Álvaro da Farmácia Oswaldo Cruz
A Rua Santo Antonio, no bairro do Bixiga, é por mim considerada uma das principais artérias, dado ao fluxo de movimento de carros e pedestres que por lá transitam. Claro, sem o desmerecimento de outras ruas de igual importância como a Major Diogo, com a Casa de Dona Yayá, o TBC, a 13 de Maio, com suas cantinas italianas e a igreja de N. Srª Achiropitta, São Domingos que, mesmo "amputada" em seu trecho, ainda deve conservar o glamour de rua tranquila e de pouco movimento, dentre outras.
O personagem de minha história de hoje é alguém muito conhecido e querido dos antigos moradores das redondezas da Santo Antonio. Trata-se do farmacêutico Álvaro, da Farmácia Oswaldo Cruz (Rua Santo Antonio, 705 - esquina com a Cons. Ramalho).
Álvaro Rosa Vicente. Natural de Cajurú, interior de São Paulo, casado com Ana Maria, pai de dois filhos, o Alvinho e o Eduardo, desde a década de 1950, estabeleceu-se ali e tornou-se uma referência no bairro.
Quando comecei a minha vida profissional, meu primeiro emprego foi com o "tio" Jabra, na mercearia Paris, na mesma Rua Santo Antonio, em frente à farmácia do Álvaro. Era auxiliar da mercearia com as atribuições de levar as compras dos fregueses (em sacolas de lona), até suas residências, o que, invariavelmente, me rendias "uns cobres" de "caixinha" que, somados ao meu salário, dava pra fazer uns arranjos. Só que minha mãe era quem ficava com toda a grana. Fazer o quê? Mãe é mãe, não é?
Dentre essas minhas idas e vindas com as entregas da mercearia, o Álvaro aproveitava o roteiro e sempre tinha uma entrega de medicamentos para um ou outro seu freguês. Era um serviço de logística maravilhoso, com entregas rigorosamente dentro dos prazos e sem atrasos. Vez por outra, também se valia de meus "préstimos" o Pernambuco da banca de revistas (já falei dele em "O Zezinho e a carrocinha de jornais..."), para entrega de uma ou outra revista, jornais, cobranças ou pagamentos.
Voltando ao Álvaro, era comum ouvi-lo gritar meu nome do outro lado da calçada, para saber se haveria alguma entrega para que ele pudesse pegar uma carona de suas encomendas. Ante a uma resposta negativa, ele fazia uma cara de desespero, e quase aos prantos (aqui vale a encenação), justificando a urgência da entrega do tal medicamento, dizendo que dona "fulana" estava necessitando do tal remédio e que não havia ninguém, naquele momento, para realizar a entrega, já que o Waldir, um seu funcionário estava ausente (infelizmente, Waldir faleceu naquela época, vítima de afogamento na represa Billings), e Lourenço estava em sua hora de almoço. Enfim, Álvaro queria, a todo custo, que a entrega fosse realizada.
Diante de toda essa "dramatização", eu declinava de minha negativa e, depois de arrumar uma desculpa das mais esfarrapadas com o "tio" Jabra, lá ia eu realizar a "entrega urgente" do medicamento de dona fulana. O que era bom, naquele tempo, é que muito dificilmente eu retornava à "base" sem que fosse recompensado (pelos fregueses, é claro), e o mínimo em "caixinha" era Cr$ 1,00 (hum cruzeiro), visto que eu dizia que, "por especial obséquio, havia eu deixado as minhas obrigações para atender a urgência do momento, sendo que eu não era funcionário da tal farmácia". Isso "colava" sempre e era verdade, então, foi justo. Do Álvaro, mas nem uma aspirina eu ganhava, daquele mão-de-vaca. A ladainha era sempre "depois te recompenso". Mas, eu não ligava a mínima para isso. Gostava de ajudar e de estar presente quando uma ou outra necessidade aparecesse. Quando isso ocorria, lá estava eu. Pronto e prestativo (ainda sou assim até hoje, mas com algumas restrições. A idade é uma delas).
O tempo passando, eu crescendo. A mercearia Paris do "tio" Jabra já não é mais dele. Passou para o irmão Chabo. Eu fiquei como "free-lancer" e mais ligado ao Álvaro e já na farmácia. Ia quando queria, trabalhava o quanto quisesse, sendo que os dias mais sagrados para mim foram os sábados. Ah, os sábados. Dia de correria nas entregas, muita gente vinha tomar suas injeções no dia de sábado (Miguel, as "bombas" que o Álvaro te aplicava eram nos dias de sábado?), os fregueses em seu frenesi para aviamentos de suas receitas. Não tem o remédio? - Nelson... vai na Drogaria São Paulo e traga esse remédio, que é para o sr. fulano... E lá ia eu à Drogaria São Paulo, da Barão ou na Farmácia do Exército, na São João, célere e lépido, com a única finalidade de atender à clientela do bairro.
Essa "muvuca" toda tinha sua expiração antes das duas da tarde, quando então íamos almoçar. Álvaro encomendava um suculento contra filé com fritas, arroz e salada, do Ferro's Bar, em frente da sinagoga israelita na Martinho Prado, que vinha numa bandeja de inox e numa generosa quantidade. Almoçávamos eu e o Álvaro (ele comia pouco). Os outros balconistas traziam suas marmitas ou se viravam por lá.
Terminado o almoço, a penúltima tarefa era lavar o seu fusca (de dois em dois anos ele trocava e era só fusca). Disso eu gostava, pois foi no fusca do Álvaro que aprendi (na marra) a dirigir. A expressão "bater os joelhos" eu senti quando da primeira vez que me posicionei no volante do fusquinha. Nossa! Que paúra (viva Laruccia). Não eram só os joelhos a tremer. Eu todo parecia uma jipe Toyota em ponto morto de tanto que tremia. Mas, muitos sábados depois e muitas lavagens também, já era o tal e dava minhas voltinhas, escondido do Álvaro, em seu reluzente fusca 66/68/70... Nem sei quantos ele teve.
Passada a façanha lavagem/autoescola, o último compromisso era lavar a farmácia no final do expediente. Chão, balcões, balcão de manipulação (sim, manipulava-se medicamentos lá), azulejos, seringas (de vidro) e agulhas hipodérmicas, "banhos-marias", estufas, banheiro etc.
Desta feita, eu tinha um "salário" semanal que era de Cr$ 200,00 (duzentos cruzeiros), acho que a efígie era de Dom Pedro I. Era só alegria. Eu e essa "dinheirama" toda, a toda a semana, mas lá vem minha mãe e zapt. Lá se vão os duzentos mangos. - É pra comprar roupa pra você - dizia ela. Se comprou, não sei. A raiva passava logo depois que o "arresto" fosse consumado.
O tempo passando, eu crescendo, uma nova ótica de vida se assomava em minha mente, com a busca de novos horizontes, colégio, trabalho mais firme e sério (office-boy), namoricos, bailinhos (quantas saudades da luz negra), sapatos da Spinelli (caros, mas valiam cada cruzeiro), e o Álvaro sempre lá, registrando suas vendas na velha registradora "Sweda" e anotando seus aviamentos e receitas com a velha caneta "Parker 51", com tinta verde (era uma fixação dele a cor verde na escrita). Usava sapatos "Passo-Doble 7 1/2", tinha os cabelos louros (hoje devem estar branquinhos), cortados à moda militar (o barbeiro era o Washington ou o Pardal, que tinham salão perto de minha casa e depois passaram para uma loja no prédio da fábrica de espelhos São Pedro).
Ana Maria, sua esposa, era a expressão da candura e da simplicidade. Sempre amável e generosa. Tinha por mim um carinho todo especial, a ponto de me deixar tomar conta de seus dois filhos (Alvinho e Eduardinho), enquanto saía para se divertir com Álvaro. Tocava violão e tinha um belo exemplar da Di Giorgio com estojo e flanela. Dei algumas dedilhadas nele.
Hoje, não sei da farmácia. Deve estar lá. Do Álvaro e de Ana, não tenho mais notícias. Soube, há algum tempo, que ainda moravam na Martinho Prado. Os meninos, agora homens formados, devem ter seguido suas próprias estradas e traçado novos destinos. Quer seja da farmácia ou outro qualquer. De qualquer forma, fica aqui a minha lembrança, doce lembrança, dos áureos tempos de infância e puberdade, onde respirei a essência de um bairro feliz e de sua gente pitoresca e tradicional.
Essas memórias, trago-as comigo há mais de 35 anos, tempo que tenho de convívio nesta terra de magia chamada Bahia. É fato e lógico que, eu, estando tanto tempo afastado de meu berço natal, sem nunca mais ter voltado, apesar das voltas que dei, espero um dia poder pisar, novamente em solo "bixiguense", para contemplar, a olhos vistos, o que de moderno e transformador foi edificado nesse meu torrão, para depois, de olhos fechados, e num retrospecto de memória, poder desenhar em minha mente os passos do passado em direção de um futuro, ainda meu desconhecido.