A foto da memória
Haverá tempo para que eu posso rever as cartas jogadas sobre a mesa? Muito provalvelmente, não. Embora eu sinta minha voz como a dona do mundo.
Dias atrás, olhei um foto antiga minha e observei friamente aquela pessoa ali, presa em um papel de aparências plástica, como se nunca fosse se decompor na natureza, algo entre a eternidade e o caos. Essa pessoa não é a mesma de hoje.
Os olhos obtusos, com um ar de dor finita, miúdos entre as pálpebras errantes de quem chora quando tocado pelo inesperado. Mesmo que transitando entre o verde e o azul, aqueles olhos exalam um gosto de sangue, um vapor de contestação. Uma realidade.
Depois de tanto olhar, as memórias chegam para um café amargo e demorado, tal como a visita numa tarde tediosa e sonolenta.
Como num palco, vejo que me observam, fazendo anotações em pequenas cadernetas carmim, sussurando comentários de vigilância e condenação. E eu, naquele palco desértico, colocando pra fora todos os fantasmas, exorcizando as palavras tatuadas em minha alma sem minha permissão. A maior guerra que tive foi ouvindo palavras de humilhação.
Num monólogo bêbado, cheio de falhas e canastrices, textos esquecidos e figurinos rasgados, me rasgo pelas mãos podres de quem me condena. E a plateia, ávida pelo trágico final, anota em sua caderneta carmim meus fracassos. E eu brilho no deserto...
A foto, aquecida pela minha mão, continua ali, firme, tirânica, revelando-me as delícias que já tive ou jamais terei. O café amargo para as lembranças foi servido. Licor em seguida.
O final trágico se aproxima, a música atinge o clímax de um gozo, as luzes titubeiam sem velocidade definida aparentemente, e ali, exposto, como uma fratura, como um carne a ser consumida pela falsa família de domingo, como um vilão em final de novela a ser expulso da vida pelo autor sem criatividade. Esqueci todo o texto, os olhares me fitam, fuzilam, me amam e odeiam. Num ato frenético, as cadernetas caem no chão, os corpos se contorcem, uma orgia romana de pavor se controi na plateia. O ator no palco, tentando se lembrar do texto esquecido. O ator percebe que a plateia se mistura, como leprosos escondidos numa sarjeta. O texto não vem, o texto não vem... Fecho a cortina, tiro a roupa e me jogo no buraco da minha memória, que me suga como a língua devassa de quem se excita vendo a desgraça alheia.
Coloco a foto na gaveta. Penso em rir, mas não há tempo. Ao meu lado, uma caderneta carmim ao chão.
Saio de casa ensaiando um novo texto. Uma nova plateia se forma, os ingressos se esgotaram.
Relembro do texto esquecido. Mas já não há mais tempo pra voltar a dizê-lo.
Abro a nova cortina e me mato pelo prazer do voyerismo selvagem de todos que me cercam