O grito da criança de alma mutilada
O GRITO DA CRIANÇA DE ALMA MUTILADA
Ainda ontem escutei o seu grito, senti bem fundo a sua dor, dei um suspiro, segurei para não chorar.
Mas, os gritos continuavam, não cessavam nem um minuto.
Eram gritos de uma criança desgraçada de vida destroçada, massacrada.
Tentei me movimentar, sorrir, disfarçar, correr. Não teve jeito. A maldita criatura continuava a se agitar, a se contorcer feito louca.
Parei e me sentei, com um forte aperto no coração.
Implorei, pedi, supliquei e de nada adiantou.
A aberração continuava a se espernear.
Ela chorava, gritava, lamentava.
Seus gritos eram de protesto.
Protestava contra as inúmeras mutilações que sofria.
Chorava de desespero, pois seus gritos não eram ouvidos.
Lamentava sempre e a cada instante a destruição de sua vida, de seus sonhos.
Aquela criança idiota não se enxergava, nascida na barriga da miséria foi jogada para morte nas garras da solidão e do abandono.
Seu lugar na sociedade não existiu, nunca foi reconhecida como gente.
Era um animalzinho entregue a própria sorte nas mãos da morte.
Mas ainda assim a odiosa criatura se recusava a morrer, ela se apegava com toda força à vida roubada, esmagada.
Ela não aceitava a injustiça que a obrigava a ser menos, queria ser gente, pobre coitada!
Ela sonhava com o amor, aquele de que já ouvira falar: amor de pai, amor de mãe.
Pobre idiota! O que teve foi o abandono e o desprezo de pais também abandonados e desprezados pela tal da sociedade.
Conheceu o fel e não mel.
Conheceu o inferno e não o céu.
Conheceu a tristeza e nunca a alegria.
Chorou lágrimas de sangue, pediu, implorou sem nunca ser ouvida.
Nunca ouviu um elogio, o que escutava era apenas os berros de bestas ferozes que lhe batiam, discriminavam.
Contra tantas adversidades, a criança magrela cheia de mazelas nada podia fazer.
Só lhe restava chorar, nada calava o seu choro, pois mesmo quieta, de boca fechada, a alma ainda chorava.
Já bem pequenina a criança magrela cheia de mazelas descobriu com grande assombro que não era como as demais, alguns diziam:
- Se foi abandonada pela mãe, deve ser uma peste. Olha só que criança magra, feia e os olhos dessa criatura! Parece que olham por dentro da gente pra ver se acha qualquer coisa, sabe se lá o quê.
Outros retrucavam:
- É assim porque é filho de pai ausente (por sinal um belo cafajeste), filho de mãe depravada, sobrinho de cachaceiro e neto de uma doida varrida.
Outros riam e falavam:
- Olham, lá que coisinha mais insignificante, pensa que é gente o coitado, porque não morre logo de uma vez?
Os constantes ataques das bestas ferozes fizeram com que a criança se isolasse dentro de dois quartinhos do tamanho de um banheiro.
Conviveu com ratos, baratas e percevejos.
Passou fome, frio e quando chovia? Era como um rio que invadia a casa. Casa? Que casa?
Casa de miserável é tapera.
Foi violentada diversas vezes com palavrões, safanões, discriminações e arranhões.
Foi chamada de crioula, doida, esquisita, magricela, boba, idiota, insignificante, vagabunda.
Diante das agressões a esquelética criatura se refugiava cada vez mais no seu mundinho sofrido e solitário que mais parecia um pedacinho do inferno.
Tinha ódio e medo das bestas.
Sair de casa? Jamais, dentro de casa morava a miséria, mais tinha o zelo da “véia”.
Lá fora as bestas ferozes por ela esperavam como urubus atrás de carniça.
Mas, a criança indolente queria ser gente, pobre demente!
Acaso ela não sabia que para as bestas nem sequer existia? Que ela era como um pedaço de carne podre jogado fora para servir de alimento aos vermes que lhe corroíam o corpo, na mesma medida em que a máquina da exclusão lhe mutilava sua vida, sua essência, sua miserável existência?
A máquina da exclusão de nada poupava a demente criança: sugava sua alma, alimentava-se de seus sonhos, cortava e minava sua personalidade, tentando a todo custo transformá-la em máquina, mas não conseguia, pois máquina não chora, não grita até a morte, não se esvai em sangue, não se contorce feito bicho, não se morde, querendo chamar atenção, esperando que alguém qualquer um de alma benevolente pudesse vir e tirá-la daquela dor.
Pobre coitada! Para os seus gritos, a resposta era mais gritos (de gente para quem a vida também tinha sido uma puta de uma madrasta).
Mas, a criança indolente queria ser gente, pobre demente!
Quando entrou na adolescência, ela descobriu um jeito mais eficiente de fugir do mundo das bestas: mergulhou fundo nos estudos.
Ela estudava, estudava, estudava.
O estudo era para ela uma tábua de salvação, uma maneira de fugir da agressão sem razão, porém seus esforços eram em vão, ninguém lhe prestava atenção.
A pobre e desgraçada criatura era quase invisível.
Não tinha amigos, não tinha nada além da maldita miséria.
Só tinha o amor pelos estudos, mas mesmo isso quiseram tirar dela.
Diziam que estudar não era para pobre, que aquilo era perda de tempo, uma loucura! Porque ela não ia para panha de café como todo mundo? Coisa mais besta pobre querendo ser gente!
Mas a criatura insistia, insistia.
Em sua luta, em sua insistência conheceu várias e várias vezes o inferno, não pelas mãos do diabo, mas pelas mãos daqueles chamados de homens.
Quanto mais a agrediam, mais a criança se refugiava em seu mundo.
Começou a se destacar nos estudos, aquilo atraía ainda mais o ódio dos colegas da escola e o desprezo da família.
Mas, a criatura seguia firme mergulhando cada vez mais no abismo que criou para fugir do mundo que parecia querer culpá-la por ela ser atrevida o bastante para continuar insistindo na sua existência miserável e insignificante.
Quanto mais crescia, mais era esquecida, tida como esquisita, vivia sua vida à margem, excluída de tudo e de todos.
Nunca fora amada realmente por alguém, a não ser pela velha senhora que a criou, mas esta também nunca havia conhecido o amor e, portanto, não conseguia mostrar para aquela odiosa criatura que aquele zelo era amor.
Talvez por isso a detestável criatura nunca tenha aprendido o que era amar alguém.
Vivia na sombra da vida, espiando com medo e pavor aqueles a quem era permitido viver.
Embora nunca tenha sabido o que era o amor aprendeu desde cedo o que era a dor e com a dor veio o ódio. E ela odiava, como odiava aquela pobre e indecente criatura!
E assim em meio ao ódio e a dor, a desgraçada criatura cresceu marcada pelo abandono da tal da sociedade, do miserável pai e das mais desgraçadas das mães: a miséria.
Ao entrar na fase adulta, depois de muitos anos parada e sem vida (pois fora obrigada pela miséria a abandonar os estudos), a magricela criatura cheia de mazelas conseguiu finalmente entrar na faculdade.
Inchou-se de esperança e pensou que aquela seria uma nova fase na sua subvida, mas logo o sonho se tornou um pesadelo e a criança indolente que queria ser gente se afundou mais uma vez no mar da discriminação e finalmente conheceu o verdadeiro inferno: ela passou a se reconhecer como fazendo parte de uma subclasse marginalizada e excluída. Mas engana-se quem pensa que seu sofrimento diminuiu, ao contrário só aumentou.
No mundo das letras a desgraçada criatura conheceu a filosofia, aprendeu a fazer ciência, mas conheceu ainda mais fundo a discriminação, a exclusão e pagou o preço pelo sonho, ficou doente, profundamente doente, cronicamente doente. E então a criança que já não era mais criança mergulhou várias e várias vezes no inferno da intolerância e do descaso expresso na maneira como era tratada pela estrutura: era tida como igual, obrigada a ser igual, quando na verdade era profundamente desigual.
A miserável e desgraçada criatura já adulta precisou se contorcer diversas e diversas vezes para conseguir cumprir as obrigações e normas institucionais.
Teve de se sacrificar muitas vezes em nome do sonho de se formar: quantas e quantas vezes desmaiou no chão daquela faculdade? Quantas e quantas vezes sacrificou um almoço ou um jantar para poder pagar o maldito xérox e acompanhar as aulas?
Não foi a festas, não se divertiu, viveu apenas e apenas para os estudos e quanto mais estudava, quanto mais conhecimento adquiria a respeito da tão desgraçada realidade, mais enojada ficava.
No entanto, a criatura continuava caminhando, sofrendo chorando, seguindo cambaleante pelo caminho das pedras.
Continuava lutando, buscando, mesmo sem saber o quê, mesmo querendo desistir, mesmo morrendo por dentro e aos poucos.
Em sua caminhada de tanto conhecer o inferno a odiosa criatura acabou se perdendo de Deus.
E hoje eu ainda sinto a maldita criança chorar em meu peito, ainda a vejo gritar, espernear.
Eu sinto o seu sofrimento, o sabor amargo de suas lágrimas dentro de minhas entranhas.
Tenho a alma mutilada e para esse mal não tem cura.
A minha fé a maldita criança levou com ela, hoje não tenho mais nenhuma fé.
A esperança é um sonho que eu não sonho mais.
E o que restou? O que me restou foi a confiança.
Confiança na justiça, não nessa justiça vendida que temos, mas naquela que podemos construir.
Eu vivo buscando justiça, aquela que aquela criança que mora em meu peito nunca teve.
Sim, eu busco uma justiça que salve a humanidade.
Mas, para tanto eu luto tentando salvar a minha vida, a vida que aquela criança quer levar com ela, para um lugar escuro e sem paz.
Eu vivo buscando por justiça, uma justiça que alivie pelo menos um pouco o sofrimento daquela criança massacrada que mora no interior de meu ser.
Eu busco apenas e somente a justiça porque o resto não me interessa mais, já abdiquei de tudo, só não posso abandonar a vontade de justiça, pois é ela que mantém esse corpo pobre e cheio de mazelas com vida, ainda que seja uma vida miserável e quase sem perspectivas.
A falta de esperança, a perda da ilusão, a destruição dos sonhos também é dialética, pois carrega consigo o seu contrário: a luta para que a justiça prevaleça e com ela a paz e quem sabe também a volta dos sonhos, a volta da esperança.
Eu busco a justiça que possa salvar a humanidade e salvando-a que possa salvar a mim mesmo e quem sabe salvar essa criança que grita forte dia e noite: “- Por favor me deixem sair desse abismo em que vocês me afundaram, me deixem sair, me deixem viver, deixem as pessoas viverem, deixem as pessoas viverem.”