Cora Coralina (Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas, 1889 - 1985)

Cora Coralina (Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas), 20/08/1889 — 10/04/1985, é a grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas femininos "A Rosa". Em 1910, seu primeiro conto, "Tragédia na Roça", é publicado no "Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás", já com o pseudônimo de Cora Coralina. Em 1911 conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Brêtas, com quem foge. Vai para Jaboticabal (SP), onde nascem seus seis filhos: Paraguaçu, Enéias, Cantídio, Jacintha, Ísis e Vicência. Seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de Arte Moderna, a convite de Monteiro Lobato, em 1922. Em 1928 muda-se para São Paulo (SP). Em 1934, torna-se vendedora de livros da editora José Olimpio que, em 1965, lança seu primeiro livro, "O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais". Em 1976, é lançado "Meu Livro de Cordel", pela editora Cultura Goiana. Em 1980, Carlos Drummond de Andrade, como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora, manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho, a qual, ao ser divulgada, desperta o interesse do público leitor e a faz ficar conhecida em todo o Brasil.

Sintam a admiração do poeta, manifestada em carta dirigida a Cora em 1983:

"Minha querida amiga Cora Coralina: Seu "Vintém de Cobre" é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia ( ...)." Editado pela Universidade Federal de Goiás, em 1983, seu novo livro "Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha", é muito bem recebido pela crítica e pelos amantes da poesia. Em 1984, torna-se a primeira mulher a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de 1983. Viveu 96 anos, teve seis filhos, quinze netos e 19 bisnetos, foi doceira e membro efetivo de diversas entidades culturais, tendo recebido o título de doutora "Honoris Causa" pela Universidade Federal de Goiás. No dia 10 de abril de 1985, falece em Goiânia. Seu corpo é velado na Igreja do Rosário, ao lado da Casa Velha da Ponte. "Estórias da Casa Velha da Ponte" é lançado pela Global Editora. Postumamente, foram lançados os livros infantis "Os Meninos Verdes", em 1986, e "A Moeda de Ouro que um Pato Comeu", em 1997, e "O Tesouro da Casa Velha da Ponte", em 1989.

Texto extraído do livro "Vintém de cobre - Meias confissões de Aninha", Global Editora — São Paulo, 2001, pág. 174.

Publicou:

Estórias da Casa Velha da Ponte, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, Os Meninos Verdes, Meu Livro de Cordel, O Tesouro da Velha Casa, Becos de Goiás (1977); e Vintém de cobre: meias confissões de Aninha (1983). Além disso, publicou A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (Infantil) e Cora Coragem Cora Poesia foi sua biografia, escrita por sua filha Vicência Bretas Than.

Alguns dos prêmios que recebeu:

- Doutor Honoris Causa - Universidade Federal de Goiás (1983)

- Troféu Juca Pato - União Brasileira dos Escritores (1983)

- Troféu Cora Coralina - Coordenadoria de Moral e Civismo da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro (1982)

- Grande Prêmio da Crítica - Associação Paulista de Críticos de Arte

Algumas de suas poesias:

CONCLUSÕES DE ANINHA

Estavam ali parados. Marido e mulher.

Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça

tímida, humilde, sofrida.

Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,

e tudo que tinha dentro.

Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar

novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,

entregou sem palavra.

A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,

se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar

E não abriu a bolsa.

Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar

e a mulher participa sem ajudar.

Da mesma forma aquela sentença:

"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."

Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,

o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso

e ensinar a paciência do pescador.

Você faria isso, Leitor?

Antes que tudo isso se fizesse

o desvalido não morreria de fome?

Conclusão:

Na prática, a teoria é outra.

MÃE

Renovadora e reveladora do mundo

A humanidade se renova no teu ventre.

Cria teus filhos,

não os entregues à creche.

Creche é fria, impessoal.

Nunca será um lar

para teu filho.

Ele, pequenino, precisa de ti.

Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?

Independência, igualdade de condições...

Empregos fora do lar?

És superior àqueles

que procuras imitar.

Tens o dom divino

de ser mãe

Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.

Serás um animal somente de prazer

e às vezes nem mais isso.

Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.

Tumultuada, fingindo ser o que não és.

Roendo o teu osso negro da amargura.

ANTIGUIDADES

Quando eu era menina

bem pequena,

em nossa casa,

certos dias da semana

se fazia um bolo,

assado na panela

com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,

como tudo, antigamente.

Pesado, grosso, pastoso.

(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.

Gulosa,

abria os olhos para aquele bolo

que me parecia tão bom

e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa

cortava aquele bolo

com importância.

Com atenção. Seriamente.

Eu presente.

Com vontade de comer o bolo todo.

Era só olhos e boca e desejo

daquele bolo inteiro.

Minha irmão mais velha

governava. Regrava.

Me dava uma fatia,

tão fina, tão delgada...

E fatias iguais às outras manas.

E que ninguém pedisse mais !

E o bolo inteiro,

quase intangível,

se guardava bem guardado,

com cuidado,

num armário, alto, fechado,

impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.

Não pra ser comido

assim, sem mais nem menos.

Destinava-se às visitas da noite,

certas ou imprevistas.

Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,

não valia mesmo nada.

A gente grande da casa

usava e abusava

de pretensos direitos

de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,

ralhos e beliscão.

Palmatória e chineladas

não faltavam.

Quando não,

sentada no canto de castigo

fazendo trancinhas,

amarrando abrolhos.

"Tomando propósito".

Expressão muito corrente e pedagógica. Aquela gente antiga,

passadiça, era assim:

severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.

Mas, as visitas...

- Valha-me Deus !...

As visitas...

Como eram queridas,

recebidas, estimadas,

conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.

Solene, empertigada.

De velhas conversar

que davam sono.

Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:

D. Aninha com Seu Quinquim.

D. Milécia, sempre às voltas

com receitas de bolo, assuntos

de licores e pudins.

D. Benedita com sua filha Lili.

D. Benedita - alta, magrinha.

Lili - baixota, gordinha.

Puxava de uma perna e fazia crochê.

E, diziam dela línguas viperinas:

"- Lili é a bengala de D. Benedita".

Mestre Quina, D. Luisalves,

Saninha de Bili, Sá Mônica.

Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio...

Dessa então me lembro bem.

Era amiga do peito de minha bisavó.

Aparecia em nossa casa

quando o relógio dos frades

tinha já marcado 9 horas

e a corneta do quartel, tocado silêncio.

E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,

como era de bom-tom,

se revezava fazendo sala.

Rendidos de sono, davam o fora.

No fim, só ficava mesmo, firme,

minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha

grossa, rombuda, aparatosa.

Esquisita.

Demorona.

Cega de um olho.

Gostava de flores e de vestido novo.

Tinha seu dinheiro de contado.

Grossas contas de ouro

no pescoço.

Anéis pelos dedos.

Bichas nas orelhas.

Pitava na palha.

Cheirava rapé.

E era de Paracatu.

O sobrinho que a acompanhava,

enquanto a tia conversava

contando "causos" infindáveis,

dormia estirado

no banco da varanda.

Eu fazia força de ficar acordada

esperando a descida certa

do bolo

encerrado no armário alto.

E quando este aparecia,

vencida pelo sono já dormia.

E sonhava com o imenso armário

cheio de grandes bolos

ao meu alcance.

De manhã cedo

quando acordava,

estremunhada,

com a boca amarga,

- ai de mim -

via com tristeza,

sobre a mesa:

xícaras sujas de café,

pontas queimadas de cigarro.

O prato vazio, onde esteve o bolo,

e um cheiro enjoado de rapé.

RESSALVA

Versos... não

Poesia... não

um modo diferente de contar velhas histórias

Cora Coralina (Poemas dos Becos de Goiás )

TalitaBello
Enviado por TalitaBello em 06/09/2006
Reeditado em 06/09/2006
Código do texto: T233981