Relato de minha estadia na casa de Marcos Andrada (10–15 de março de 2022)
Escrevo o presente texto para que seja relido por mim daqui a 10, 20, 30 anos, e eu me lembre de duas coisas: a primeira é que meus esforços foram recompensados depois de anos e anos de luta, e se de fato há alguma bondade neste mundo estou vivendo uma vida alegre, plena e bem-sucedida. Se este não for o caso, ao menos posso me enganar em minha mente como sempre, e se já estiver morto a esta altura, tanto melhor. A segunda coisa, ainda mais importante, é que, se houver eu conseguido qualquer recompensa por meus esforços de fato, todas elas tiveram o dedo (ainda que de forma indireta) de Marcos Andrada.
Se houvessem me dito, quando tinha eu 13 anos, em meu verdejante início de carreira literária e sem nem adivinhar que teria um livro publicado (com outro no prelo à época da redação deste escrito) e mais de 400 poemas em meu nome, que acabaria me tornando um dos melhores amigos e o crítico pessoal do vocalista do Vultos e do Sereialarm, eu não acreditaria – já naquele tempo me era custoso acreditar que estava travando relações com o fundador dos Titãs e do Cabine C, Ciro Pessoa. Ambos foram partícipes importantíssimos de meu desenvolvimento pessoal e intelectual: minha pré-adolescência foi moldada por quase todo o catálogo da grande Baratos Afins, e me sentia o detentor de um segredo magnífico pensando que apenas eu era conhecedor de todas aquelas bandas no início da década de 2010. Os dois volumes de “Não São Paulo”, e as não menos interessantes “The sexual life of the savages” e “Não wave”, foram os quatro grandes pilares sobre os quais minhas convicções juvenis repousavam.
O “Filme da alma”, do Vultos, era um álbum que eu ouvia quase todo dia, em loop, por 6 anos de minha vida. Nunca consegui encontrar desde então um trabalho (brasileiro) tão bem-feito e atmosférico, que tantas vezes me embalou à Terra dos Sonhos e que fornecia um contraste mais suave com o “Fósforos de Oxford” do Cabine C, que era muito mais depressivo e envolto em sombras e angst. Contrastes estes que eram visíveis até mesmo nas mentes por trás destes trabalhos: enquanto Ciro Pessoa foi mais mestre e mentor do que amigo, Marcos Andrada acabou por se tornar, literalmente, o pai que eu nunca tive – mas como isto se sucedeu, veremos a seguir.
Saltemos para o ano de 2021 – minha juventude se escoava prematuramente há anos; a sensação de meu début literário igualmente já fora esquecida, e estava eu entregue a um cortejo de dúvidas sobre como prosseguir com minha carreira. Como sempre o foi desde que me rendi aos belos (mas não muito lucrativos do ponto de vista financeiro) encantos da Literatura, me via perseguido por pessoas más movidas única e exclusivamente por sede de lucro e inveja a cada ano em que parecia me aperfeiçoar em meu ofício – ato que sempre ocorreu em detrimento de minha saúde mental, pois sou um dionisíaco – e, natural mas desafortunadamente, fui levado a pensar que apenas a morte prematura me livraria de tantas perseguições e de meus desconfortos com o mundo moderno.
Eis que iniciei os preparativos para que me suicidasse até o final do ano. O Mestre Ciro Pessoa já havia me precedido, fazendo com que eu conhecesse a solidão da orfandade – em verdade, uma torturante inveja me acometia ao pensar em todos aqueles que sucumbiram à trágica mortandade daqueles tempos. Por grande parte de 2021, numa espécie de “retrospectiva” de minha existência até aquele ponto, decidi sair à caça de algumas antigas bandas de minha juventude e ver se ainda me pareciam tão boas quanto o eram no passado – e para a minha decepção muito grande foi o número das que nada mais tinham a me dizer.
Mas o Vultos acabou sendo como um velho amigo que, mesmo após anos e anos separados, ante o primeiro reencontro constatamos que o afeto mútuo permanece inalterado, e podemos conversar por horas e horas sobre qualquer coisa e matar a saudade. Ouvi “Incógnito”, “Ilhas” e “Farsantes Amantes” com o mesmo prazer, com a mesma felicidade de quase 10 anos antes, ao mesmo tempo que me sentia tão triste por ter me esquecido deste amigo. Ainda pretendia me matar, mas antes disto pensei ser apropriado deixar, de um jeito ou outro, o Vultos ciente de meu apreço – coisa esta que, sabe-se lá por quê, nunca fiz antes. Enviei um carinhoso e-mail ao Marcos, com 99% de certeza de que ele não o leria, porém não me fazia mal; pensava eu então que o mero ato de escrever a mensagem em si era mais importante do que sua chegada ao destinatário. O dia passou…
E, para a minha surpresa, no dia seguinte fui contatado por um outro bom amigo, o Gabriel do Pontagulha, que estava administrando as contas virtuais do Marcos. Ele me encaminhou, por telefone, alguns áudios bastante carinhosos e inclusive me passou seu número para que conversássemos. Eu nem ao menos tinha o número do meu falecido mestre…! Tampouco conversara com ele, enquanto vivo, sobre estes assuntos mais pessoais e inerentes a mim. Fiquei contente por receber além daquilo que estava esperando, ocorrência sempre tão rara em minha vida. Ainda assim, só consegui ligar-lhe fato em outubro (estávamos no final de setembro então).
Afinal de contas valeu a pena esperar, pois eu e meu mais novo amigo tivemos uma longa e franca conversa por mais de uma hora sobre a vida. Contou-me de seus problemas, dos quais me compadeci profundamente, e vi que de fato não estava destinado à morte prematura pelo menos por algum tempo: eu não podia deixar que aquele homem sofresse como vinha sofrendo, e da mesma forma que ele me salvara, queria eu também fazer algo por ele. Por isso, quando recebi seu convite para que passasse uma breve temporada em sua casa em São Paulo, não recusei – cinco anos se passaram desde a última vez que visitara esta grande cidade que tanto amo por alguma razão que me segue como uma grande incógnita (e onde, em algum lugar ainda vedado a mim, reside aquela criança arquiteta de todo o meu imaginário). Enquanto a data não era fixada, trabalhei ao decorrer do ano todo em resenhas dos trabalhos de meu amigo, não só para alegrá-lo como também para que eu reentrasse em contato com toda a sua obra; almejei que nossa fama passasse a ser conjunta.
Só me foi permitido partir para São Paulo em março do presente ano. Um misto de euforia e prazer borbulhava em meu interior à medida que pude contemplar mais uma vez os campos e estradas de meu país, que prenunciavam uma nova e colorida aventura às páginas de minha vida, geralmente escritas com uma negra tinta lavrada em melancolia.
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Cheguei a São Paulo na tarde de 10 de março. Após uma viagem longa e silenciosa, ao mesmo tempo em que me sentia aliviado por deixar o carro e estudar um novo ambiente, também me sentia assustado pelo ambiente ser demasiado novo. Em todas as minhas viagens à cidade, sempre a conheci aos pedaços e nunca estive no mesmo lugar mais de uma vez – há uma parte minha perpetuamente avessa a qualquer mudança. Ainda assim, me divertia fazendo aquilo que mais gosto, que é observar o fluxo de pessoas nas ruas. Em verdade, havia aportado à entrada da USP, e fiquei receoso de que seria interpelado em algum ponto pelos guardas da portaria, mas lá permaneci sentado sem ser incomodado até ver meu amigo que chegava. Acenei efusivamente a ele e, entusiasmado, continuei acenando até ele chegar onde eu estava. (Ele me disse ter achado isto muito engraçado depois.)
Seguimos à sua casa, residência quintessencial de um artista completo – é cheia de aparatos interessantes, pinturas e não há uma parede que não esteja coberta de desenhos e fotografias coladas. Num tempo em que ainda me era permitido sonhar, imaginava ter minha própria casa que não seria muito diferente; em contraste com a casa de meus pais, sempre senti que algo me oprimia o coração devido à atmosfera negativa do lugar, portanto quando eu tivesse a minha residência gostaria que fosse um lugar que me preenchesse de gosto pela vida e me permitisse voltar à contemplação artística a qualquer hora. Me instalei em meu quarto mas mal tive tempo de admirar a casa por mais alguns instantes; meu amigo chamou-me para sair.
Fizemos uma breve passagem à nascente do Rio Iquiririm, pedir a proteção de suas divindades custódias durante a jornada. Em todas as minhas viagens por São Paulo sempre pensei que estaria fadado a ver prédios e ruas congestionadas, por mais que tanto goste de vê-los por serem tão diferentes do que tenho em minha terra, mas o bairro de meu amigo é um tesouro: é arborizado e pacato, destruindo a imagem que os interioranos de minha cidade têm do lugar e que tanto tento mudar relatando-lhes minhas experiências – sempre, sempre em vão. Em seguida retornamos à USP pois ele queria me mostrar a caixa d’água onde costumava passar tempo quando novo. Constatei que estava um tanto quanto fora de forma para andar em meio a tanta vegetação e escalando tantas subidas, mas minha alegria se sobrepôs ao cansaço e alegremente escalei todas as subidas daquela parte de São Paulo como um todo – que não eram poucas. De qualquer forma, gostei muito daquele passeio, e achei a vista interessante, apesar da vegetação obscurecê-la por já ter crescido demais desde a juventude de meu amigo.
Assim encerrou-se o primeiro dia – e aqui vale a pena ressaltar que, nos cinco dias que lá estive hospedado, nunca dormi tão bem. No fim do dia, mais do que qualquer “mumbo-jumbo” farmacêutico, uma boa noite de sono só precisa de um ambiente positivo e pessoas que nos querem bem para que tenhamos a certeza de que podemos dormir sem preocupações.
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11 de março. Acordei um tanto quanto triste. Não consegui entender o porquê – como não suporto minha cidade, foi qualquer coisa menos saudades de casa. Suspeito, porém, que foi porque prometera ao meu amigo que lhe contaria a respeito de S…, e leria a história que a ela escrevi, a “Viagem por São Paulo” – um dos allures do lugar é que, tal como registrei na história, penso que ela pode ter andado por tal ou tal lugar… Mas resolvi afastar a tristeza escrevendo.
Meu amigo me sugerira escrever crônicas após eu ter-lhe contado a boa e velha história do meu namoro de uma semana com a A…; disse-me para utilizar Nelson Rodrigues como referência, e escrever tudo exatamente como se deu – e, numa constatação de como mudamos sem que o percebamos, há uma década tal ato me pareceria pecaminoso, tão algemado estava eu àquela introspecção ultrarromântica. Pelo menos como um experimento, lá mesmo escrevi “Meu filho namorado” – a primeira crônica que fiz e da qual me orgulho. Desde então, continuei ensaiando com o formato, montando este belo livro que meu leitor agora tem em mãos. Se tenho ou não talento, pelo menos me divirto ao me relembrar da grande maioria destas histórias, e “Meu filho namorado” fez com que meu amigo gargalhasse – o que espero que seja um prenúncio da primeira possibilidade.
Mais tarde li-lhe a “Viagem por São Paulo”, e ele fez uma bela ilustração – seria a primeira de mais duas. Falei muito sobre a criança… No fundo até esperei que ela batesse à porta para vir ver-me, mas no fim do dia não estava eu lá por ela. Sei porém que, um dia, finalmente esta graça me será concedida.
Ao cair da noite seguimos a um mercado para comprarmos vinho para o jantar, e logo após uma pizza excelente como nunca comera antes, ou depois. Eu paguei pela pizza, e meu amigo pelo vinho – não era da marca habitual que ele apreciava, e conquanto não fosse um vinho ruim, seu gosto era demasiado forte, e ante meu primeiro gole fiz uma careta que causou muita diversão ao meu amigo, que ainda assim pediu desculpas pelo incômodo; mas álcool é uma coisa que quase nunca gosto de negar. Ele comentou que eu bebia rápido: era a primeira vez em meses que ingeria qualquer tipo de álcool, mas respondi-lhe (o que não era mentira) –
“Amigo, bebo rápido para que esta garrafa acabe e não a precisemos beber novamente.”
Encerrando belamente o dia, fui apresentado a um dos primeiros grandes libertadores literários que conheci este ano: Thomas Mann. Tive uma grande relutância em ler autores mais recentes por achar que isto influiria negativamente em minha obra(!), mas um mundo de imensas possibilidades se abriu para mim após assistir à adaptação de “A morte em Veneza” de Visconti. Aquele filme me falou profundamente, e me identifiquei com sua mensagem – pelo menos de acordo com minha acepção, interpreto seu enredo como uma interessante contraposição entre o Apolíneo e o Dionisíaco, e a busca de todo artista por uma beleza metafórica que abranja seu processo criativo – como a Beatriz de Dante. A partir daí pude ler o livro original, e mais alguns outros de Mann; outra coisa que me pareceria inconcebível até pouco tempo.
Se sua influência foi benigna ou maligna… que julgue o leitor.
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12 de março. Meu amigo me prometera levar à Biblioteca Brasiliana na USP – era um itinerário que estava em nossos planos desde o dia um. Para mim, só o ato de poder lá me hospedar estava de bom tamanho, mas estava ansioso para lá ir mesmo assim. O destino tentou me decepcionar fazendo com que a biblioteca estivesse fechada até segunda-feira, mas o passeio não foi menos divertido – o ambiente da USP como um todo é um petisco para os olhos, de tantas coisas (e mocinhas) para se ver. (Mais sobre este assunto em outra partição, para atiçar a curiosidade do leitor que seja um connoisseur de belezas.)
Nos deparamos ao acaso com um rapaz haitiano numa das salas da USP – meu amigo quis falar-lhe em francês, e tiveram uma longa e proveitosa conversa da qual não pude participar por não saber a língua. No entanto, aproveitei a ocasião para refletir sobre como é irônico o fato de eu até então ter tido ressalvas e dúvidas para ir embora de minha cidade, enquanto aquele homem abandonou tudo aquilo que tinha em outro país para vir para cá. Pensei nisto o dia todo, e ainda hoje sigo a pensar.
A caminhada aquele dia fora estafante, mas todas sempre foram muito divertidas – saindo com meu amigo, sempre voltava com as pernas doendo de cansaço, mas as conversas eram invariavelmente proveitosas e as paisagens interessantes. Ao cair da noite quis ele me levar a um bar onde ninguém mais, ninguém menos que um ex-baterista de Tim Maia e da Banda Black Rio, Jair Cacau, se apresentaria – entretanto estava muito cansado e não conseguia levantar da poltrona. Esperei não tê-lo entristecido em demasiado, mas no dia seguinte ambos teríamos uma surpresa muito boa para compensá-lo. O dia acabou conosco assistindo a “A dança dos vampiros”, de Polanski – um filme muito divertido e que, pensei, se o quisessem arruinar com um remake, o estrago não seria muito grande se chamassem minha paixão Tim Burton para dirigi-lo. Quando jovem pensava muito em escrever uma história de vampiros aos moldes do “Drácula” ou do “Carmilla”; hoje, não mais me levando tanto a sério, gostaria de fazer algo aos moldes de “A dança”.
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13 de março. Dia atarefado… Acho que, por ser meu penúltimo dia, nada mais justo do que ser agraciado com uma aventura. Seguiríamos ao bairro de Jardins para que eu conhecesse a ex-mulher de meu amigo e, quem sabe, sua filha. Comeríamos lá muito bem e, até aí, nada de muito notável – mas estava chovendo a cântaros, como sói acontecer tipicamente em São Paulo. Sua atual companheira (que infelizmente não pude mencionar muito porque a vi muito pouco por ela trabalhar quase o dia todo, mas que também me tratou de modo atencioso e considerado por toda a minha estadia) quis dar-nos capas de chuva, mas meu amigo sempre impulsivo não as aceitou e fomos andando à estação de metrô espremidos sob o mesmo guarda-chuva. Acabei o dia encharcado, mas de bom humor inabalável pois não há como se ficar de cara emburrada em presença de meu amigo.
All in all, gosto muito de pegar o metrô em São Paulo, pois o sortimento de pessoas é colorido e interessante – acho que os paulistanos são um povo deveras heterogêneo, o que, decerto, tem a ver com o fato de ser uma cidade grande. Também acho que nove entre dez moças da cidade estão entre as mais bonitas que já vi; e os moços também não são de todo maus apesar de eu ter conhecido poucos. Nas ruas e nas estações de metrô era raro eu não olhar para os lados e ver lindas moças às mancheias: em verdade, amo mulheres, e tenho orgulho de ter tantas como amigas, que são todas bonitas por fora e por dentro e sem as quais eu nada seria – mas duas das mulheres mais bonitas que conheço são de São Paulo; a primeira é a linda criança que serve como meu bom gênio e anjo guardião, e a segunda é uma velha amiga de mais de uma década por quem tenho um forte carinho, de nome Aline – teria gostado de vê-la durante a viagem, mas infelizmente ela não pôde comparecer.
Andei pela Avenida Paulista pela primeira vez (e ainda encontrei R$2,00 no chão como, talvez, um presente da cidade a mim). Em termos estéticos, no entanto, não achei o bairro de Jardins atraente; como todo bairro afluente feito única e exclusivamente para a moradia e usufruto das classes mais abastadas, tudo tem uma aparência entediante, tudo parece muito igual, muito perfeito – tanto é que sinto uma profunda agonia sempre que sou forçado a passar pelas partes “nobres” de minha própria cidade. Os prédios horríveis de Kishinev têm muito mais encanto para mim do que os lindos, inofensivos bloquinhos que parecem ter sido fabricados en masse que vi em Jardins.
Mas eis que chegamos ao nosso destino! Estava eu cansado e molhado, o que me deu mais gosto ainda para comer. O apartamento da ex-esposa de meu amigo era charmoso, mas de aparência estéril – aprendi a gostar mais da energia caótica de meu lugar de hospedagem. Fui saudado por ela e sua mãe – senhora muito simpática que me alegrou bastante. Cumprimentei sua filha brevemente. Meu amigo pediu para que eu lesse uma de minhas resenhas de seus discos – para ser mais específico, a parte II de “Bem aéreo”. Todos gostaram… Minha parte favorita de toda a viagem foi poder ler meus textos para quem quisesse ouvir, e receber elogios – coisa que, em meu próprio lar, nunca me permitiram fazer, e onde nem ao menos posso conversar sobre assuntos dos quais gosto. Mais tarde, naquele mesmo dia, ainda li a “Viagem por Kishinev” ao meu amigo, que fez mais outra linda ilustração, e só pude ir dormir depois das 4 da manhã.
Retornando para casa, nos deparamos com Jair Cacau próximo aquele mesmo bar onde não quis ir no dia anterior. Não conversei tanto com ele por não ter tantos assuntos que pudessem ser-lhe de interesse, portanto deixei que meu amigo tivesse um longo diálogo com ele enquanto eu admirava o movimento. E é aí que acho cômodo encerrar esta partição, pois meus olhos foram atraídos a uma linda, linda moça no bar, de longe a mais linda que contemplara durante minha estadia; era loura, de traços delicados, pequenina e tinha tatuagens nos braços e pernas desnudos. Não tive coragem de ir falar-lhe… mas quem sabe fosse um anjo disfarçado que meramente estivesse de passagem, e nada quereria ter a ver com um mero mortal como eu.
Ah…! Há 200 anos Álvares de Azevedo já escrevera que esta terra é como o “paraíso de Mafoma”… e com razão!
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14 de março. Último dia antes de minha partida. Pretendíamos retornar à biblioteca, mas a chuva tentou mais uma vez arruinar nossa alegria – em vão, pois optamos por ver mais um bom filme durante a tarde: “Decamerão”, de Pasolini. Em seguida li minha terceira e última história, “A soirée do sepulcro” – meu amigo gostou tanto que li duas vezes. De fato é um de meus melhores trabalhos, e um dos quais mais sinto orgulho. Passamos então o resto da tarde conversando sobre assuntos ora sérios, ora bobos, e o apresentei à cena do black metal – gostou mais da história em si do que da música. Poucas são as bandas que gosto hoje em dia, mas achei que ele julgaria no mínimo engraçado. Não me enganei. Ao fim do dia a cena do black metal não passava de um monte de jovens histéricos competindo entre si para ver quem era o mais perturbado.
Dividimos mais uma excelente pizza e um vinho muito mais suave e agradável, que me deu muito sono e, por isso, não pudemos ver um derradeiro filme, “O Sol por testemunha”. No entanto, ambos concordamos que esta viagem fora meramente um aperitivo para tantas mais que ainda viria a fazer, e no dia seguinte nos despedimos, com todo o afeto do mundo, e não pude evitar de chorar enquanto ia embora no ônibus, retornando à minha cidade onde não há quem me dirija palavras de carinho e, ante a recepção tão fria de meus familiares, vi que apenas a gata de estimação sentira minha falta durante minha ausência.
Foram cinco dos mais proveitosos dias que tivera até então, no entanto, e que fizeram muito bem à minha saúde mental – sem que me conhecesse profundamente, e nos comunicando apenas por telefone, meu amigo abriu sua casa e seu coração a mim, fazendo por mim nestes cinco dias mais do que meus familiares, mesquinhos e inabaláveis no desdém com que querem poluir meus sonhos, em 28 anos. Se hoje em dia meus horizontes se expandiram em direções que, até muito pouco tempo, mal era capaz de crer que alcançariam, se obtive qualquer desenvolvimento respeitável em minhas obras tão imperfeitas, o mérito não é única e exclusivamente meu; Marcos Andrada me ajudou em tudo aquilo que pôde e, independente se 10, 20, 30 anos se passaram desde que escrevi este texto, o prelúdio de tudo aquilo que conquistei neste meio-tempo se originou naqueles cinco dias que passei em sua companhia, em 2022. É desnecessário me repetir, mas toda a minha gratidão pertence a Marcos Andrada e às pessoas próximas a ele às quais fui apresentado, que coloriram tanto meus subsequentes trabalhos, e que aumentaram ainda mais meu amor por uma cidade tão exótica que sempre me abraçou, e que espero permanecer imutável nestes 10, 20, 30 anos.
(São Paulo, 10–15 de março de 2022;
Reeditado em 28 de setembro de 2022)