O ANJO CURANDEIRO
Tinha recém feitos quinze anos e fugira de casa do pai, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, no final de novembro de 1980. Era início de janeiro de 1981 e eu estava para passar outra noite sob as hortênsias na praça central da cidade de Lages, ao sul de Santa Catarina. A meia tarde despedi-me do menino pipoqueiro, amigo que eu fizera na estação rodoviária, que fica numa parte baixa da cidade. Sentia o corpo dolorido e fraco, dor no peito e febre, indício que uma forte bronquite se aproximava. Somente essa doença podia me causar medo, pois costumava fazer febre de quarenta graus, suor a noite inteira, com delírios que muitas vezes me fizeram voar da cama sobre o roupeiro, fugindo de visões aterradoras. Sem contar a falta de ar, que eu vencia com o pescoço esticado, respirando pela boca, que ficava muito ressecada. Algo que amainava tais crises era a presença do pai, que eu percebia ao lado da cama.
Então só, distante uns quinhentos quilômetros de casa, os sintomas pressagiavam um forte ataque desses, o que não previ ao ter o impulso de fugir na tarde de sábado em que o pai nos proibiu de sair, nos pondo no quarto a ler a Bíblia por castigo porque gritei com nossa madrasta sustentando que não lhe diria onde íamos. Ela exigia em altos berros que lhe dissesse, justamente quando o pai me tirara a incumbência de dizer-lhe, pois disse que eu estava ficando homenzinho e já devia saber bem onde era bom ou não ir.
Foi com dificuldade que percorri a íngreme avenida desde a estação rodoviária até a praça central. O sol declinara uns sessenta graus por trás da torre da Matriz. Sentei-me num banco de frente para o sul, percebendo a Catedral uns quarenta e cinco graus à minha direita. Uns quatro metros a minha frente, uns vinte graus para esquerda, observei admirado dois caipiras sentados no encosto do banco, alisando palha de milho e cortando fumo. Enquanto saboreavam seus palheiros, deixei reclinar a cabeça sobre os braços entrelaçados nos joelhos e adormeci por instantes, sendo despertado pela mão do pai me acariciando os cabelos. Com a cabeça ainda abaixada, abri os olhos e vi os sapatos de couro branco do homem que vestia calça branca à minha frente. Ele disse que eu estava fazendo bronquite, o que ocorria comumente, acompanhada de dores, muita febre e delírios, mas que estava distante de casa, por isto meu pai não poderia me cuidar como costumava fazer. Enquanto ele falava, fui levantado a cabeça lentamente e vi seu sinto de couro branco com uma fivela de um dourado forte, abaixo da camisa tão branca quanto a calça. Convidou-me para acompanhá-lo até sua casa, onde sua esposa me prepararia chás, dando com remédios que, após o sono reparador numa cama aconchegante, me deixariam curado. Recusei, informando-lhe que meus pais sempre nos tinham ensinado que não devíamos seguir a estranhos. Porém ele insistiu, mas vencido por minha determinação em não segui-lo, combinou que iria e retornaria com os remédios, que eu tomaria e ficaria curado. Após confirmar que eu o esperaria, virou-se e seguiu em direção à Catedral. Terminando de erguer a cabeça, vi seus cabelos brancos como a neve. O sol quase desaparecera por atrás da igreja. Antes de deixar a praça, o homem desapareceu por detrás um casal que cruzou seu rastro.
Permaneci olhando na direção para onde ele fora, aguardando que retornasse. Passou-se, talvez, meia hora e ele não retornou. Pus-me a indagar por quê esperava. Lembrei que tinha dito que retornaria com remédios que eu tomaria e ficaria bom. Pensei por quê eu ia querer remédios se não tinha nada de errado com minha saúde.
Wilson Amaral