Fagundes Varela

Luís Nicolau Fagundes Varela. Naceu em Rio Claro, 17 de agosto de 1841 e faleceu em Niterói, 18 de fevereiro de 1875. Poeta brasileiro, Patrono na Academia Brasileira de Letras.

Biografia

Era filho do magistrado Emiliano Fagundes Varela e de Emília de Andrade, ambos de ricas famílias cariocas.

Poeta romântico e boêmio inveterado, Fagundes Varela foi um dos maiores expoentes da poesia brasileira, em seu tempo. Tendo ingressado no curso de Direito (e freqüentado as faculdades de São Paulo e Recife), abandonou o curso no quarto ano.

Diria, reafirmando sua vocação exclusiva para a arte, no poema "Mimosa", na boca duma personagem: "Não sirvo para doutor"...

Casando-se muito novo (aos vinte anos), com a filha de dono de circo Alice Guilhermina Luande, teve um filho que veio a morrer aos três meses. Este fato inspirou-lhe o poema "Cântico do Calvário", expressão máxima de seus versos, tão jovem ainda. Sobre estes versos, analisou Manuel Bandeira:

"...uma das mais belas e sentidas nênias da poesia em língua portuguesa. Nela, pela força do sentimento sincero, o Poeta atingiu aos vinte anos uma altura que, não igualada depois, permaneceu como um cimo isolado em toda a sua poesia."

Casou-se novamente com uma prima - Maria Belisária de Brito Lambert, sendo novamente pai de duas meninas e um menino, também falecido prematuramente.

Embriagando-se e escrevendo, viveu até a morte ainda jovem, às custas do pai, boa parte do tempo no campo - seu ambiente predileto.

Fagundes Varela foi dos poetas mais populares no Brasil de sua época.

Por instância de Lúcio de Mendonça, foi a sua Cadeira nominada em honra a Fagundes Varela. Considerado um dos maiores expoentes das letras no Brasil, um seu busto orna o prédio do silogeu brasileiro.

Obras

Noturnas - 1861

Vozes da América - 1864

Pendão Auri-verde - poemas patrióticos, acerca da Questão Christie.

Cantos e Fantasias - 1865

Cantos Meridionais - 1869

Cantos do Ermo e da Cidade - 1869

Anchieta ou O Evangelho nas Selvas - 1875 (publicação póstuma)

Diário de Lázaro - 1880

Em 1878 seu amigo Otaviano Hudson organizou "Cantos Religiosos", cuja publicação destinava-se a auxiliar sua viúva e filhas.

Obra máxima do poeta, um dos mais belos poemas do romantismo brasileiro, eis um pequeno trecho de "Cântico do Calvário".

À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863

Eras na vida a pomba predileta

Que sobre um mar de angústias conduzia

O ramo da esperança. Eras a estrela

Que entre as névoas do inverno cintilava

Apontando o caminho ao pegureiro.

Eras a messe de um dourado estio.

Eras o idílio de um amor sublime.

Eras a glória, a inspiração, a pátria,

O porvir de teu pai! - Ah! no entanto,

Pomba, - varou-te a flecha do destino!

Astro, - engoliu-te o temporal do norte!

Teto, - caíste!- Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,

Legado acerbo da ventura extinta,

Dúbios archotes que a tremer clareiam

A lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! um dia vos verei mais belas

Que os diamantes de Ofir e de Golconda

Fulgurar na coroa de martírios

Que me circunda a fronte cismadora!

São mortos para mim da noite os fachos,

Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,

E à vossa luz caminharei nos ermos!

Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,

Brando orvalho do céu! Sede benditas!

Oh! filho de minh’alma! Última rosa

Que neste solo ingrato vicejava!

Minha esperança amargamente doce!

POESIAS DE FAGUNDES VARELA.

A Sonâmbula

Virgem de loiros cabelos

- Belos, -

Como cadeia de amôres,

Onda vás tão triste agora

- Hora -

De tão sinistros horrores?

Sob nuvem lutulenta,

- Lenta, -

Se esconde a pálida lua;

Nas sombras os gênios combatem;

- Batem -

Os ventos a rocha nua.

Noite medonha e funesta

- Esta -

Fundos mistérios encerra!

Não corras, olha, repara,

- Pára, -

Escuta as vozes da serra!...

Dos furacões nas lufadas,

- Fadas -

Traidoras passam nos ares!

Cruentos monstros e espiam!

- Piam -

As corujas nos palmares!

Bela doida, se soubesses

- Êsses -

Êsses gritos o que dizem,

Ah ! por certo que ouviras,

- Viras -

Que tredas coisas predizem!

Mas, infeliz, continuas!

- Nuas -

As tuas espáduas são!

E sob teus pés mofinos,

- Finos, -

Prendem-se às urzes do chão!

O orvalho teu rosto molha;

- Olha -

Como branca e fria estás!

Virgem de loiros cabelos,

- Belos -

Por Deus! conta-me onde vás!

Nestes ervaçais sem têrmos,

- Ermos -

Ninguém pode te acudir...

Toma sentido, sossega,

- Cega! -

Vê, são horas de dormir!

Teus olhos giram incertos;

- Certos -

Contudo teus passos vão!

Teu ser que a ilusão persegue

- Segue -

O impulso de oculta mão!

Ai! dormes! Talvez risonho

- Sonho -

Te chame a bailes brilhantes!

Talvez vozes que te encantam

- Cantam -

A teus ouvidos amantes!

Talvez eus ligeiros passos

- Paços -

Pisem d'oiro construidos!

Talvez quanto há de perfume

- Fume -

Pra agradar teus sentidos!

Mas ah ! Na cabana agora,

- Ora -

Tua pobre mãe por ti;

E teu pai além divaga,

- Vaga -

Sem saber que andas aqui!

Virgem de loiros cabelos

- Belos, -

Como cadeia de amôres,

Onda vás tão triste agora

- Hora -

De tão sinistros horrores?

Childe harold [sobre uma página de byron]

Não te rias assim, oh! não te rias,

Basta de sonhos, de ilusões fatais!

Minh'alma é nua, e do porvir às luzes

Meus roxos lábios sorrirão jamais!

Que pesar me consome! ah! não procures

Erguer a lousa de um pesar profundo,

Nem apalpares a matéria lívida

E a lama impura que pernoita ao fundo!

Não são as flores da ambição pisadas,

Não é a estrêla de um porvir perdida

Que esta cabeça coroou de sombras

E a tumba inclina ao despontar da vida!

É êste enôjo perenal, contínuo,

Que em tôda a parte me acompanha os passos,

E ao dia incende-me as artérias quentes,

Me aperta à noite nos mirrados braços!

São estas larvas de martírio e dores

Sócias constantes do judeu maldito,

Em cuja testa, dos tufões crestada,

Labéu de fogo cintilava escrito!

Quem de si mesmo desterrar-se pode?

Quem pode a idéia aniquilar que o mata?

Quem pode altivo esmigalhar o espelho

Que a tôrva imagem de Satã retrata?

Quantos encontram inefáveis gozos

Nesses prazeres, para mim tormentos!

Quantos nos mares onde a morte enxergo

Abrem as velas do baixel aos ventos!

O meu destino é vaguear e sempre!

Sempre fugindo, a funeral lembrança,

Férreo estilete que me rasga os músculos,

Voz dos abismos que me brada: - Avança!

Que pesar me consome! ai! não mais tentes,

Espera a lousa de um pesar profundo,

Somente a morte encontrarás nas bordas,

E o inferno inteiro a praguejar no fundo!

Elegia

A noite era bela - dormente no espaço

A lua soltava seus pálidos lumes

Das flores fugindo, corria lasciva

A brisa embebida de moles perfumes

Nós éramos jovens - ardentes e sós,

Ao lado um do outro no vasto salão;

E as brisas e a noite nos vinham no ouvido

Cantar os mistérios de infinda paixão!

Nós éramos jovens, - e a luz de seus olhos

Brilhava incendida de eternos desejos,

E a sombra indiscreta do níveo corpinho

Sulcavam-lhe os seios em brandos arquejos!

Ah! Mísero aquele que as sendas do mundo

Trilhou sem o aroma da pálida flor,

E à tumba reclina, n'aurora dos sonhos,

O lábio inda virgem dos beijos de amor!

Não são dos invernos as frias geadas,

Nem longas jornadas que os anos apontam;

O tempo descora nos risos e prantos,

E os dias do homem por gozos se contam

Ah! lembra-me ainda! nem um candelabro

Lançava ao recinto seu brando clarão,

Apenas os raios da pálida lua

Transpondo as janelas batiam no chão

Vestida de branco - nas cismas perdida,

Seu mórbido rosto pousava em meu seio

E o aroma celeste das negras madeixas

Minh'alma inundava de férvido anseio

Nem uma palavra seus lábios queridos

Nos doces espasmos diziam-me então

Que valem palavras quando ouve-se o peito

E as vidas se fundem no ardor da paixão?

No fim de seu giro, da noite a princesa

Deixou-nos unidos em brando sonhar

Correram as horas, - e a luz d'alvorada

Em juras infindas nos veio encontrar!

Não são dos invernos as frias geadas,

Nem longas jornadas que os anos apontam,

O tempo descora nos risos e prantos,

E os dias do homem por gozos se contam

Ligeira, essa noite de infindas venturas

Somente em minh'alma lembranças deixou

Três meses passaram, e o sino do templo

À reza dos mortos os homens chamou!

Três meses passaram - e um lívido corpo

Jazia dos círios à luz funeral

E à sombra dos mirtos, o rude coveiro

Abria cantando seu leito final!

Nós éramos jovens, e as vidas, e os seios

O afeto prendera num cândido nó!

Foi ela a primeira que o laço quebrando

Caiu soluçando das campas no pó

Não são dos invernos as frias geadas,

Nem longas jornadas que os anos apontam,

O tempo descora nos risos e prantos,

E os dias do homem por dores se contam

Sextilhas

Amo o cantor solitário

Que chora no campanário

Do mosteiro abandonado,

E a trepadeira espinhosa

Que se abraça caprichosa

À forca do condenado

Amo os noturnos lampírios

Que giram, errantes círios,

Sobre o chão dos cemitérios,

E ao clarão das tredas luzes

Fazem destacar as cruzes

De seu fundo de mistérios

Amo as tímidas aranhas

Que lacerando as entranhas

Fabricam dourados fios

E com seus leves tecidos

Dos tugúrios esquecidos

Cobrem os muros sombrios

Amo a lagarta que dorme,

Nojenta, lânguida, informe,

Por entre as ervas rasteiras

E as rãs que os pauis habitam

E os moluscos que palpitam

Sob as vagas altaneiras

Amo-os, porque todo o mundo

Lhes vota um ódio profundo,

Despreza-os sem compaixão

Porque todos desconhecem

As dores que eles padecem

No meio da criação

Tristeza

Eu amo a noite quando deixa os montes

Bela, mas bela de um horror sublime

E sobre a face dos desertos quedos

Seu régio selo de mistério imprime

Amo os lampejos, verde-azul, funéreos

Que às horas mortas erguem-se da terra,

E enchem de susto o viajante incauto

No cemitério de sombria serra

Eu amo a noite com seu manto escuro

De tristes goivos coroada a fonte

Amo a neblina, que pairando ondeia

Sobre o fastígio de elevado monte

Amo nas plantas, que na tumba crescem

De errante brisa o funeral cicio;

porque minh'alma, como a noite, é triste,

Porque meu seio é de ilusões vazio

Amo o silêncio, os areais extensos,

Os vastos brejos e os sertões sem dia

Porque meu seio como a sombra é triste

Porque minh'alma é de ilusões vazia

Amo o furor do vendaval que ruge

Das asas densas sacudindo estrago

Silvos de bala, turbilhões de fumo

Tribos de corvos em sangrento lago

Amo ao silêncio do ervaçal partido

Da ave noturna o funerário pio

Porque minh'alma, como a noite, é triste,

Porque meu seio é de ilusões vazio

Amo a tormenta, o prepassar dos ventos

A voz da morte no fatal parcel;

Porque minh'alma só traduz tristeza,

Porque meu seio se abrevou de fel

Amo o corisco que deixando a nuvem

O cedro parte da montanha, erguido,

Amo do sino, que por morto soa,

O triste dobre n'amplidão perdido

Amo na vida de miséria e lodo,

Das desventuras o maldito selo,

Porque minh'alma se manchou de escárnios,

Porque meu seio se cobriu de gelo

Amo do nauta o doloroso grito

Em frágil prancha sobre mar de horrores

Porque meu seio se tornou de pedra,

Porque minh'alma descorou de dores

Como a criança, do viver nas veigas

Gastei meus dias namorando as flores

Finos espinhos os meus pés rasgaram

Pisei-os ébrio de ilusões e amores

Tenho um deserto de amargura n'alma

Mas nunca a fronte curvarei por terra

Tremo de dores ao tocar nas chagas

Nas vivas chagas que meu peito encerra

A paz, o amor, a quietação, o riso

A meus olhares não têm mais encanto,

Porque minh'alma se despiu de crenças

E do sarcasmo se embuçou no manto

Névoas

Nas horas tardias que a noite desmaia

Que rolam na praia mil vagas azuis,

E a lua cercada de pálida chama

Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas,

Que em grutas extensas se elevam no ar,

Um corpo de fada — sereno, dormindo,

Tranqüila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve — puríssima e nua —

Um raio da lua de manso batia,

E assim reclinada no túrbido leito

Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,

Das verdes, cheirosas roseiras do céu,

Acaso rolaste tão bela dormindo,

E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,

As orlas do monte se escondem nas brumas,

E queda repousas num mar de neblina,

Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes

— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?

E as asas, de prata do gênio das noites

Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo

De um férvido beijo gozares em vão!...

Os astros sem alma se cansam de olhar-te,

Nem podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam — e as névoas tremiam

— E os gênios corriam — no espaço a cantar,

Mas ela dormia tão pura e divina

Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa das nuvens da Ilíria,

— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte,

Não ouves ao menos do bardo os clamores,

Envolto em vapores — mais fria que a morte!

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado,

Teu seio molhado de orvalho brilhante,

Eu quero aquecê-los no peito incendido,

— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...

Assim eu clamava tristonho e pendido,

Ouvindo o gemido da onda na praia,

Na hora em que fogem as névoas sombrias

– Nas horas tardias que a noite desmaia.

E as brisas da aurora ligeiras corriam.

No leito batiam da fada divina...

Sumiram-se as brumas do vento à bafagem,

E a pálida imagem desfez-se em — neblina!

Vida de Flor

Porque vergas-me a fronte sobre a terra?

- Diz a flor da colina ao manso vento -

Se apenas das manhãs o doce orvalho

Hei gozado um momento!

Tímida ainda, nas folhagens verdes

Abro a corola à quietação das noites,

Ergo-me bela, me rebaixas triste

Com teus feros açoites!

Oh! deixa-me crescer, lançar perfumes,

Vicejar das estrelas à magia,

Que minha vida pálida se encerra

No espaço de um só dia!

MAs o vento agitava sem piedade

A fronte virgem da cheirosa flor,

Que pouco a pouco se tingia, triste,

De mórbido palor.

Não vês, oh brisa? lacerada, - murcha

Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,

E em breve tempo esfolharei já morta

- Sem chegar ao verão?

Oh tem pena de mim! deixa-me ao menos

Desfrutar um momento de prazer,

Pois que é meu fado despontar n'aurora

E ao crepúsc'lo morrer!...

Brutal amante não lhe ouviu as queixas,

Nem às suas dores atenção prestou,

E a flor mimosa retraindo pétalas

Na tige se inclinou.

Surgiu n'aurora, não chegou à tarde,

Teve um momento de existência só;

A noite veio, - procurou por ela,

Mas a encontrou no pó.

Ouviste, oh virgem, a legenda triste

Da flor do outeiro e seu funesto fim,

- Irmã das flores, à mulher às vezes -

Também sucede assim.

O Foragido

(Canção)

Minha casa é deserta; na frente

Brotam plantas bravias no chão,

Nas paredes limosas - o cardo -

Ergue a fronte silente ao tufão.

Minha casa é deserta. O que é feito

Desses templos benditos d'outrora,

Quando em torno cresciam roseiras,

Onde as auras brincavam n'aurora?

Hoje a tribo das aves errantes

Dos telhados se acampa no vão,

A lagarta percorre as muralhas,

Canta o grilo pousado ao fogão.

Das janelas no canto, as aranhas

Leves tremem nos fios dourados,

As avencas pululam viçosas

Na umidade dos muros retados.

Tudo é tredo, meu Deus! o que é feito

Dessas eras de paz que lá vão,

Quando junto do fogo eu ouvia

As legendas sem fim do serão?

No curral esbanjado, entre espinhos,

Já não bala ansioso o cordeiro,

- Nem desperta-se ao toque do sino -

- Nem ao canto do galo ao poleiro. -

Junto à cruz que se eleva na estrada

Seco e triste se embala o chorão,

Não há mais o esfumar das acácias,

Nem do crente a - sentida oração.

Não há mais uma voz nestes ermos

Um gorjeio das aves no val,

Só a fúria do vento retroa

Alta noite agitando o ervaçal!

Ruge, oh vento gelado do norte,

Torce as plantas que brotam no chão,

Nunca mais eu terei venturas

Desses tempos de paz que lá vão!

Nunca mais desses dias passados

Uma luz surgirá dentre brumas!

As montanhas se embuçam nas trevas,

As torrrentes se vendam de espumas!

Corre pois vendaval das tormentas,

Hoje é tua esta morna solidão!

Nada tenho, que um céu lutulento

E uma cama de espinhos no chão!

Ruge, voa, que importa! sacode

Em lufadas as crinas da serra,

Alma nua de crença e esperanças

Nada tenho a perder sobre a terra!

Vem, meu pobre e fiel companheiro,

Vamos, vamos depressa, meu cão,

Quero ao longo perder-me das selvas

Onde passa rugindo o tufão!

*Cantareira - 1861*

Amor e vinho

Cantemos o amor e o vinho,

As mulheres, o prazer;

A vida é sonho ligeiro

Gozemos até morrer

Tim, tim, tim

Gozemos até morrer

A ventura nessa vida

É sonho que pouco dura

Tudo fenece no mundo,

Na louça da sepultura

Tim, tim, tim

Na louça da sepultura

Não sou desses gênios duros,

Inimigos do prazer,

Que julgam que a humanidade

Só nasceu para morrer

Tim, tim, tim

Só nasceu para morrer

Desengano

Oh! Não me fales de glória,

Não me fales de esperança,

Eu bem sei que são mentiras

Que se dissipam, criança!

Assim como a luz profliga

As sombras da imensidade,

O tempo desfaz em cinzas

Os sonhos da mocidade.

Tudo descora e se apaga

É esta do mundo a lei,

Desde a choça do mendigo

Até os passos do rei!

A poesia é um sopro

A ciência uma ilusão,

Ambas tateiam nas trevas

A luz procurando em vão.

Caminham loucas, sem rumo,

Na senda que à dor conduz

E vão cair soluçando

Aos pés da sangrenta cruz!

Oh! Não me fales da glória,

Não me fales da esperança,

Eu bem sei que são mentiras

Que se dissipam, criança!

Que me importa um nome impresso

No templo da humanidade

E as coroas do poeta,

E o selo de eternidade?

Se para escrever os cantos

Que a multidão admira,

É mister quebrar as penas

De minh'alma que suspira!

Se nos desertos da vida,

Romeiro da maldição,

Tenho de andar sem descanso

Como o Hebreu da tradição!

Buscar das selvas o abrigo

A sombra que a paz aninha,

E ouvir a selva bradar-me:

Caminha! - dizer-me o monte

Caminha! - dizer-me o prado

Oh! mais não posso! - Caminha!

Responder-me o descampado

Ah! Não me fales de glória,

Não me fales de esperança,

Eu bem sei que são mentiras

Que se dissipam, criança!

Horas malditas

Há umas horas na noite,

Horas sem nome e sem luz,

Horas de febre e agonia

Como as horas de Maria

Debruçada aos pés da cruz.

Tredos abortos do tempo,

Cadeias de maldição,

Vertem gêlo nas artérias,

E sufocam, deletérias,

Do poeta a inspiração.

Nessas horas tumulares

Tudo é frio e desolado;

O pensador vacilante

Julga ver a cada instante

Lívido espectro a seu lado.

Quer falar, porém seus lábios

Recusam-lhe obedecer,

Medrosos de ouvir nos ares

Uma voz de outros lugares

Que venha os interromper.

Se abre a janela, as planícies

Vê de aspecto aterrador;

As plantas frias, torcidas,

Parece que esmorecidas

Pedem socorro ao Senhor.

As charnecas lamacentas

Exalam podres mismas;

E os fogos fosforescentes

Passam rápidos, frementes

Como um bando de fantasmas.

E a razão vacila e treme,

Coalha-se o sangue nas veias,

Mas as horas sonolentas

Vão-se arrastando cruentas

Ao som das brônzeas cadeias.

Oh! essas tremendas

Tenho-as sentido demais!

E os males que me causaram,

Os traços que me deixaram

Não se apagarão jamais!

Sombras

Não me detestes, não! Se tu padeces

Também minh'alma teu sofrer partilha

E sigo em prantos de suplício a trilha

Curvado ao peso da tremenda cruz

Para nós ambos apagou-se a luz,

Tudo é tristeza no deserto vário,

Inda está longe o cimo do Calvário

Não para ti, mas para mim, precito!

Tenho na face o desespero escrito

Todos me odeiam - quando toco é pó!

Neste mundo tu me amaste, e só,

E em troco desse amor tiveste o inferno!

Pálida rosa do alcaçar eterno!

Cândida pomba que a inocência nutre!

Melhor te fôra a sanha de um abutre

Que estas profanas mãos que te roçaram!

Aos céus os anjos teu chorar levaram,

Irmãos preparam-te, amorosos,

E eu ainda fico!... E tenho por castigo

Sentir-me vivo quando tudo expira!

Oh! Quando à noite o vendaval se atira

Qubrando as vagas turbulentas, frias,

E lasca o raio as broncas penedias

Onde a chuva despenha-se escumando

Penso que Deus se abranda e vem chegando

A última cena de meu torvo drama

Mas do fuzil que passa à rubra chama

Vejo ainda longe o pouso derradeiro

Andar e sempre andar! O globo inteiro

Pendido atravessar como Caim!

Não achar um repouso, um termo, um fim

A dor que rói, lacera e não descansa

E jamais antever uma esperança!

Uma réstia de luz na escuridão!

Uma voz que me fale de perdão

E parta o bronzeo selo da agonia!

Ah! é cruel! Mas talvez um dia

Compreendas tão funda expiação

E o pobre nome que detestas hoje

Murmures entre lágrimas então!

Cântico do Calvário

À Memória de Meu Filho

Morto a ll de Dezembro de 1863.

Eras na vida a pomba predileta

Que sobre um mar de angústias conduzia

O ramo da esperança. — Eras a estrela

Que entre as névoas do inverno cintilava

Apontando o caminho ao pegureiro.

Eras a messe de um dourado estio.

Eras o idílio de um amor sublime.

Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,

O porvir de teu pai! — Ah! no entanto,

Pomba, — varou-te a flecha do destino!

Astro, — engoliu-te o temporal do norte!

Teto, caíste! — Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,

Legado acerbo da ventura extinta,

Dúbios archotes que a tremer clareiam

A lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! Um dia vos verei mais belas

Que os diamantes de Ofir e de Golgonda

Fulgurar na coroa de martírios

Que me circunda a fronte cismadora!

São mortos para mim da noite os fachos,

Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,

E à vossa luz caminharei nos ermos!

Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa,

Brando orvalho do céu! — Sede benditas!

Oh! filho de minh'alma! Última rosa

Que neste solo ingrato vicejava!

Minha esperança amargamente doce!

Quando as garças vierem do ocidente

Buscando um novo clima onde pousarem,

Não mais te embalarei sobre os joelhos,

Nem de teus olhos no cerúleo brilho

Acharei um consolo a meus tormentos!

Não mais invocarei a musa errante

Nesses retiros onde cada folha

Era um polido espelho de esmeralda

Que refletia os fugitivos quadros

Dos suspirados tempos que se foram!

Não mais perdido em vaporosas cismas

Escutarei ao pôr do sol, nas serras,

Vibrar a trompa sonorosa e leda

Do caçador que aos lares se recolhe!

Não mais! A areia tem corrido, e o livro

De minha infanda história está completo!

Pouco tenho de anciar! Um passo ainda

E o fruto de meus dias, negro, podre,

Do galho eivado rolará por terra!

Ainda um treno, e o vendaval sem freio

Ao soprar quebrará a última fibra

Da lira infausta que nas mãos sustento!

Tornei-me o eco das tristezas todas

Que entre os homens achei! O lago escuro

Onde ao clarão dos fogos da tormenta

Miram-se as larvas fúnebres do estrago!

Por toda a parte em que arrastei meu manto

Deixei um traço fundo de agonias! ...

Oh! quantas horas não gastei, sentado

Sobre as costas bravias do Oceano,

Esperando que a vida se esvaísse

Como um floco de espuma, ou como o friso

Que deixa n'água o lenho do barqueiro!

Quantos momentos de loucura e febre

Não consumi perdido nos desertos,

Escutando os rumores das florestas,

E procurando nessas vozes torvas

Distinguir o meu cântico de morte!

Quantas noites de angústias e delírios

Não velei, entre as sombras espreitando

A passagem veloz do gênio horrendo

Que o mundo abate ao galopar infrene

Do selvagem corcel? ... E tudo embalde!

A vida parecia ardente e douda

Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem,

Tão puro ainda, ainda n'alvorada,

Ave banhada em mares de esperança,

Rosa em botão, crisálida entre luzes,

Foste o escolhido na tremenda ceifa!

Ah! quando a vez primeira em meus cabelos

Senti bater teu hálito suave;

Quando em meus braços te cerrei, ouvindo

Pulsar-te o coração divino ainda;

Quando fitei teus olhos sossegados,

Abismos de inocência e de candura,

E baixo e a medo murmurei: meu filho!

Meu filho! frase imensa, inexplicável,

Grata como o chorar de Madalena

Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras

Senti rugir o vento incendiado

Desse amor infinito que eterniza

O consórcio dos orbes que se enredam

Dos mistérios do ser na teia augusta!

Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!

Que se expande em torrentes inefáveis

Do seio imaculado de Maria!

Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!

E de meu erro a punição cruenta

Na mesma glória que elevou-me aos astros,

Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,

A voz mentida de rafeiros bardos,

Torpe alegria que circunda os berços

Quando a opulência doura-lhes as bordas,

Não te saudaram ao sorrir primeiro,

Clícía mimosa rebentada à sombra!

Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,

Tiveste mais que os príncipes da terra!

Templos, altares de afeição sem termos!

Mundos de sentimento e de magia!

Cantos ditados pelo próprio Deus!

Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,

E o gênio esmagam dos soberbos tronos,

Trocariam a púrpura romana

Por um verso, uma nota, um som apenas

Dos fecundos poemas que inspiraste!

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!

Do cantor infeliz lançaste à vida,

Arco-íris de amor! Luz da aliança,

Calma e fulgente em meio da tormenta!

Do exílio escuro a cítara chorosa

Surgiu de novo e às virações errantes

Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo

Ao pranto sucedeu. As férreas horas

Em desejos alados se mudaram.

Noites fugiam, madrugadas vinham,

Mas sepultado num prazer profundo

Não te deixava o berço descuidoso,

Nem de teu rosto meu olhar tirava,

Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindo! Nas rosadas faces

Tinhas ainda o tépido vestígio

Dos beijos divinais, — nos olhos langues

Brilhava o brando raio que acendera

A bênção do Senhor quando o deixaste!

Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,

Filhos do éter e da luz, voavam,

Riam-se alegres, das caçoilas níveas

Celeste aroma te vertendo ao corpo!

E eu dizia comigo: — teu destino

Será mais belo que o cantar das fadas

Que dançam no arrebol, — mais triunfante

Que o sol nascente derribando ao nada

Muralhas de negrume! ... Irás tão alto

Como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se,

E tantas glórias, tão risonhos planos

Desfizeram-se em pó! O gênio escuro

Abrasou com seu facho ensangüentado

Meus soberbos castelos. A desgraça

Sentou-se em meu solar, e a soberana

Dos sinistros impérios de além-mundo

Com seu dedo real selou-te a fronte!

Inda te vejo pelas noites minhas,

Em meus dias sem luz vejo-te ainda,

Creio-te vivo, e morto te pranteio! ...

Ouço o tanger monótono dos sinos,

E cada vibração contar parece

As ilusões que murcham-se contigo!

Escuto em meio de confusas vozes,

Cheias de frases pueris, estultas,

O linho mortuário que retalham

Para envolver teu corpo! Vejo esparsas

Saudades e perpétuas, — sinto o aroma

Do incenso das igrejas, — ouço os cantos

Dos ministros de Deus que me repetem

Que não és mais da terra!... E choro embalde.

Mas não! Tu dormes no infinito seio

Do Criador dos seres! Tu me falas

Na voz dos ventos, no chorar das aves,

Talvez das ondas no respiro flébil!

Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,

No vulto solitário de uma estrela,

E são teus raios que meu estro aquecem!

Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!

Brilha e fulgura no azulado manto,

Mas não te arrojes, lágrima da noite,

Nas ondas nebulosas do ocidente!

Brilha e fulgura! Quando a morte fria

Sobre mim sacudir o pó das asas,

Escada de Jacó serão teus raios

Por onde asinha subirá minh'alma.

A Flor do Maracujá

Pelas rosas, pelos lírios,

Pelas abelhas, sinhá,

Pelas notas mais chorosas

Do canto do Sabiá,

Pelo cálice de angústias

Da flor do maracujá !

Pelo jasmim, pelo goivo,

Pelo agreste manacá,

Pelas gotas de sereno

Nas folhas do gravatá,

Pela coroa de espinhos

Da flor do maracujá.

Pelas tranças da mãe-d'água

Que junto da fonte está,

Pelos colibris que brincam

Nas alvas plumas do ubá,

Pelos cravos desenhados

Na flor do maracujá.

Pelas azuis borboletas

Que descem do Panamá,

Pelos tesouros ocultos

Nas minas do Sincorá,

Pelas chagas roxeadas

Da flor do maracujá !

Pelo mar, pelo deserto,

Pelas montanhas, sinhá !

Pelas florestas imensas

Que falam de Jeová !

Pela lança ensangüentado

Da flor do maracujá !

Por tudo que o céu revela !

Por tudo que a terra dá

Eu te juro que minh'alma

De tua alma escrava está !!..

Guarda contigo este emblema

Da flor do maracujá !

Não se enojem teus ouvidos

De tantas rimas em - a -

Mas ouve meus juramentos,

Meus cantos ouve, sinhá!

Te peço pelos mistérios

Da flor do maracujá!

Arquétipo

Ele era belo; na sua espaçosa fronte

O dedo do Senhor gravado havia

O sigilo do gênio; em seu caminho

O hino da manhã soava ainda,

E os pássaros da selva gorjeando

Saudavam-lhe a passagem neste mundo.

Sim, era uma criança, e no entanto

Friez de morte lhe coava n'alma!

O seu riso era triste como o inverno,

E dos olhos cansados, nem um raio

Nem um clarão, nem pálido lampejo

Da mocidade o fogo revelavam!

Era-lhe a vida uma comédia insípida,

Estúpida e sem graça, - ele a passava

Com a fria indiferença do marujo

Que fuma o seu cachimbo reclinado

Na proa do navio olhando as vagas,

- Vivia por viver.... porque vivia.

Em nada acreditava; há muito tempo

Que a idéia de Deus soprara d'alma

Como das botas a poeira incômoda.

O Evangelho era um livro de anedotas,

Beethoven torturava-lhe os ouvidos,

A Poesia provocava o sono.

Muita donzela suspirou por ele,

Muita beleza lhe dormiu nos braços,

Mas frio como o gênio da descrença,

Após um'hora de gozar maldito,

Saciado as deixou, como o conviva

A mesa do festim, - farto e cansado. -

Era mais caprichoso, - mais bizarro

Do que um filho de Álbion, mais volúvel

Que um profundo político; uma tarde

Após haver jantado, recordou-se

Que ainda era solteiro; pelo Papa!

- É preciso tentar, disse consigo.

Quatro dias depois tinha cansado.

Escolhera uma noiva descuidoso,

Como um brinco chinês - um livro in-fólio,

Ao altar conduziu-a, distraído,

E as juras divinais do casamento

Repetiu, bocejando ao sacerdote.

Como tudo na vida, o matrimônio

Bem cedo o aborreceu; após três meses

Disse Adeus à mulher que pranteava,

E acendendo um cigarro, a passos lentos

Dirigiu-se ao teatro onde assistiu

Um drama de Feuillet, - quase dormindo. -

Por fim de contas, uma noite bela,

Depois de ter ceado entre dous padres,

Em casa de morena Cidalisa.

Pegou numa pistola e entre as fumaças

De saboroso - Havana - à eternidade

Foi ver si divertia-se um momento.

São Paulo - 1861

Fragmentos

..............

Por ela me despi dos áureos sonhos

Que a flor da mocidade abrilhantavam;

Por ela reneguei meu Deus e crenças,

Por ela abandonei meusnpátrios lares,

E nas fráguas do amor e da saudade

Vi minha vida desfazer-se em fumo!

Como o perfume que transpira à noite

Da margem da lagoa - a flor mimosa -

Vai deleitarno viajor que a névoa

Desorienta da campina extensa,

Vinham amenizar - lembranças dela

A sombria tristeza de minh'alma!

De plaga em plaga como o hebreu maldito

Refugiei-me em vão, buscando d'alma

Expulsar o pesar que me roía!

Mendiguei um alívio ao céu da Itália;

Aos cantos do barqueiro errei à noite

- Nas ondas perfumadas de Sorrento; -

Adormeci na encosta do Vesúvio,

E visitei as lúcidas paragens

Onde Laura e Petrarca suspiraram.

Mas era embalde!... nem o céu brilhante,

Nem o meigo sorriso, - o olhar de fogo

Da bela Italiana, nem os cantos,

Nem os festins ruidosos de Veneza,

Sanar puderam de meu seio a mágoa,

E a dor pungente que ia fundo n'alma!

À loira Grécia dirigi meus passos,

Adormeci à sombra dessas ruínas

Onde envolto em seu manto de descrença

Lorde Byron vagou. Abri meu peito

Às vozes divinais de antigas eras,

E no sopro das brisas que passavam

Ouvi o coro de - milhões de deuses -

Que das balsas floridas levantavam-se

À minha invocação; de Tempe ao vale

Fui aos ecos pedir - os doces cantos -

Que ali ditosa repetira Safo

Nos braços de Faon; e no entanto

Em vão minh'alma se engolfar buscava

No livro do passado, - em vão meus lábios

Murmuravam canções de seus poetas!

O pesar me seguia - mudo, - frio -

Horrível como um plúmbeo pesadelo!

Deixei a Grécia. Às regiões ardentes

Onde nuvens de areia o ar percorrem

- No sólio do zenite - o sol nublando,

Onde lenta caminha a caravana

Abrasada de sede e cansaço,

- Fugindo o tédio de uma vida eivada,

Como - Harold René - lancei-me triste

Cercada a fronte de trevosas nuvens.

Descansei sob as tendas do deserto,

Matei a sede de meu peito em fogo

- Nas águas lamacentas das cisternas,

E após deixando os areais sem têrmos

Embrenhei-me nas selvas seculares

Lá onde à sombra de soberbos cedros

Dormia a solidão seu sono imenso!

- Mas as canções dos árabes errantes, -

Os urros do simoun, - o múrmurio

Da folhagem da selva, - o mundo todo -

Desse vasto poema do deserto -

Falavam-me de dor e de amarguras,

Negra saudade me acordavam n'alma!

Vaguei nos mares à tormenta exposto,

Vi diante de meus pés - o oceano e a morte, -

E meu frágil baixel arrebatado

- Ora no dorso de espumosas vagas -

Ir doudejando topetar nas nuvens,

- Ora no abismo se afundar gemendo! -

Abrindo as asas negras sobre os mares

Corria o furacão rugindo em fúrias

Como o anjo da morte! No infinito

- A orquestra da tormenta - ribombava

Horrível e sublime! O céu rugia,

As sepentes de fogo se enroscavem

No espaço abraseado, - as ardentias

Referviam no abismo escancarado

Como os lumes que em breve me esperavam

Na tumba imensa de revôltas águas!

E enquanto os mastros a estalar caíam

Ao roçar da tormenta, enquanto os nautas

Prostados no convés - a Deus clamavam

Ante a agonia - a tempestade - e a morte,

Pedindo às vagas, olvidando tudo,

O nome dela eu murmurava em prantos.

Dos abismos à flor, como Manfredo,

Os gênios invoquei - vertiginoso -

P'ra que lançassem de minh'alma aos ermos

- De mim mesmo, um profundo esquecimento.

Pedi a Deus - um existir de bruto, -

Matéria impura sem pensar nem dores.

Mas nem um gozo iluminou-me a vida,

Nem uma fonte límpida e serena

Rebentou - pelo Saara - de minh'alma!

Errei nessas paragens encantadas

Onde à sombra de um bosque de palmeiras

Regatos correm de serenas águas:

Ouvi ave sonora se embalando,

A morredoura luz de amenas tardes

Lançar gorjeios de saudade infinda;

O céu de azul me iluminava a fronte

Com torrentes de luz, as flores todas

Me incensavam de aromas suavíssimos.

Mas - o riso da flor - o som das brisas -

A criação pejada de perfumes

Contando aos astros em linguagem doce

Suas legendas de amores e sorrisos,

Não podiam siquer matar-me n'alma

O negro viso de uma dor sem têrmos!

De deserto em deserto se acampando

Os pastores da Arábia a vida passam;

Como eles vagabundo, - eivado o seio,

De dor em dor com vagarosos passos

Atravesso os desertos da existência!

***

Cansado de lutar sobre esta vida,

Senti um dia esmorecer no crânio

A centelha da crença e da esperança.

Por altas noites, na mansão dos mortos

Quando a terra dormia, mergulhado

Em negro pesadelo, errei sombrio

Os mistérios da campa interrogando.

Haverá outra vida?... Após a morte

Irei eu habitar um novo mundo

Onde não sinta os desprazeres deste?

Eu filho da matéria e escravo dela

Serei em breve reduzido a lodo,

Após haver tragado em brônzea taça

Tanto fel e absinto?... assim clamava

Calando sobre a terra dos sepulcros

Minha fronte incendida pela febre.

Mas lá de longe, - lá do céu quem sabe,

Vinha uma voz ungida de saudades,

A harmonia da fé lançar-me n'alma,

E a flor das esperanças - moribunda -

Alimentar com tímidas promessas!

Era ela! ela sempre! à noite, - ao dia -

No sono - ou na vigília!... amiga sombra,

Incessante visão da felicidade,

Presente sempre a meus cansados olhos

Na penosa jornada deste mundo!

Anjo de meu amor! - filha de Deus!

Porque me inflinges o cruel suplício

De ver-te sempre, - de abraçar-te nunca!

Ligeiras nebulosas que habitais

Sobre os mares de éter, - róseas nuvens, -

Fúlgida estrela que à manhã nascendo,

Astros gigantes, - espantosos mundos

Que girais no infinito!... oh em vós todos

Eu parecia vê-la! - ora divina

Num oceano de névoas flutuando,

- Ora adejando na região das luzes, -

Ora no espaço que a razão apenas

Só pode conceber!... em meu caminho

Ela se erguia sempre; nos meus sonhos

Ela passava pensativa, - meiga

Como um gênio de Óssiam; nos meus versos

Seu doce nome ressoava sempre!

Debalde procurei riscar da mente

Essa imagem divina, - parecia

Que o destino a ligava à minha vida!

Todas a taças de um viver sem gozo

Traguei descrido. De minh'alma as flores

No lodo mergulhei, e inda tão cedo

Me perdi em profundos desvarios!

Fui no recinto em que circula o vício,

Ao clarão da candeia fumarenta,

Pender à negra mesa - empalecido -

Gastando as noites no fervor do jogo!

Tonto de vinho, - desvairado em febre, -

Elevei blasfêmias e obscenos cantos!

E nos gritos da orgia, - e no delírio -

Uma voz sonorosa me acordava

Do longo pesadelo de minh'alma,

- E eu soluçava me lembrando dela!

Coberto de tristeza e de saudades,

Quebrei a ausência, atravessei os mares,

Vim a vida buscar ante seus olhos.

Após tão longo exílio, ardendo em gozo,

O coração pulsando de alegria,

Aos lares dela dirigi meus passos.

Mas silêncio!... um véu negro, impenetrável,

Cubra esse quadro que meus olhos viram;

Durma na sombra de um olvido eterno

Esse mistério fúnebre, banhado

De lágrimas de sangue! E tu, minh'alma,

E tu, pobre infeliz, manchada - fria -

Abafa no teu seio essas lembranças,

Nem um sonho siquer desse passdo

Venha turbar teu pesadelo imenso!

Rio Claro - 1861

Sobre um Túmulo

Torce-te aí na sepultura fria

Onde passa rugindo o furacão,

Seja-te o orvalho das manhãs negado,

Soe em teu leito a voz da maldição!

Teu castigo será gemer debalde

Buscando o sono que o sudário deixa,

Ouvir nas trevas de uma noite horrenda

De errantes larvas a funérea queixa!

Pose-te a terra qual um fardo imenso,

Infecta podridão cubra teus olhos,

Seque o salgueiro que sombreia a lousa

E em seu lugar estendam-se os abrolhos!

Roam-te o ódio, - a maldição, - o olvido,

E quando as turbas levantar-se um dia,

- Aparências de Deus, - para afundar-se

No seio d'Ele, ardentes de alegria,

Surdo sejas aos ecos da trombeta

Em teu leito de pedra enregelada;

Findem-se os mundos, e a existência tua

Fria se apague na soidão do nada!

São Paulo - 1861

O Suplício

I

Na hora em que o horizonte empalidece,

Em que a brisa do céu vem suspirosa

De úmidos beijos afagar as flores,

E um véu ligeiros de sutis vapores

Baixa indolente da montanha umbrosa;

II

Na hora em que as estrelas estremessem

Lágrimas de ouro no sidério manto,

E o grilo canta, e o ribeirão suspira,

E a flor mimosa que ao frescor transpira

Peja os desertos de suave encanto;

III

Na hora em que o riacho, a veiga, o inseto,

A serra, o taquaral, o brejo e a mata

Falam baixinho, a cochichar na sombra,

E as moles fêlpas da campestre alfombra

Molham-se em fios de fundida prata;

IV

Na hora em que se abala o santo bronze

Da igrejinha gentil no campanário,

Uma voz lacerada, enfraquecida,

Levantava-se amarga e dolorida

Da sombria morada de Lotário.

..........................................

Parte II

Eu vou morrer, meu Deus! já sinto as trevas,

As trevas de outro mundo que me cercam!

Já sinto o gelo correr nas veias,

E o coração calar-se pouco a pouco!

II

Eu vou morrer, meu Deus! minh´alma luta,

E em breve tempo deixará meu corpo...

Tudo em torno de mim foge... se afasta...

Já estas dores não me pungem tanto!

III

Não... meus sentidos se entorpecem. Belo

O meu anjo da guarda me contempla;

Meu seio bebe virações mais puras,

Creio que vou dormir... sim, tenho sono.

IV

Minha mãe!... meu irmão!... eu não os vejo!

Vinde abraçar-me, que padeço muito!

Mas debalde vos chamo... Adeus... adeus

Eu vou morrer... eu morro... tudo é findo...

V

E a voz debilitava-se, fugia,

Como o gemido febril de um rola

Nos complicados dédalos da selva,

Até que em breve se escutava apenas

O estalo do azorrague amolecido,

Sobre as feridas do coalhado sangue

Da pobre irmã do desditoso Mauro.

VI

- Basta! - bradou um dos algozes - basta!

Deixai-a agora descansar um pouco,

Repousemos também; meu braço é fraco,

Inunda-me o suor! logo... mais tarde

Logo? estais doudo? a criatura há muito

Que sacudiu as asas.

- Sim!... é pena.

- Apalpai-a e vereis.

- Com mil diabos!

Ide ao amo falar, - responde o outro,

Limpando na parede a mão molhada.

VII

Os que este ofício lúgubre cumpriam

Era um branco robusto, olhar sinistro,

Cabeça de pantera; o outro um negro

Possante e gigantesco; as costas nuas

Deixavam ver os músculos de bronze

Onde o suor corria gota a gota.

..........................................

VII

- Meu senhor...

- O que queres? fala e deixa-me.

Lotário respondeu voltando o rosto

Ao servo hercúleo que da porta, humilde,

Lhe vinha interromper nas tredas cismas.

- A mulata morreu.

- Pois bem, que a deixem

E enterrem-na manhã.

A esta resposta

Decisiva e lacônica, o africano

Retirou-se abuscar seu companheiro,

Deixando o potentado, que de novo

Mergulhou-se nas fundas reflexões.

..........................................

IX

..........................................

Ao vivo encanto de uma aurora esplêndida

Voltando o rosto a noite despeitada

Cedeu-lhe a criação, e foi ciosa

Esconder-se em seus antros. As florestas

Sacudiam a coma embalsamada,

Onde ao lado da flor o passarinho

Se desfazia em queixas amorosas.

Tudo era belo, radiante e puro,

Palpitante de vida; a natureza

Como noiva feliz, tinha trajado

As mais soberbas galas, e estendia

Os seus lábios de rosa ao rei dos astros,

Que ansioso tremia no oriente

Para libar-lhe seu primeiro beijo.

X

Mas através do manto vaporoso,

Que leve e tênue para o céu se eleva

Nas madrugadas festivais do estio,

Um grupo silencioso caminhava

Pela encosta do monte, conduzindo

Um fardo estranho e dúbio; era uma rede

Nodoada de sangue! um corpo longo,

Rijo, estendido, desenhava as formas

Sobre o sórdido estofo. A madrugada

Que tão linda ostentava-se no espaço,

Tristonha e temerosa, parecia

Das vestes alvas afastar a fímbria

Desta cena sinistra e ensangüentada!

XI

Chegando ao topo da montanha, os vultos

Pararam, descansando sobre a terra

O peso mortuário. A natureza

Que próvida lançara o encanto e a vida

Ao redor deste sítio, parecia

Ter-lhe Tudo negado. o solo ingrato

Revôlto, sêco nem sequer mostrava

Uma gota de orvalho; desde a relva

Macia e vigorosa até a urtiga

Nada crescia ali! Triste, solene,

Sobre um monte de pedras, levantava-se

Apenas uma cruz em cujos braços

Dous pássaros beijavam-se gemendo.

XII

- Pega na enxada e cava; disse o homem

Que presidia ao bárbaro suplício

Da pobre irmã de Mauro - abre uma cova

Aqui neste lugar, e bem depressa,

Oito palmos de fundo e três de largo,

Atira dentro o corpo da mulata,

Cobre de terra e calca. Estas palavras

Foram ditas ao negro gigantesco

Que à vespera sorria-se, rasgando

As carnes da infeliz. Depois voltando-se

Aos outros desgraçados: - venham todos,

São horas dos trabalhos! e partiram.

XII

Em breve tempo os golpes compassados

De uma enxada pesada, começaram

A cair sobre a terra, lentamente

Abrindo o último leito da inditosa.

O feroz africano prosseguia

No seu lúgubre ofício sem ao menos

Levantar a cabeça. Alguns minutos

Já tinham decorrido quando em frente

Uma voz retumbante levantou-se

Fazendo ouvir-lhe o nome, o brônzeo monstro

Parou, volveu em tôrno o olhar selvagem,

E murmurou estremecendo: - Mauro!...

XIV

Sim, era Mauro, e quão mudado estava!

Dias sem luzes, noites sem descanso,

Tinham dez anos lhe roubado a vida!

Naquela fronte cismadora e doce,

Onde luziu resignação outrora,

Passavam nuvens de fatal vingança,

De planos infernais! Naqueles olhos

Donde incessante vislumbrava o gênio,

O gênio que o Senhor prefere às vezes

Sobre a choça lançar do que nos paços,

O gênio que alimenta-se de dores

E vive de amargor, naqueles olhos

Raios de sangue se cruzavam, rápidos!

A face descarnara-se, os cabelos,

Os cabelos, oh! Deus, negros, luzentes,

Em poucos dias alvejaram! Mauro

Era uma sombra apenas e uma idéia:

Sombra de dor, idéia de vingança!

XV

Não era o seu trajar o de um escravo,

Nem também de um senhor. Sombria capa,

Grosseira, embora, lhe cobria os ombros

E deixava entrever pendente à cinta

Uma faca ou punhal; largo chapéu

De retorcidas abas inclinava-se

Mostrando a vasta fronte; uma espingarda

Trazia à mão direita. Onde encontrara

O escravo estes recursos? Não se sabe.

Dera-lhe alguém, ou os roubara? Mauro

Era nobre de mais: desde criança

Bebera as leis de Deus dos santos lábios

Do velho missionário, e aprendera

A decifrá-las nos sagrados livros,

Embora a furto, a medo, que ao cativo

É crime levantar-se além dos brutos.

XVI

- Mauro!... de novo estupefato, trêmulo,

Ao aspecto do trânsfuga sinistro

O negro murmurou:

- Oh! sim, é Mauro!

Bradou aquele adiantando-se; abre

Esta rede depressa, quero vê-la,

Vê-la ainda uma vez, depois... vingá-la!

- É tua irmã...

- Bem sei. Abre essa rede,

Abre essa rede, digo-te!

- O africano

Deixou a enxada e foi abri-la. Oh! Deus!

Não era um corpo humano, era um composto

De carnes laceradas, roxas, fétidas,

Inundadas de sangue! Massa informe

De músculos polutos, negro emblema

De quanto há de feroz, bárbaro e tétrico,

Cruentamente horrível! O cativo

Exalou da garganta um som pungente,

Tigrino, e tão selvagem, que o africano

Sentiu um calefrio; ergueu os olhos

Abrasados ao céu, depois sem forças

De joelhos caiu junto ao cadáver

E se desfez em lágrimas ardentes,

Em soluços doridos. Impassível,

Frio como as estátuas indianas,

O negro contemplava este espetáculo

Que abalaria de piedade as pedras,

E susteria as rábidas torrentes

Nas rochas encarpadas!

- Bem; é tempo,

Basta de inútil pranto! disse Mauro

Erguendo-se do chão; - e tu agora,

- Falou fitando o túrbido coveiro -

Cumpre teu dever!... De novo os olhos

Encheram-se de lágrimas. - Adeus!

Adeus! mísera irmã, tu és ditosa!

Deus te deu a coroa do martírio

Para entrares no céu; a côrte angélica

Espera-te sorrindo... e eu inda fico,

E tenho de esgotar até às fezes

A taça envenenada da existência!

..........................................

Parte III

Tu passaste na terra como as flores

Que a geada hibernal derriba e mata;

Foram teus dias elos de teus ferros,

E teus prazeres lágrimas!

II

Negou-te a primavera um riso ao menos;

Dos sonhos na estação, nenhum tiveste;

A aurora que de luz inunda os orbes

Te abandonou nas trevas!

III

Alma suave a transpirar virtudes,

Gênio maldito arremessou-te ao lodo!

Buscaste as sendas lúcidas do Empíreo,

E apontaram-te o caos!

IV

A providência que os coqueiros une

Quando a tormenta pelo espaço ruge,

Até o braço de um irmão vedou-te,

Oh! planta solitária!

V

A morte agora te escutou, criança!

Trouxe a alvorada que esperaste embalde,

E adormecida nos seus moles braços

Pousou-te junto a Deus!...

XVII

Assim Mauro falou. Pesada e surda

A enxada do coveiro retumbava,

Como o bater funéreo e compassado

Do quadrante do tempo. O foragido

Lançou um olhar piedoso e triste

Sobre os restos da irmã, depois ligeiro

Afundou-se no dédalo das selvas.

A Mulher

(A C.....)

A mulher sem amor é como o inverno,

Como a luz das antélias no deserto,

Como o espinheiro de isoladas fragas,

Como das ondas o caminho incerto.

A mulher sem amor é - Mancenilha -

Das ermas plagas sobre o chão crescida,

Basta-lhe à sombra repousar um'hora,

Que seu veneno nos corrompe a vida.

De eivado seio no profundo abismo,

Paixões repousam num sudário eterno;

Não há canto nem flor, - não há perfumes,

A mulher sem amor é como o inverno.

Su'alma é um alaúde desmontado

Onde embalde o cantor procura um hino;

- Flor sem aromas, - sensitiva morta, -

- Batel nas ondas a vagar sem tino.

Mas se um raio do sol tremendo deixa

Do céu nublado a condensada treva,

A mulher amorosa é mais que um anjo,

- É um sopro de Deus que tudo eleva!

Como o árabe ardente e sequioso

Que a tenda deixa pela noite escura,

E vai no seio de orvalhado lírio

Lamber a medo a divinal frescura:

O poeta a venera no silêncio,

Bebe o pranto celeste que ela chora,

Ouve-lhe os cantos, - lhe perfuma a vida,...

- A mulher amorosa é como a aurora!

São Paulo - 1861

À Estátua Eqüestre

Ergue-te ousado sobre o chão da praça,

Homem de bronze, - imagem de monarca,

Simulacro fatal!

Pisa inda as turbas humilhadas, como

As duras patas do corcel que montas

O chão do pedestal.

Cansadas nunca de opressores ferros,

Livres de um jugo, - de outro jugo escravas,

As massas enervadas

Do pó resgatam seus tiranos mortos,

E à luz do sol inundam de louvores,

Por terra debruçadas!

Raça de Ilotas, que fizeste pois

Da férvida centelha que no seio

Vos pôs a Divindade?

Porque reledes o passado escuro,

Quando deveras derribar os tronos

Cantando a liberdade?

Vota-se à treva o busto dos Andradas,

Some-se a glória de ferventes mártires

Na lama do ervaçal!

Mas a fria estátua pisa a turba, como

As duras patas do corcel de bronze

O chão do pedestal!

Oh terra do Brasil; - diamante vívido

Da coroa soberba de Colombo,

- Bela estrela do sul, -

Porque tão cedo declinais a fronte

E a fímbria do vestido enegreceis

No limo do paul?

Porque tão cedo enregelais o seio

Nessas frias geadas que predizem

A morte das nações,

E os pulsos presos, e a vontade escrava,

Do mártir a memória e a voz dos bardos

Cobris de maldições?

Erguei-vos desse lívido marasmo,

Afrontai o negrume das tormentas,

O horror da tirania!

Se agora em bronze eternizais - senhores, -

Gravai nos bronzes o brasão dos livres,

Saudai um novo dia!

Embora o mundo me proclame louco,

Embora à fronte com furor me gravem

Estigma infernal!

Não posso calmo ver pisar-se as turbas,

Como o corcel de levantada estátua

O chão do pedestal!

S. Paulo - Outubro - 1861

A Despedida

I

Filha dos cerros onde o sol se esconde,

Onde brame o jaguar e a pomba chora,

São horas de partir, desponta a aurora,

Deixa-me que te abrace e que te beije.

Deixa-me que te abrace e que te beije,

Que sobre o teu meu coração palpite,

E dentro dalma sinta que se agite

Quanto tenho de teu impresso nela.

Quanto tenho de teu impresso nela,

Risos ingênuos, prantos de criança,

E esses tão lindos planos de esperança

Que a sós na solidão traçamos juntos.

Que a sós na solidão traçamos juntos,

Sedentos de emoções, ébrios de amores,

Idólatras da luz e dos fulgores

De nossa mãe sublime, a natureza!

De nossa mãe sublime, a natureza,

Que nossas almas numa só fundira,

E a inspiração soprara-me na lira

Muda, arruinada nos mundanos cantos.

Muda, arruinada nos mundanos cantos,

Mas hoje bela e rica de harmonias,

Banhada ao sol de teus formosos dias,

Santificada à luz de teus encantos!

II

Adeus! Adeus! A estrela matutina

Pelos clarões da aurora deslumbrada

Apaga-se no espaço,

A névoa desce sobre os campos úmidos,

Erguem-se as flores trêmulas de orvalho

Dos vales no regaço.

Adeus! Adeus! Sorvendo a aragem fresca,

Meu ginete relincha impaciente

E parece chamar-me...

Transpondo em breve o cimo deste monte,

Um gesto ainda, e tudo é findo! O mundo

Depois pode esmagar-me.

Não te queixes de mim, não me crimines,

Eu depus a teus pés meus sonhos todos,

Tudo o que era sentir!

Os algozes da crença e dos afetos

Em torno de um cadáver de ora em diante

Hão de embalde rugir.

Tu não mais ouvirás os doces versos

Que nas várzeas viçosas eu compunha,

Ou junto das torrentes;

Nem teus cabelos mais verás ornados,

Como a pagã formosa, de grinaldas

De flores rescendentes.

Verás tão cedo ainda esvaecida,

A mais linda visão de teus desejos,

Aos látegos da sorte!

Mas eu terei de Tântalo o suplício!

Eu pedirei repouso de mãos postas,

E será surda a morte!

Adeus! Adeus! Não chores, que essas lágrimas

Coam-me ao coração incandescentes,

Qual fundido metal!

Duas vezes na vida não se as vertem!

Enxuga-as, pois; se a dor é necessária,

Cumpra-se a lei fatal!

O Proscrito

(FRAGMENTO)

..................................

Se a luz d´aurora que enrubesce as nuvens

Trouxer-te um dia festival e belo,

Se o tênue arbusto de teus verdes anos

Ergue-se altivo e se cobrir de flores,

Se a mágoa, o ódio, a maldição, o opróbrio

O mundo e os homens, que mancharam ímpios

As vestes alvas de meus puros sonhos,

Não te embargarem na jornada os passos,

Vota, meu filho, um canto de tu´alma,

Uma página brnaca e perfumada

De teu dourado livro á pobre sombra

De teu mísero pai; dá-lhe um lamento,

Lembra-te dele que adorou-te e muito.

* * *

Tu és tão tenro ainda, ainda tão débil,

Inda sagrado dos divinos beijos

Dos Arcanjos do céu, e a fronte ungida

Da benção do Senhor na despedida,

No teu sono infantil teus irmãozinhos

Filhos do éter e da luz se cruzam,

Roçam e brincam sacudindo os sonhos,

Os sonhos dessa plaga que deixaste

Tão bela, tão esplêndida, tão santa!

Eu os vejo, meu filho, eu os escuto,

Eu sinto refrescar-me a fronte cálida

O sussurar das asas, quando triste

Nas longas noites me debruço ouvindo

Teu brando respirar, quando doudejo

Entre o gôzo e a esperança, o riso e a mágoa,

Alongando ao porvir fundos olhares.

* * *

Ah! que eu não possa divisar no espaço

Tua estrela fatal... e a veja fúlgida...

E não te leve como a minha ao orco

De um contínuo chorar!... Ah! que eu não possa

Romper o muro dos vindouros tempos

E contemplar as cenas de teu drama,

Que eu não possa as traçar!Mas não, é cedo!

Muito cedo, meu Deus! que lei sinistra

Me impele a povoar de treva e luto

Tudo o que há de mais belo e mais formoso

No teu vasto poema? encher de espinhos

As mais suaves sendas da existência

E rodear de lívidos espectros

O mole berço onde o inocente dorme

Lembrando-se do Empíreo e seus deleites?

* * *

Ah! não, meu pobre filho, o teu destino

É lindo como a aurora e como as flores

Banhadas de luar; sublime e grande

Como o sol que levanta-se das ondas,

Ondas de chamas derramando aos orbes.

Tu te erguerás robusto como o cedro

A cuja copa se debruça a nuvem

Palpitante de amor; irás tão alto

Como o pássaro-rei do Novo-Mundo!

* * *

Então se ouvires murmurar meu nome

Talvez envolto num cruel desprezo,

Ninguém maldigas, pois; vai no silêncio,

Quando a noite for calma e os ventos mudos,

Orar em meu jazigo e com teu pranto

O leito serenar. - Pobre dormente,

Não entendeu-me o mundo e inexorável

Lavrou minha sentença, sobre a campa

No epitáfio do olvido ela se grava!

* * *

Oh! filho de minh´alma, último lume

Que neneste céu nublado aparecia!

Minha esperança amargamente doce,

Quando as aves passarem do ocidente

Buscando um novo clima onde pousarem,

Não mais te embalarei sobre os joelhos,

Nem de teus olhos no cerúleo brilho

Acharei um consolo a meus tormentos!

Jamais! a areia tem corrido, e a folha

De minha treda história está completa!

* * *

Não proves nunca do existir na taça

O fel que eu hei tragado, e a dor intensa;

Às angústias mais íntimas do espírito

Nunca recebas o sarcasmo acerbo

Que ao leito da desgraça o mundo cospe!

Nunca vejas a lenda de teus dias

Salpicada de lama e de veneno

Como poluta vi passar-se a minha!

* * *

Cresce, meu filho amado, inda te vejo,

Inda me é dado te apertar no seio,

Beijar-te a rósea face! este momento

É mais que a eternidade! Cresce, vive,

E se algum dia no meu livro escuro

Esta folha encontrares, vota ao menos

À fronte que a pensou um triste pranto,

Vê que teu pai sofreu e não mentiu.

Desengano

Oh! não me fales da glória,

Não me fales da esperança!

Eu bem sei que são mentiras

Que se dissipam, criança!

Assim como a luz profliga

As sombras da imensidade,

O tempo desfaz em cinzas

Os sonhos da mocidade.

Tudo descora e se apaga:

É esta do mundo a lei,

Desde a choça do mendigo

Até aos paços do rei!

A poesia é um sopro,

A ciência uma ilusão,

Ambas tateiam nas trevas

A luz procurando em vão.

Caminham doidas, sem rumo,

Na senda que à dor conduz,

E vão cair soluçando

Aos pés de sangrenta cruz.

Oh! Não me fales da glória,

Não me fales da esperança!

Eu bem sei que são mentiras

Que se dissipam, criança!

Que me importa um nome impresso

No templo da humanidade,

E as coroas de poeta,

E o selo da eternidade,

Se para escrever os cantos

Que a multidão admira

É mister quebrar as penas

De minh'alma que suspira?

Se nos desertos da vida,

Romeiro da maldição,

Tenho de andar sem descanso

Como o Hebreu da tradição?...

Buscar das selvas o abrigo,

A sombra que a paz aninha,

E ouvir a selva bradar-me:

Ergue-te, doido, e caminha!

Caminha! dizer-me o mante!

Caminha! dizer-me o prado.

Oh! Mais não posso! - Caminha!

Responder-me o descampado?...

Ah! não me fales da glória,

Não me fales da esperança!

Eu bem sei que são mentiras

Que se dissipam, criança!

Vingança

I

Três vezes percorrido as doze casas

Tem o rei das esferas. É um dia

Brilhante e festival, cheio de júbilo

Nos imensos domínios de Lotário.

A habitação tranborda de convivas,

Retroa a orquestra, tudo ri-se e folga,

E os próprios servos no terreiro juntos

Dançam contentes, sem lembrar-se ao menos

Da escravidão pesada. O que há de novo?

Que fato estranho há transformado a face

Desta sinistra e túrbida morada?

Não o sabeis? Roberto hoje casou-se,

Roberto, o filho amado de Lotário

Cujos domínios não abrange a vista:

Feliz três vezes a formosa noiva!

II

A dança, o riso, os brindes e as cantigas

Até à noite vão; quando já débeis

As luzes vacilam nos seus lustres,

E o cansaço abatia os seios todos;

Quando convulso o arco estremecia

Nas cordas da rebeca, e os olhos lânguidos

Percorriam os grupos fatigados,

Roberto palpitante de ventura,

Louco de amor, a fronte incandescente

De abrasadas idéias, afastou-se

Do meio dos convivas, e furtivo

Desceu ao campo a respirar as brisas

Embebidas dos lânguidos perfumes

Das noites do verão. Tudo era calmo,

Sereno e sossegado; a natureza,

Num leito de volúpias adormida,

Parecia sorrir-se desdenhosa

Ao júbilo ruidoso que partia

Da casa de Lotário. Pensativo

Roberto se sentou sobre uma pedra

À margem de um regato, abrindo o seio

Ao transpirar balsâmico das flores.

III

Nas noites de noivado, quem se atreve

A deixar o festim, antes que a aurora

Não surja no horizonte? Assim o moço,

Vendo inda longe a hora desejada,

Maldizia essa festa, esses convivas,

Essa ardente alegria, que adversa

Levantava-se entre ele e a noiva amada.

IV

Longo tempo assim ´steve, mergulhado

Nas suas reflexões; quando se erguia

Para voltar à casa, um vulto escuro

A passagem cortou-lhe. O moço, rápido,

Volveu um passo atrás, e sossegado

Deu seu primeiro susto, perguntou-lhe:

- Quem és tu? o que queres?

Impassível,

O estrangeiro afastou as largas abas

De seu vasto chapéu.

- Oh! Deus! é Mauro!

Mauro, o que queres? fala!

- Eis o que quero!

O escravo respondeu vergando o moço

Com seus braços de ferro: - eis o que quero!

- Bradou cruento, amiudando os golpes

Terríveis e certeiros sobre o peito

Do mancebo infeliz; - Eis o que quero!

Repetiu arrastando-o sobre um fosso imundo,

Cheio de lama e apodrecidas plantas:

- Eis teu leito de bodas, boa noite!

V

........................................

A orquestra prosseguia, ardente, forte,

Seus ruidosos acordes; dos dançantes

Poucos se achavam do salão no meio,

A maior parte conversava aos cantos

Cansada sonolenta. De repente

Uma escrava lançou-se alucinada

Entre os grupos esparsos dos convivas!...

- Venham! bradava, meu senhor ´stá morto,

Meu senhor já morreu!... venham, acudam!

Um raio que tombasse no edifício

Não produziria tanto horror; um calefrio

Correu nas veias todas, e nos rostos

A palidez do túmulo estendeu-se.

Levantaram-se trêmulos, medrosos,

Acompanhando a escrava, que apressada

Ao quarto de Lotário os conduziu.

VI

Ele estava deitado no assoalho

Inundado de sangue; um surdo ronco

Partia-lhe do seio, e os olhos baços

Uma janela aberta contemplavam,

Como querendo descobrir nas trevas

Um profundo mistério. O quarto cheio,

Repleto de convivas e de escravos,

Retumbou de questões: - onde foi ele?

Como foi? conheceram-no? seu nome?

VII

Lotário apenas, já levado ao leito,

Para a janela olhava, abria os lábios,

Uma palavra ia partir, depois

Vendo baldados os esforços todos,

Soltava um som pungente e cavernoso,

Entre espuma sangrenta, da garganta.

VIII

Duas horas de angústias se passaram.

A morte caminhava passo a passo,

E não tardava a vir sentar-se, lívida,

Do leito do senhor à cabeceira.

IX

Tudo era em vão; cuidados e socorros

Gastaram-se debalde. Um dos cativos,

Montado sobre rápido cavalo,

Correra a ver o médico; era longe

A morada do filho da ciência;

E a sina de Lotário estava escrita!

........................................

X

Quando a sombra funérea de além mundo

Começou a turbar-lhe o olhar e o rosto,

Supremo esforço ele tentou; ergueu-se

Por uma estranha força, abriu os lábios

E murmurou com voz lúgubre e funda,

Com essa voz tão próxima dos túmulos,

Que parece partir de negro abismo:

- Também era meu filho!... e extenuado

Caiu sobre os lençois, rígido, frio,

Já domínio da campa

Em vão tentaram

O sentido buscar dessas palavras

Que Lotário dissera ao pé da morte,

Em vão tentaram descobrir aquele

Que era também seu filho! densas trevas,

Impenetrável manto de mistério

Cobria esse segredo, e o único lume

Que pudera surgir, o gelo frio

Tinha apagado para sempre! A campa,

Discreta confidente, esconde tudo!

Ideal

Não és tu quem eu amo, não és!

Nem Teresa também, nem Ciprina;

Nem mercedes a loura, nem mesmo

A travessa e gentil Valentina.

Quem eu amo, te digo, está longe;

Lá nas terras do império chinês,

Num palácio de louça vermelha

Sobre um trono de azul japonês.

Tem a cútis mais fina e brilhante

Que as bandejas de cobre luzido;

Uns olhinhos de amêndoas, voltados,

Um nariz pequenino e torcido.

Tem uns pés... oh! que pés, Santo Deus!

Mais mimosos que uns pés de criança,

Uma trança de sêda e tão longa

Que a bariga das perans alcança.

Não és tu quem eu amo, nem Laura,

Nem mercedes, nem Lúcia, já vês;

A mulher que minh´alma idolatra

É princesa do império chinês.

Ilusão

Sinistro como um fúnebre segredo

Passa o vento do Norte murmurando

Nos densos pinheirais;

A noite é fria e triste; solitário

Atravesso a cavalo a selva escura

Entre sombras fatais.

À medida que avanço, os pensamentos

Borbulham-me no cérebro, ferventes,

Como as ondas do mar,

E me arrastam consigo, alucinado,

À casa da formosa criatura

De meu doido cismar.

Latem os cães; as portas se franqueiam

Rangendo sobre os quícios; os criados

Acordem pressurosos;

Subo ligeiro a longa escadaria,

Fazendo retinir minhas esporas

Sobre os degraus lustrosos.

No seu vasto salão iluminado,

Suavemente repousando o seio

Entre sedas e flores,

Toda de branco, engrinaldada a fronte,

Ela me espera, a linda soberana

De meus santos amores.

Corro a seus braços trêmulo, incendido

De febre e de paixão... A noite é negra,

Ruge o vento no mato;

Os pinheiros se inclinam, murmurando:

- Onde vai este pobre cavaleiro

Com seu sonho insensato?...

Milton Nunes Fillho
Enviado por Milton Nunes Fillho em 10/08/2006
Reeditado em 10/04/2013
Código do texto: T213506
Classificação de conteúdo: seguro
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