3) Era uma casa

“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...”

A casa em que cresci foi uma das piores tristezas da minha infância. Eu não gostava daquela casa. Faltava tudo, a começar pelo conforto.

Era uma edícula (ridícula mesmo!) de três cômodos, nos fundos da casa do meu avô. Antes do meu irmão nascer, dormíamos nós três – eu e meus pais – no mesmo quarto. Um aperto danado. Uma cama ao lado da outra, e mais guarda-roupa, cômoda, penteadeira, passadeira, bagunças infinitas. E depois que ele nasceu ainda ficamos um bom tempo no mesmo quarto, dormindo os quatro juntos, acrescentando-se então um berço. Certamente Newton teria inventado mais alguma lei da Física se tivesse visto aquele quarto...

Com muito custo e muita coragem (ou por falta de opção mesmo), meu pai se embrenhou em mais uma reforma da casa. A cozinha se transformaria em um quarto para mim e o meu irmão e uma nova cozinha seria construída na varanda da casa. Aquilo não foi reforma, foi um pesadelo interminável.

No início, meu “novo” quarto era, além de dormitório, um depósito de materiais de construção. Sacos de cimento, azulejos empilhados, latas de tinta usada, tudo combinando harmoniosamente com o guarda-roupa e “o local onde eu dormia”. Digo assim porque durante muito tempo eu não tive cama, não. Eu dividia aquele cômodo com traças e muita poeira, dormindo em um colchão. Só no colchão mesmo. Havíamos ganhado uma cama e um colchão usados de um tio que se casara. Mas a cama antiga quebrou de velha. Sobrou o colchão, por sorte. E o “guarda-roupa” deveria chamar “pendura-roupa”, porque não tinha o fundo, não protegia contra nada: poeira, tempo, bichos.

Uma parte desse meu quarto não era cimentada, porque a ex-cozinha ainda não tinha se transformado totalmente. Dessa parte poderia escolher entre deixar seco e ficar com a poeira ou então jogar água e ficar com o barro.

Depois de um tempo, o telhado estava quebrado e jorrava água pelo buraco da lâmpada. Sem exagero. Não era goteira, mas uma verdadeira cachoeira dentro do quarto. Duvido que alguém tenha tido um quarto mais legal! Quando começava chover, imagine a família toda reunida de madrugada, pegando baldes, panelas, panos e rodo, na tentativa inútil de conter ou controlar toda aquela água... Não foram uma nem duas vezes que esse episódio se repetiu. E depois de muitos gritos e desespero, esperávamos desolados e acordados, a chuva acabar ou o dia amanhecer, o que acontecesse antes.

Não entrava sol nem corrente de ar nesse meu quarto. A janela dava para a cozinha. Era um quarto escuro, abafado, sem privacidade. O que eu mais desejei era um quarto em que eu acordasse e abrisse a janela para ver o sol da manhã. Poder respirar ar puro!

Com tanta água, rachadura, pintura velha, reforma sem terminar, as paredes da casa toda tinham uma decoração inigualável em todo o mundo: o vermelho do reboco sem pintura se revezava com o bolor das poucas partes da antiga pintura. Dava um efeito super original mesmo, porque duvido que alguém quereria igual.

Isso era a casa. Pior era o que tinha nela. Os móveis eram todos velhos e quebrados. Não tínhamos sofá nem cadeiras para as visitas. Quando chegava alguém, era preciso ir correndo pedir cadeiras emprestadas ao meu avô. Passávamos as cadeiras pelo muro mesmo, tentando disfarçar das visitas.

Eu tinha muita vergonha da minha casa, de toda essa situação miserável, humilhante. Muitas vezes, quando chegava algum colega, eu atendia no portão, não convidava para entrar. Ou então, quando alguém me dava carona, eu apontava para a casa do meu avô e dizia que morava lá.

Um episódio muito triste que eu me lembro aconteceu quando eu estava no terceiro colegial. Com muita luta, eu havia conseguido uma bolsa de estudo numa escola particular. Ou seja, eu estudava entre os ricos. Uma colega me pediu que lhe ajudasse estudando com ela uma matéria que não estava conseguindo ir bem. Acho que fiquei mais feliz com a oportunidade de jantar em casa de rico do que pelo fato de poder lhe ajudar mesmo.

Fomos direto da escola para sua casa. Jantamos fartamente, conforme previ. Conheci sua linda mansão. Confortavelmente nos pusemos a estudar em meio aos móveis mais chiques que eu poderia ter contato. A sua família, muito simpática, puxou todos os tipos de assuntos: a profissão do meu pai, com quem eu moro, em que bairro, como é minha casa. Justamente meu ponto fraco. Perceberam que eu titubeava em muitas respostas. Acharam no mínimo estranho.

Passado algum tempo, já não estudávamos mais juntos, no dia do meu aniversário, a minha tal colega e seus avós foram me fazer uma visita para levar um presente. Sobrevivi porque eu não estava em casa na hora. Minha mãe que os recebeu. Lembro-me até hoje dela contando: “eles não conseguiam disfarçar seus olhares aguçados, curiosos e incrédulos em todos os detalhes da casa... repararam em tudo... perguntaram muitas coisas... ficaram aqui por um bom tempo...”

Quando eu cheguei em casa, não acreditei nos meus ouvidos. Chorei dias e dias sem parar. De vergonha, humilhação e de tanta vontade de viver com pelo menos um pouco de dignidade. Não tive nem coragem de telefonar para agradecer o presente. Creio que eles souberam bem o porquê.

Quanta vergonha eu tinha... Mas pobre é assim mesmo, complexado por natureza, humilhado por si próprio e por pouca coisa, envergonhado do mundo inteiro. Mas hoje aquela vergonha se transformou em orgulho. Tenho gratidão pela minha origem humilde e pelas dificuldades por que passei, porque isso torna as minhas vitórias ainda maiores.

Meus pais ainda moram nessa mesma casa. Ainda é muito humilde, claro. Mas a reforma foi terminada e muitos móveis novos foram comprados. Não lhes falta nada. São felizes morando lá. Conseguimos comprar uma casa e a oficina onde meu pai trabalha há anos. Espero que em breve eles possam morar numa casa maior.

Mudei-me de lá quando fui trabalhar em São Carlos. Morei em duas kitnets minúsculas, depois dividi um apartamento com um colega e em seguida me mudei para uma casa onde morei sozinho. Gostava muito daquela casa. Lá eu ouvia o canto dos passarinhos que me inspirou a escrever o livro “Pássaros”. Morei nesta mesma casa por muitos anos até me mudar para Catalão. E agora aqui estou na maior e mais nova casa que já morei em toda a minha vida.

Sei que tudo mudou porque eu mudei e porque eu criei as causas da revolução em minha vida. Aprendi no budismo a transformar “o veneno em remédio” e a reverter qualquer situação desfavorável, considerando todas as experiências como preciosos tesouros.

E continuo cantando “era uma casa muito engraçada...”

(Catalão, 23/11/2009)

Hélio Fuchigami
Enviado por Hélio Fuchigami em 04/12/2009
Reeditado em 08/12/2010
Código do texto: T1960855
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