não sei se pelo sistema nervoso ou sei lá, senti a tal da falta de ar, pensava, nas minhas quatro filhas se eu morresse o que seria delas, com madrastas, ou com minhas irmãs, e imaginava milhões de situações, pedia a Deus todos os dias minha saúde, pedia piedade vinte quatro horas por dia, até que um dia sonhei com a senhora que havia mim entregue as outras quatro filhas, mim trazer mais uma menina.

O medico me internou, e mandou fazer outra ultrassonagrafia, apareceu o bebê, ele tirou a criança e me disse: “como você sabia que estava que estava grávida? você tinha a Dona do corpo fora do lugar, qualquer rezadeira resolveria”.

O parto foi Cesário, ele usou a ráquia, dava para eu ver saber o que estava acontecendo, pois esta anestesia só imobiliza da cintura para baixo. Até ai tudo bem, de repente não sei como, me vi do outro lado afastada e os médicos e enfermeiras próximos ao meu corpo. O médico me chamava e dizia, “não faça isso comigo”, mais ou menos isto. Do outro lado apareceram dois homens vestidos de túnica branca e um ficou no meu lado direito e o outro do lado esquerdo, não podia me afastar dali, estava querendo que eles me liberassem, mas me segurava, o meu corpo estava na mesa de operação. O médico mandou chamar um pediatra, e disse: “ela queria muito esta criança, faça o possível para que ela viva”, ele estava muito nervoso.

Fechou-me rápido e o resto não sei, pois havia me debatido muito do outro lado, não queria morrer. E minhas filhas o que seria delas?

No outro dia, parecia que havia um encanto, estava bem, depois contei ao medico o que aconteceu durante a cirurgia. Ele não me falou nada.

Fiquei internada e passaram alguns dias ele me liberou, mas o bebê ficou na incubadora, pois ainda não tinha seis meses completos. Todo o dia ia vê-la, ela pesava menos de dois quilos, e cabia numa caixa de sapato. Cabelos negros bem cheios e o corpinho todo rolicinho, gordinha, cabia na palma da mão do meu esposo.

Este médico, de alguma forma foi o meu melhor amigo, na época um homem moderno, alto, moreno claro e de uma delicadeza e paciência que não existia igual.

O que eu sei que o mioma segundo o medico não era nada mais do que a dona do corpo, porem ele me explicou mas até hoje não entendi o que era isto realmente. Mais vou pesquisar.

Sei que estou sã e salva, pois fui obrigada depois de sessenta dias voltar a mim internar pois ficara com hemorragia, e ele mais uma vez me operou, quando fez noventa dias que voltei a ele, acredite que este medico me abraçou bem forte e disse: “ ficava preocupado em pensar que ia me dar um atestado de óbito, mas graças a Deus nós vencemos”. Hoje estou com sessenta e oito anos, este médico nunca mais soube dele, mas sei que Deus seguirá seus passos, pois é uma pessoa amiga e protetora, que Deus abençoe a ele e a equipe que cuidou de mim, obrigada.

Segundo este médico a trinta e dois anos passados “dona do corpo” seria a parede do útero fora do lugar, deslocada, nunca mim interessei em saber mais sobre isto, mas ultimamente acredito que devemos procurar estudar mesmo, pois só assim poderemos nos entender e as pessoas que estão a nossa volta, por exemplo, a cultura do campo, das pessoas interioranas como as rezadeiras ou benzedeiras.

Pesquisando na internet¹, encontrei algo sobre o assunto:

Especialistas Xamânticos Kariri – Xocó explicam que o “corpo abre” durante a relação sexual e quando a mulher vivência fluxo sanguíneo menstrual e pós – parto.

“Os conceitos etnofisiológicos Kariri-Xocó relacionados aos fluidos corporais masculinos e femininos estão situados dentro de um domínio cultural onde um órgão êmico chamado a “Dona do corpo” e sintomas de “dor de mulher” proporcionam evidência de incorporal idade feminina bem como contribuem para uma subjetividade incorporalizada feminina. O que é interessante sobre “a Dona do corpo” é que “ela é como uma mulher,” “ela é feita de sangue” e “ela não gosta de homem.” Então, “a Dona do corpo” pertence a um domínio de gênero essencialmente feminino/fêmeo. Esse órgão êmico¹ feminino localizado dentro do corpo das mulheres Kariri-Xocó, que provoca dor quando quer que “ela” esteja deslocada, atesta incorporalidade feminina e de gênero. A “Dona do corpo” provoca “dor de mulher” quando “ela” está deslocada ou induz menstruação. As mulheres Kariri-Xocó frequentemente mencionam que sentem “dor de mulher.” Apesar de muitas mulheres não sentirem a “Dona do corpo,” geralmente elas ouviram falar sobre “ela” e/ou elas a associam a “dor de mulher.” Esses conceitos (“Dona do corpo” e “dor de mulher”) relacionados ao domínio da etnofisiologia feminina Kariri-Xocó atestam incorporalização de gênero e incorporalidade feminina ²”.

NOTA DE RODAPÉ

¹ “’Ético’ e ‘êmico’são termos inspirados em fonética e fonema. Nos primórdios da sócio linguística, alguns pretendiam que apenas a partir de transcrições fonéticas, pode-se-ia estudar uma língua estranha. Como em geral, isso se referia a sociedades ágrafas, nelas, por mais forte razão, muitos se perderia da entonação (fonêmica) no contexto da fala. Ético e êmico são usados em alguns casos como o que anglo-saxônico, chamam por um lado, de situação de observador “outsider” , de fora, a partir, e com as “ferramentas” da sua ciência, vendo o outro – eticamente. Por outro lado, o observador pode largar as ferramentas e colocar-se como se fosse um dos outros – apesar de que nunca o será – como um “insider”(de dentro), emicamente. – MARIA CRISTINA DE MELLO AMOROZO – LIN CHAU MING – SANDRA PEREIRA DA SILVA – MÉTODOS DE COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM ETNOBIOLOGIA E DISCIPLINAS CORRELATAS, CNPQ, UNESP - http://www.sulear.com.br/texto02.pdf.

². V RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul – Antropologia em Perspectiva. Documento em PDF - http://www.antropologia.com.br/arti/colab/vram2003/a13-smartins.pdf.