Antoine de Saint-Exupéry (1900 - 1944)

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY

(Aviador e escritor francês)

29-6-1900, Lyon / 31-7-1944, Vershollen

Site (em francês):

www.saint-exupery.org

Antoine Marie Roger, conde de Saint-Exupéry, escreveu um dos mais famosos best-sellers do pós guerra, O Pequeno Príncipe (1943), uma parábola em forma de conto que coloca em xeque o ponto de vista racional dos adultos. Seus romances, diários e ensaios transmitem uma filosofia de vida que pretende melhorar as relações entre as pessoas, mediante a utilização ética da técnica, além de exaltar a amizade e a fraternidade, que conduzirão até o auto sacrifício, se necessário. Seus temas têm por base suas experiências como piloto. Depois de cumprir o serviço militar na Força Aérea francesa, trabalhou para linhas aéreas privadas da Europa e da América. Na primeira fase da Segunda Guerra Mundial, foi piloto de ensaios e de combate. Em 1940, juntou-se à Força Aérea dos Estados Unidos e realizou vôos de reconhecimento para os aliados. Empreendeu então uma viagem à Córsega, da qual nunca regressou. Outras obras importantes são Correio do Sul (1929), Vôo Noturno (1931), Terra de Homens (1939) e Piloto de Guerra (1942).

Nascido em 1900 na cidade francesa de Lyon, Saint-Exupéry torna-se piloto de avião aos 21 anos de idade e algum tempo depois será pioneiro do correio aéreo nas perigosas rotas entre a França, a África e a América do Sul. Por 12 anos executa vôos sobre o Mediterrâneo, o Saara, o oceano Atlântico, a Patagônia e os Andes. Sofre vários acidentes e precisa fazer pousos forçados em diversas ocasiões

Toda a obra de Saint-Exupéry é resultado de suas vivências como piloto. Em "Vôo Noturno" (1931) ele mistura aventuras aéreas com interrogações e angústias do ser humano frente ao próprio destino. O livro "Terra dos homens" (1939) é um dos mais calcados nas experiências do autor e foi agraciado com o Grande Prêmio da Academia Francesa na categoria romance pelo seu estilo poético unido a uma densidade filosófica.

Um ótimo trabalho de interpretação de "O pequeno príncipe" dentro da biografia e das obras de Saint-Exupéry está no texto de Michael Quesnel, que serve de prefácio à luxuosa edição comemorativa dos cinqüenta anos deste livro no Brasil (1952-2002) e que vem a público pela editora Agir.

Com o título de "O nascimento do pequeno príncipe", o texto de Quesnel cita uma passagem do livro "Terra dos homens" em que Saint-Exupéry, trabalhando como repórter, é enviado a Moscou num trem que levava trabalhadores deportados da França de volta a seu país. Num dos vagões ele se encanta com o rosto de um menino dormindo feito um anjo dourado e pensa: "Eis aí a figura de um músico, de um Mozart em criança; uma bela promessa de vida. Aqueles pequenos príncipes das lendas...". Aí nasce o personagem que todos nós conhecemos.

O episódio acima citado ocorre em 1935, mesmo ano em que Saint-Exupéry tem problemas num vôo sobre a Líbia, sendo obrigado a pousar em pleno deserto e andar durante cinco dias até ser encontrado por uma caravana de nômades que o salva. A história da pane e do encontro com o menino narrado em "O pequeno príncipe" acabava de nascer.

O ano de 1935 guarda, ainda, mais um fato interessante: as primeiras aparições gráficas do pequeno garoto. Saint-Exupéry rabisca em guardanapos de restaurantes e nas cartas que escreve a silhueta inconfundível daquele que virá a ser o Pequeno Príncipe.

A Europa atravessa um período de tensões. Em 1936, eclode a Guerra Civil na Espanha e Saint-Exupéry é enviado para cobri-la como repórter da imprensa francesa. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o escritor vai combater nos céus da França de setembro de 1939 a agosto de 1940. No fim deste ano, ele desembarca nos EUA, onde pretende passar algumas semanas, mas acaba ficando durante 27 meses.

Em Nova York, Saint-Exupéry escreve "Piloto de guerra", publicado em 1942. Neste livro, ele reúne suas recordações sobre uma missão de reconhecimento executada durante a guerra que corre. Esse trabalho tem sucesso imediato, sendo considerado "a melhor resposta das democracias ao 'Mein Kampf'". A obra expõe ao mundo a resistência francesa contra a invasão do exército de Hitler.

Apesar de tamanho sucesso, Saint-Exupéry sente-se cada vez mais amargurado, apreensivo por sua família que ficou na França e angustiado pelo destino de seu país. A esposa de seu editor nos EUA, buscando distraí-lo, convida-o para realizar uma história destinada às crianças, baseada no personagem que ele rascunhava em suas cartas. É neste ambiente sombrio, portanto, que o Pequeno Príncipe ganha voz.

Em novembro de 1942, os americanos decidem iniciar o combate na África do Norte e Saint-Exupéry pede para juntar-se às forças aéreas. Antoine foi oficialmente contra o governo nazista. Quando o Pequeno Príncipe foi publicado em 1943, a França estava ocupada pelo exército alemão. Saint-Exupéry foi muito ativo na Resistência Francesa, e seu livro "Flight to Arras" foi proibido na França, ocupada em 1942 pela Alemanha. Então, parece improvável que um soldado alemão iria adquirir uma cópia dos livros de Antoine, mesmo quando surgiu uma tradução para o alemão de O Pequeno Príncipe em 1944, quando Saint-Exupéry desapareceu.

Exupéry enfrentou problemas delicados de saúde que o impediam de continuar voando. Mas para ele, não voar significava não viver. Contrariando ordens médicas, em 1944 decolou pela última vez rumo ao infinito. Assim, no inicio de 1943, o escritor parte para a costa africana, deixando em Nova York um jogo de provas corrigidas da obra-prima chamada "O pequeno príncipe". Em julho de 1944, o comandante Saint-Exupéry, cumprindo mais uma de suas missões aéreas, some sem deixar vestígios.

O PEQUENO PRÍNCIPE – ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY

É curioso perceber como no mundo da literatura algumas frases destacam-se da obra em que foram concebidas para seguir sozinhas mundo afora. Sem muito esforço, é possível lembrar dos versos de Fernando Pessoa que foram transformados em slogan na boca de adolescentes que atravessam a primeira crise amorosa: "Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena".

Talvez a campeã absoluta na categoria "Epígrafe em página de agenda para adolescente" seja a seguinte frase: "Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos". Este é o segredo que a raposa revela no livro "O pequeno príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry.

Publicado pela primeira vez em 1943, "O pequeno príncipe" é a salvação para algumas pessoas que possuem um estreito horizonte literário e que se vêem na situação de expor publicamente o seu livro preferido. O exemplo clássico são os concursos de miss. Neste ponto, vale observar que entre as misses brasileiras o livro de Saint-Exupéry tem como forte concorrente o romance "Feliz ano velho", de Marcelo Rubens Paiva.

O espectro de auto-ajuda que envolve a obra de Saint-Exupéry pode ser verificado facilmente por meio da Internet. Para ficar em apenas um exemplo, encontrei um site dedicado exclusivamente a este livro e que apresenta a declaração de um ex-alcoólatra que encontrou nas páginas de "O pequeno príncipe" forças para largar o vício.

Para os leitores interessados em ultrapassar a superfície deste livro que traz em suas camadas mais profundas uma reflexão poética e filosófica sobre o amor e a amizade, recomendo que se faça uma breve pesquisa sobre Antoine de Saint-Exupéry. É na biografia do autor de "O pequeno príncipe", e no lugar que este livro tem no conjunto de sua obra, que podemos ter uma dimensão mais ampla do significado de suas palavras.

O Pequeno Príncipe foi escrito e ilustrado por Antoine de Saint-Exupéry um ano antes de sua morte, em 1944. Piloto de avião durante a Segunda Grande Guerra, o autor se fez o narrador da história, que começa com uma aventura vivida no deserto depois de uma pane no meio do Saara. Certa manhã, é acordado pelo Pequeno Príncipe, que lhe pede: "Desenha-me um carneiro"? É aí que começa o relato das fantasias de uma criança como as outras, que questiona as coisas mais simples da vida com pureza e ingenuidade. O principezinho havia deixado seu pequeno planeta, onde vivia apenas com uma rosa vaidosa e orgulhosa. Em suas andanças pela Galáxia, conheceu uma série de personagens inusitados – talvez não tão inusitados para as crianças!

Um rei pensava que todos eram seus súditos, apesar de não haver ninguém por perto. Um homem de negócios se dizia muito sério e ocupado, mas não tinha tempo para sonhar. Um bêbado bebia para esquecer a vergonha que sentia por beber. Um geógrafo se dizia sábio mas não sabia nada da geografia do seu próprio país. Assim, cada personagem mostra o quanto as “pessoas grandes” se preocupam com coisas inúteis e não dão valor ao que merece. Isso tudo pode ser traduzido por uma frase da raposa, personagem que ensina ao menino de cabelos dourados o segredo do amor: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.

Antoine de Saint-Exupéry via os adultos como pessoas incapazes de entender o sentido da vida, pois haviam deixado de ser a criança que um dia foram. Entendia que é difícil para os adultos (os quais considerava seres estranhos) compreender toda a sabedoria de uma criança.

Desta fábula foram feitos filmes, desenhos animados, além de adaptações. Muitos adultos até hoje se emocionam ao lembrar do livro. Talvez porque tenham se tornado “gente grande” sem esquecer de que um dia foram crianças.

" As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu porém, terás estrelas como ninguém... Quero dizer: quando olhares o céu de noite, (porque habitarei uma delas e estarei rindo), então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir! Assim, tu te sentirás contente por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá). Terás vontade de rir comigo. E abrirá, às vezes, a janela à toa, por gosto... e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!"

"O Amor é a única coisa que cresce à medida que se reparte".

"O amor não consiste em olhar um para o outro, mas sim em olhar juntos para a mesma direção."

"Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que fez tua rosa tão importante."

" Não exijas de ninguém senão aquilo que realmente pode dar."

"Em um mundo que se fez deserto, temos sede de encontrar companheiros."

" Nunca estamos contentes onde estamos."

" Será como a flor. Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas."

"Para enxergar claro, bastar mudar a direção do olhar."

" Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos."

" Sois belas, mas vazias. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus a redoma. Foi a ela que abriguei com o para-vento. Foi dela que eu matei as larvas. Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa."

" Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"

" Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós."

" O amor verdadeiro não se consome, quanto mais dás, mais te ficas."

" Só os caminhos invisíveis do amor libertam os homens.

" O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá mais se tem."

"Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla."

"Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas." (Antoine de Saint-Exupéry)

ACASO

"Cada um que passa em nossa vida,

passa sozinho, pois cada pessoa é única

e nenhuma substitui outra.

Cada um que passa em nossa vida,

passa sozinho, mas não vai só

nem nos deixa sós.

Leva um pouco de nós mesmos,

deixa um pouco de si mesmo.

Há os que levam muito,

mas há os que não levam nada.

Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,

e a prova de que duas almas

não se encontram ao acaso. "

(Antoine de Saint-Exupéry)

"A civilização é um bem invisível porque inscreve seu nome nas coisas",

E suas últimas palavras antes de embarcar na missão final e fatal: "Se voltar, o que será preciso dizer aos homens?"

Ele escreveria que "durante séculos e séculos a minha civilização contemplou Deus através dos homens. O homem era criado à imagem de Deus. Respeitava-se Deus no homem. Esse reflexo de Deus conferia uma dignidade inalienável ao homem", para concluir que "as relações do homem com Deus serviam de fundamento evidente aos deveres do de cada homem consigo próprio ou para com os outros".

"Havia, em algum lugar, um parque cheio de pinheiros e tílias, e uma velha casa que eu amava. Pouco importava que ela estivesse distante ou próxima, que não pudesse cercar de calor o meu corpo, nem me abrigar; reduzida apenas a um sonho, bastava que ela existisse para que a minha noite fosse cheia de sua presença. Eu não era mais um corpo de homem perdido no areal. Eu me orientava. Era o menino daquela casa, cheio da lembrança de seus perfumes, cheio da fragrância dos seus vestíbulos, cheio das vozes que a haviam animado."

(Antoine de Saint-Exupéry)

SAINT EXUPÉRY: DESFEITO O MISTÉRIO

O famoso aviador francês Antoine de Saint-Exupéry, que também se celebrizou pela obra "O Pequeno Príncipe" nunca se acidentou no Brasil, muito menos na Baixada Santista, nem foi seu aparelho o que pousou em Ubatuba em 1933 devido a uma pane ou ao nevoeiro, abreviando uma viagem que tinha como escala seguinte a pista de pouso da Latecóere (depois Air France), em Praia Grande/SP.

A história que deu origem a uma lenda na região litorânea paulista foi desvendada em reportagem de Edmar Pereira, publicada no Caderno de Programas e Leituras do Jornal da Tarde/OESP em São Paulo, 11 de janeiro de 1986, com o texto a seguir reproduzido:

SAINT-EXUPÉRY

A incrível história de sua passagem por Ubatuba

Uma viagem imaginária

Reportagem de Edmar Pereira

Uma tarde luminosa do mês de junho de 1933 em Ubatuba, época de tanto peixe que as tainhas podiam ser apanhadas na praia, apenas com as mãos. Época em que os parcos 800 habitantes da cidade viviam ainda o espanto do seu primeiro contato com um automóvel, ocorrido poucas semanas antes. Mas nessa tarde o espanto seria maior: sem qualquer aviso ou preparação na praia de Itaguá, centro da cidade - cujas árvores haviam sido cortadas exatamente para uma emergência desse tipo na Revolução de 32, mas nunca sucedida -, desceu um avião. Um teco-teco da Cia. Gènèrale Aero-Postale, que fazia a linha aérea regular entre França e Argentina. Nos 11 mil quilômetros do percurso passava pela costa atlântica brasileira e teria descido em Santos, na base aérea da Praia Grande, não fosse por uma panne no motor.

O avião era pilotado por um certo Antoine, que naturalmente não falava português, assim como os de Ubatuba não sabiam francês. No máximo um "vous voulez quelque chose?" dos rudimentos ginasianos, recordado oportunamente por Washington Oliveira, o Filinho, que mais tarde ocuparia duas vezes a prefeitura da cidade e se tornaria seu principal historiador.

Filinho foi também, sem qualquer má intenção, uma espécie de cultor e divulgador de um mito que Ubatuba teve como verdade durante 52 anos. O de que, após a visita do alemão Hans Staden mais de quatro séculos antes, a cidade recebera outro visitante internacionalmente célebre. Antoine foi imediatamente dado como Antoine de Saint-Exupéry, o famoso aviador e autor de O Pequeno Príncipe, livro que provocaria erupções de sensibilidade banal em vários cantos do mundo, incluindo as passarelas por onde desfilavam as candidatas a miss Brasil - embora nessa área venha nos últimos anos perdendo terreno para Feliz Ano Velho, de Marcelo Paiva.

Antoine, como esclarece hoje, após mais de 20 anos de pesquisa o jornalista, museólogo e pesquisador de cultura popular Luiz Ernesto Kawall, 58 anos de idade, não era um prenome. Tratava-se do piloto Léon Antoine, também um dos grandes ases da aviação francesa em todos os tempos, com mais de 21 mil horas de vôo, recordista mundial de vôo livre com um tempo de oito horas e 20 minutos, detentor da Legião de Honra e hoje em dia, aos 84 anos, aposentado e vivendo num bonito sítio em Javari, no Estado do Rio. Mas disso só se sabe agora. Tanto no folclore quanto na história de Ubatuba, o visitante que caiu do céu naquela tarde de 1933 acompanhado de um telegrafista chamado Chauchat, era mesmo Saint-Exupéry, embora em nenhum de seus livros se encontre uma única palavra sobre tal aventura.

Kawall começou sua pesquisa a partir de uma notícia publicada em 9 de novembro de 1964. "Essa história foi criada como um conto de fadas. Em 1933, Ubatuba, isolada no Litoral Norte, onde só se chegava por mar ou então pelo céu - e aí só por acidente - estava reduzida a 110 casas, todas mais ou menos em ruínas, e em dez anos poderia acabar. Matava-se peixe a pau e apanhava-se milhares de tainhas cujos cardumes vinham dar à praia e eram enterrados como sobras. Quando o aviãozinho desceu, um grupo logo correu ao Itaguá e cercou a nave. Hélice parada, os tripulantes desceram, foram guiados por um agitado cortejo popular até a casa do radiotelegrafista da Aero-Postale, Gilberto Nogueira Brandão. Léon Antoine e Chauchat queriam ficar hospedados em sua casa, mas o telegrafista não tinha acomodação suficiente e isto chegou até a causar um pequeno desentendimento".

A partir daí, Antoine e Chauchat foram considerados hóspedes oficiais da cidade pelo então prefeito Deolindo dos Santos (aliás, tio do historiador Filinho) e levados para o Hotel Felipe, de pau-a-pique, porém de linhas coloniais, hoje já demolido. Nas lembranças de Antoine, levado a Ubatuba 52 anos depois por Kawall, ele e Chauchat viveram uma noite memorável, regada por duas garrafas de um inesquecível vinho Sauternes, raro e caro até mesmo na França.

Após o justo sono, os franceses, bem cedinho, no dia seguinte, voltaram à praia, com o propósito de retirar do avião uma parte do combustível, exatamente 200 litros de querosene, ofertados à população. Antoine se lembra de que chegaram com todo o tipo de vasilhame, de latas até penicos. Depois todos, com compreensível entusiasmo, ajudaram a empurrar o pequeno avião (um Latecoère) pela praia, até que o aparelho adquirisse velocidade suficiente para pegar e decolar. "Tomou rumo Sul, após uma suave evolução sobre a baía de Ubatuba". A cena jamais seria esquecida, incorporou-se ao folclore local. A crônica ubatubense registra ainda dois outros casos de ruidosas descidas de aviões em suas praias, mas nada que provocasse o mesmo frisson.

Tornada pública a partir de 64 por uma série de reportagens do jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, a inusitada visita de Saint-Exupéry passou quase que imediatamente a ser pesquisada por Luiz Ernesto Kawall. Que nesses 20 anos leu toda a obra do autor de O Pequeno Príncipe, "embora sem ficar particularmente impressionado por sua qualidade literária, acho tudo um pouco piegas demais, acho até que prefiro O Pequeno Príncipe do filme exibido pela Globo do que o do livro".

Kawall tornou-se então conhecedor da obra e da vida deste francês nascido em 1900 e cujo avião desapareceu sobre o Mediterrâneo no dia 31 de julho de 1944, entre Grenoble e Annecy, depois de haver partido de um campo de pouso na Córsega. "Não encontrei na obra do escritor nenhuma referência ao acidente de Ubatuba, suas maiores referências ao Brasil estão contidas no capítulo 13 de Vôo Noturno, onde fala sobre as montanhas 'recortadas com nitidez no céu brilhante', das florestas 'sobre as quais brilham incessantemente, sem lhes dar cor, os raios do luar', e de 'uma lua sem desgaste: uma fonte de luz'".

Sabe-se, comprovadamente, de Saint-Exupéry em Natal (onde se hospedava no hoje também já demolido Grande Hotel, que abrigou também Bing Crosby e o, na época, príncipe Feisal), na Praia Grande, em Pelotas e Porto Alegre. Mas a descida em Ubatuba tornou-se um mito tão forte que envolveu, ou foi corroborado, até por uma especialista imbatível na biografia do escritor-piloto-aventureiro, a dominicana irmã Rosa Maria. Ela ficou nacionalmente conhecida ao responder sobre Saint-Exupéry no programa O Céu É o Limite, tendo depois disso escrito um livro sobre ele. No prefácio, fazia referências a pousos forçados em Santos, Praia Grande e Ubatuba. Mas, Kawall explica, irmã Rosa Maria foi das primeiras a alertá-lo de que Ubatuba tinha poucas possibilidades de ter sido pelo menos uma vez incluída em seus roteiros.

Kawall, entre muitas outras pessoas, foi ouvir em Ubatuba - onde criou o Museu do Bairro Tenório, para preservação da memória, história e paisagem da cidade - dona Isabel de Oliveira Santos, a viúva do prefeito Deolindo, que considerou os acidentados franceses hóspedes oficiais. O raro vinho Sauternes servido a Antoine e seu companheiro foi possível por ser Deolindo "um comerciante, que tinha em sua casa vinhos de várias partes do mundo, especialmente franceses e portugueses, importava das casas de São Paulo e Rio..." Dona Isabel não se lembra bem dos aviadores no depoimento, tomado em agosto de 1973 (ela já faleceu), mas conta que "eles devem ter se hospedado no hotel Felipe, que ficava defronte da nossa casa, na Rua Maria Alves, e era o melhor e mais antigo de Ubatuba".

A saga exuperyana foi confirmada pelo historiador e ex-prefeito Filinho: "Quanto o avião desceu houve aquele burburinho, o aparelho foi cercado pela população. Um húngaro, Julio Kertz, tentou falar com o piloto em alemão, mas ele não entendeu". Ele lembra que "no dia seguinte os franceses ainda passaram a pé pela frente de casa, junto à praça da Matriz, se despediram com um au revoir e foram embora. Não sei se passaram telegrama no correio, acho que não, pois se a própria Air France (nome da Aero-Postale de 1933 em diante) tinha estação telegráfica não precisariam disto". Filinho informou que não há mais registro dos livros do hotel, porque seus proprietários morreram. Mas conseguiu descobrir o telegrafista Gilberto Brandão, da Air France, morando em Niterói, e este confirmou numa carta "a estada de Saint-Exupéry entre nós", embora sem conseguir precisar exatamente a data.

A "estada" de Saint-Exupéry está fartamente documentada em fotografias. Umas foram feitas pelo próprio piloto Léon Antoine e outras por um alemão (aliás, nascido na Guatemala), Herman Porcher, também já falecido mas ouvido por Kawall. O alemão estava na cidade como turista e mais tarde compraria "metade da praia de Santa Rita".

"Localizei esse Porcher morando em Santo Amaro, me diziam que ele gostava de freqüentar os bares do bairro e levei tempo até encontrá-lo. O garçom de uma choperia me deu o telefone dele, marcamos um encontro em seu escritório de numismática - ele trocara a fotografia pelo comércio de moedas. Que descoberta! Porcher não só relatou o caso dos aviadores como, depois de me descrever o jantar na companhia deles, mostrou quatro fotografias batidas na manhã de sua partida. Em Ubatuba, onde se hospedava no Hotel Idalina e planejava caçadas nas matas vizinhas com alguns amigos, usando culotes, perneiras e capas sobradas da Revolução de 32, o alemão lembrou-se de que eram por volta de cinco horas e já começava a escurecer quando o avião desceu na praia. Falou com os tripulantes em francês, ouviu deles que vinham de Natal, fazendo várias escalas e levando malas postais até Santos".

- Quando os franceses pediram vinho o prefeito foi buscar. O mais alto, ao ver a garrafa, exclamou: 'Mas onde o senhor arranjou isto? Na França este vinho custa um dinheirão!' Conversamos sobre aviões e a linha aérea francesa para a América do Sul e também sobre os vôos do Zeppelin, que eu tinha fotografado em São Paulo naquele mesmo ano. Depois do jantar fomos ver o avião na praia, um caiçara entrara na cabine e estava divertindo-se. "Cuidado, João, o avião pode levantar vôo", alguém gritou, e ele saiu correndo de medo".

Porcher contou também que, "por volta de 50 e poucos, quando Saint-Exupéry começou a ficar falado e famoso, eu soube que aquele homem alto e gentil que descera em Ubatuba era ele". O fotógrafo morreu antes de ver desfeito o equívoco. Mas com as fotos na mão, Kawall foi em frente. Uma das primeiras pessoas que procurou foi a dominicana Rosa Maria, que não pôde dizer com certeza se nas fotos estava ou não seu amado Saint-Exupéry. Talvez no lugar do escritor-piloto estivesse outra celebridade, o grande pioneiro da aviação e grande herói Jean Mermoz, que também pilotara para a Gènèrale Aero-Postale. Kawall tentou Joseph Halfin, da Air France, escreveu cartas para a França, mas nada de levantar com certeza a indentidade dos dois franceses que pernoitaram em Ubatuba.

A verdade começou a aparecer em setembro do ano passado, quando se comemorava a travessia do Atlântico por Mermoz e a TV Globo entrevistou o jornalista francês Jean-Gérard Fleury, correspondente da revista Le Point. Ao vê-lo falar sobre o heroísmo pioneiro de Mermoz, Kawall intuiu que poderia ter dele um esclarecimento definitivo. Tinha razão. Fleury, que foi amigo de Saint-Exupéry, imediatamente se interessou pelo assunto, a partir de uma conversa telefônica.

Viajou para a França e lá recebeu uma carta do jornalista brasileiro, com várias perguntas. Entre as respostas, a de que "as fotos enviadas não são de Saint-Exupéry" e "Saint-Exupéruy nunca teve acidente no Brasil". E completava: "Achando muito simpática sua pesquisa sobre um episódio acontecido em Ubatuba, tenho grande prazer em completar as informaçoes solicitadas. O avião que pousou naquela cidade em 1933 era pilotado pelo veterano comandante Léon Antoine, acompanhado pelo radiotelegrafista Chauchat. Hoje ainda Antoine se lembra da triunfal acolhida tanto pelo prefeito como pelo povo da cidade e evoca sempre com emoção um vinho Sauternes de admirável paladar, assim como suas conversas com o prefeito e um cidadão alemão que falava francês. Quando lembrei a Antoine este episódio ele se comoveu e falou de sua grande vontade em rever o lugar do acidente e as pessoas que lhe prestaram tão fraternal assistência".

A pesquisa estava terminada, ou quase. Luiz Ernesto Kawall decidiu então que tudo só ficaria completo depois de um encontro com o próprio Leon Antoine, sobre quem Fleury informara estar vivendo no Brasil desde que se aposentara na Air France. Antoine, casado, pela segunda vez, com Célia Regina, uma bela negra brasileira, de fato mora num sítio em Barão de Javari, no interior fluminense. Aos 84 anos, pai de dois filhos, tem cinco netos e dois bisnetos. Adora o Brasil e permanece um admirador de bons vinhos. Reconheceu imediatamente as fotografias feitas em Ubatuba do seu avião Late 26. Já pilotou todos os tipos e avião, do primitivo Brequet-14 até o Super G Constellation. Seu relato sobre o episódio:

- Nossa próxima parada seria Praia Grande, mas na altura de Ubatuba a cerração impediu o vôo visual. Nós nos guiávamos por cartas da Marinha do Brasil, sempre observando os faróis, e os homens da empresa acendiam fogueiras nos pousos de Praia Grande, Florianópolis e Pelotas para nos orientar. Com a cerração fechando o visual, baixamos um pouco e avistamos a torre da igreja de Ubatuba. Fizemos um vôo em círculo, escolhemos uma praia onde a vegetação era rala e decidimos descer. Fomos imediatamente cercados pelo povo, alguns nos olhavam como se fôssemos extraterrestres.

Antoine, entre muitas lembranças, conta que na hora da partida o dono do Hotel Felipe lhe ofereceu a compra do estabelecimento, "por seis mil contos, em moeda da época. Deve ter sido por causa do meu nome, Léon Antoine, que mais tarde se passou a acreditar que Saint-Exupéry teria dormido na cidade. Eu era mesmo parecido com ele. Não apenas nas feições, mas também pela altura. Só que ele andava mais curvado do que eu. Além disso, Saint-Exupéry nunca fez regularmente a linha para a América do Sul, mas como passou dois anos em Buenos Aires certamente andou por aqui. Não foi meu amigo íntimo mas eu o conheci bem, era um pouco do mundo da lua..." O piloto falou a Kawall de sua vontade de rever Ubatuba.

O capítulo final desa história que remete a memória aos tempos heróicos da aviação, à lembrança de homens como Saint-Exupéry, Mermoz, Guillaumet e Dumesnil, foi encenado há algumas semanas: Léon Antoine, após 52 anos, retornando a Ubatuba. Revendo os mesmos cenários hoje muito mudados, impossibilitado de hospedar-se no colonial Hotel Felipe, que não existe mais, para abrigar-se sob as sofisticadas quatro estrelas do Palace Hotel. As testemunhas da época são também poucas.

Mas lá estava Filinho, o historiador, farmacêutico, ex-prefeito. O homem que ajudara a cimentar um mito e que assistia à definitiva destruição do seu atraente mistério. Ubatuba, cujas areias receberam escritos do Anchieta, cujos índios foram introduzidos pelo padre Nóbrega aos rudimentos do que o Ocidente chama de civilização, cujas paisagens extasiaram o alemão Hans Staden, teria de abrir mão de sua mais palpitante história contemporânea: o Pequeno Príncipe jamais passou uma noite no Hotel Felipe.

TalitaBello
Enviado por TalitaBello em 04/09/2006
Reeditado em 04/09/2006
Código do texto: T232380