Todo Mundo Nú, minha melhor experiência como atriz
Ser atriz era uma certeza que eu carregava dentro de mim, quando ainda menina, na verdade eu nem sabia direito o que era ser atriz, mas tinha certeza, lá no fundo da minha alma que seria.
Era muito pobre, criada apenas por uma avó filha de uma negra escrava e um pai português, ela nasceu exatamente em janeiro de mil e novecentos era de uma sensibilidade a flor da pele, ouvia ópera no seu radinho de pilhas, e sabia da importância dos estudos na vida de uma criança, quando fiz seis anos, ela pagou com seu pouco dinheirinho contado, umas aulas particulares que me ensinaram a ler e escrever antes dos sete anos, idade que a escola pública recebia as crianças nos anos sessenta.
Fui à cidade e vi ônibus elétrico rodando nas ruas do centro do Rio de Janeiro, nessa época eu morava na Rua Cumatá em Anchieta.
Era uma dessa escolas criadas nas casa, mas o quintal era muito grande e tinham árvores imensas, na hora da merenda eu saía do meio dos outros alunos e ia para o meio das árvores, lá a minha imaginação voava e eu me sentia como num mundo mágico, que era real pra mim, só pra mim...acho que ali senti a primeira magia da arte, minha mente se libertou e vôo e nunca mais pousou, fui contaminada pelo vírus da arte, me apaixonei pela literatura.
Finalmente aos sete anos, com uniforme da escola pública, saía azul de pregas, blusa branca de tergal, sapatos pretos com meias brancas, duas tranças nos cabelos, um sorriso no rosto e um orgulho enorme, eu finalmente não era mais uma menininha, era uma estudante, crescera, e crescer era tudo que eu mais desejava, a vida de criança era muito chata, não tinha problemas, era só brincar, comer e dormir, eu queria mais, conhecer o mundo, tinha sede de saber, o mundo erudito me encantava, e estudar era o caminho...estudei muito, nunca repeti de ano, até que um dia aos quatorze anos, por volta dos anos setenta, me vi dentro da Escola de Teatro Martins Pena, lá estudei, pratiquei e finalmente atuei. Aquele palco imenso foi o meu primeiro, não lembro o texto, a música, nem do público, mas se fechar os olhos ainda sinto o cheiro, e a luz dos refletores com gelatinas coloridas. Era só o inicio da caminhada, mas foi em grande estilo. Eram os anos da liberação sexual, das drogas, e eu menina deslumbrada com o mundo do teatro, mas vacinada pelas preocupações de vovó,- cuidado com as drogas, não vai engravidar...
Nessa época conheci o Teatro Arcádia, em Nova Iguaçu, lá atuei em muitas peças, e tive contato com censores.
E pela primeira vez ouvi um amigo que ao voltar de São Paulo, me falou de um texto, onde todos os atores atuavam nus, que tinha uma cena onde havia um nascimento, e ele relatou detalhes, fiquei encantada, em seguida fui a São Paulo e procurei uma peça com atores nus, e minha amiga me levou para ver Hó Calcutá, gostei, mas não era a peça que meu amigo me descreveu com tamanha emoção. Os anos passaram, esqueci dessa peça até que um dia li no jornal que seria montado aqui no Rio a peça de Ricardo Bandeira, Todo Mundo Nu, é essa a peça que tentei ver! Fiz o teste passei, e estrei aqui no Rio, atuei algumas vezes. Em São Paulo com o autor Ricardo Bandeira, no elenco, foi uma participação emocionante, fiz a Mariazinha, a Ciência e uns outros personagens que não me lembro. As viagens foram muitas, ficamos nas estrada por muitos meses. Tínhamos um carro com nome de Neuza, e o violino do Bandeira era sempre carregado por mim. Eramos uma família, havia um carinho, um respeito entre nós incrível. Antes de entrar em cena o elenco fazia um círculo e rezávamos, não lembro se o Bandeira participava, acho que ele era ateu... Todos os teatros ficavam lotados, e o público ia para ver pornografia, mas após os primeiro minutos, a nudez era esquecida e ficava apenas a beleza e a graça do texto. Me lembro do Bandeira abrir o espetáculo tocando uma linda música no seu violino e dizendo ao público...
- Vocês acabam de ver o primeiro violinista nu do Brasil, e a peça começava.
Em Taubaté vivemos uma emoção diferente, sentimos medo da reação daqueles estudantes universitários, porque no fundo do palco tinha marcas de ovos que foram jogados da platéia, nós eramos um grupo de atores jovens, encenando um texto genial, não tínhamos nada além de nós em cena, não havia um belo cenário, muito menos figurino, apenas nossos corpos nus, a luz, o som, isso sempre funcionava e o publico respondia muito bem, mas ali eram apenas estudantes, então antes do espetáculo sentimos uma certa insegurança, mas como sempre foi um sucesso. Outro lugar que sentimos a mesma coisa foi em São João Del Rei, assim que chegamos na cidade ficamos sabendo que o público locou pois pra correr do palco uma banda de rock, isso nos deixou apavorados, pois uma cidade religiosa, poderia não entender nossa peça, mas foi onde foi aplaudida em cena solo, onde fazia a mímica do banho ao som de uma música, isso muito me emocionou, afinal eu fazia mímica ao lado do maior mímico do Brasil.
Ao final da temporada me despedi daquelas pessoas lindas e muito queridas, voltei para o Rio e nunca mais os vi, mas até hoje guardo no meu coração aqueles dias de trabalho e convívio com gratidão, porque depois de atuar nesta peça ao lado de Ricardo Bandeira, ficou difícil desejar algo além, fiz outros trabalhos, criei meus textos, mas nada foi melhor do que aquela experiência.
Glória Cris