Cândida existência

A leitura é o lugar onde me escondo desse mundo chato. É pelas letras que posso ser o que desejar: homem, mulher, criança, bicho; qualquer coisa... até mesmo não ser nada!

Lendo, multiplico meu rosário de conhecimentos, único bem que ninguém, jamais, poderá me subtrair. As letras são meu passaporte para a liberdade, pois me permitem caminhar no tempo e no espaço pelas instâncias do passado e futuro, vislumbrando cada fragmento que compõe a complexa teia da existência.

Livre de todas as correntes contemplo a criação que parte do nada; mesmo sendo nada, ainda consigo pensar, e, isso, ratifica minha existência. Deixo-me compor pelas moléculas do sopro divino; estou na massa moldada pela obra do oleiro e, ao mesmo tempo, sou matéria orgânica fervente, catalisada pelas magníficas descargas elétricas ambicionadas pelas modernas usinas geradoras, que dão luz ao paradoxo: construir e destruir.

Sendo criado, evoluo; fruto de evolução, crio e modifico, pois, tendo o poder de montar universos paralelos posso manter impérios inabaláveis e fulminar seus opositores. Tenho a permissão para navegar com Homero na Odisséia, saltar na história impedindo a queda da Bastilha e a formação da Burguesia, conter a fecundação de um gameta nomeado, posteriormente, Hitler ou permitir-lhe a existência e o êxito de seus planos.

Movo montanhas, fecundo sementes, navego por imensos mares...

Sou o herói que consegue poupar Cristo da cruz, como fizera Scorcese, para depois crucifixá-lo de novo dando a Santo Agostinho a chance de compor o Felix Culpa.

Posso ir, também, além das esferas da vida, antes e depois da existência física; mergulhar nos abismos da morte ou retornar ao não ser, explorando minha contingência sem limitar-me por ela.

Navego, com Virgílio, do inferno ao paraíso; cruzando portais onde se deixa toda a esperança para mergulhar na boca de animais como a ingratidão, pintada por dos Anjos, derrotá-la e encontrar Beatriz, pois minhas letras, tal quais as de Alighieri , seguem as mais extraordinárias aventuras perfumadas pelas mais inexoráveis paixões.

Como uma águia capaz de alçar voos inimagináveis, consigo cruzar as camadas que envolvem o planeta, e, atingindo a velocidade de escape, desbravar mundos jamais vistos; deixar-me sugar por buracos negros, fundir-me a eles e ser, eu mesmo, um imenso buraco negro.

Posso ser tudo que não me foi possível: a linda amante de um rico príncipe, um grande jogador, um famoso detetive ou um sagaz assassino serial. Também, pelos livros, posso penetrar nos microcosmos, sentar-me sobre um eletron e circundar prótons e nêutrons observando bem de perto todas as partículas e posso, ainda, descortinar todos os mistérios de todas as ciências.

Fora do paradigma da humildade, consigo rebaixar-me às ordens mais desprezíveis e temidas tornando-me a peste negra que fez apodrecer milhões de corpos, multiplicar a eficácia do ebola e fazer com que o HIV seja uma simples gripe. Sou o anjo rebelde do plano incorpóreo que, mesmo tendo irradiado a desordem, tem permissão de Deus para fustigar os Jós de carne e osso.

Posso, por fim, desenhar o céu onde desejo repousar... meus olhos sobre folhas preenchidas com as mais profundas experiências e conhecê-las, todas, em um único instante que se estende para sempre; saciar meus ouvidos com o doce canto de tenras palavras que me permitem adormecer e sonhar, em vigília, com minhas mãos sobre papeis em branco, lenta e infinitamente preenchidos pelos meus infinitos sonhos.

Niterói, 11 de Julho de 2010.