Lira dos dezenove anos
A literatura sempre se fez presente em minha vida, desde os meus tempos de criança. Segundo conta minha mãe, aquele pequenino que corria por todos os cantos da casa atrás do cachorro disse sua primeira palavra complexa ainda antes dos dois anos de idade, o que não é nem um pouco fabuloso (visto que esta é a média de idade em que a maioria das crianças dizem suas primeiras palavras); o que há de surpreendente é o fato de, por volta dos quatro anos, eu já ter aprendido a ler e escrever como uma criança de seis. Isso só foi possível devido ao aparato literário com o qual eu era cercado na época, desde cedo recebendo incentivo de minha mãe e outros familiares para desenvolver o gosto pela leitura. Isso foi decisivo nas escolhas de minha vida ao longo dos dezenove anos que se seguiram, mas também para aceitar questões que não dependiam de escolha.
Durante meus anos de ensino básico, fui destaque em pequenas competições literárias escolares e também nas aulas de Língua Portuguesa, gerando uma aproximação de todos os alunos que visavam alguma ajudinha nas provas. Obviamente também fiz amigos verdadeiros, fato que se deve à minha espontaneidade e sociabilidade. Sociabilidade esta que colaborou para que, ainda na adolescência, eu viesse a assumir minha homossexualidade. Ao contrário da maioria dos indivíduos que estão na mesma condição, eu sempre soube lidar bem com este fato, com menos insegurança e indecisão.
Nunca me rotulei como alguém anormal apenas porque era diferente do que se considerava como normal. Minha grande capacidade de socialização foi o principal fator de contribuição para que eu não sofresse os efeitos psicologicamente devastadores do preconceito. Desde cedo eu assumi minha postura real no mundo, e todos puderam enxergar meu caráter transparente. Jamais me deixei dominar pelos medos e pressões típicas da adolescência, e durante este período fui buscando um maior envolvimento com a literatura e as artes. Além disso, desenvolvi uma afinidade tamanha com as línguas estrangeiras e os processos linguísticos, fator decisivo para minha escolha acadêmica atualmente.
Ao optar pelo curso de Letras, meu objetivo principal é um aprofundamento ainda maior no mundo literário e linguístico, não apenas por apreciação pessoal, mas também a título profissional. Creio que educar seja minha missão, e as línguas são minha paixão. Unindo estas duas ideias, tracei meu projeto de vida. Logo no início da formação acadêmica já me vi profundamente envolvido pelos estudos fabulosos ligados à Linguística, ciência esta que pretendo abordar com mais empenho e maior foco de conhecimento.
Apesar de não ter sofrido grandes preconceitos, sou ativista de causas que visam o reconhecimento social dos diferentes tipos de sexualidade e de seus indivíduos como pessoas sadias e idênticas a quaisquer outras, dignas de liberdade e expressão. Estive em um ambiente que me possibilitou uma transparência e uma segurança para lidar com minha condição, contudo reconheço a existência de inúmeras outras pessoas que se encontram embarreiradas pelos paradigmas sociais, pela falta de conhecimento e senso crítico generalizado e por uma sociedade conservadora que ainda toma a expressão sexual diferenciada como uma aberração de caráter.
Esta é a lira dos meus dezenove anos. Dezenove, apenas, visto que nem aos vinte ainda cheguei. Espero chegar; espero viver bem mais do que o nobre e precoce poeta Álvares de Azevedo, que em sua obra (que inspirou o título deste texto) expressou, logo no início, que “a vida é uma lira sem cordas; uma primavera sem flores; uma coroa de folhas sem viço”. Nisso, discordo dele. A vida é sim uma lira, porém com várias cordas, capaz de produzir inúmeras melodias; o tom destas melodias somos nós quem ditamos.
São Leopoldo, 12 de março de 2010.