UM CERTO GERALDO

As autobiografias quase sempre trazem feitos enaltecedores do retratado. Não quero dizer que são necessariamente inventadas, mentirosas ou recheadas com fatos, do que se poderia classificá-los dignos de uma vida. Mas tem sido praxe vê-las narradas em que o biografado se pareça portador dos mais magnânimos sentimentos, e a virtude traçada nos faz invejosos de tão exemplar personagem. É como se as autobiografias exercessem a função única de um “markting-pessoal”; dispositivo que hoje ganhou adeptos de quase uma religião. É preciso se auto-promover, como um produto, para ser aceito no mercado de trabalho. E nesse campo minado das relações ad-hoc, as histórias passadas não são desejadas, basta vermos que nos dias de hoje, com o advento e domínio da televisão, as conversas são cada vez mais raras, fato corriqueiro noutros tempos e que, se houver platéia, digo, ouvidos, nos levariam a um tempo, no qual, a simplicidade seria o ingrediente fundamental.

Apaixonado por essas narrativas contadas por pessoas que tive a sorte, de um dia, ser agraciado da companhia, contarei uma que ouvi de um senhor que, há época, tinha uns oitenta anos.

Eu trabalhava para um grande instituto de pesquisas. Dentre as várias funções exercidas, e que mais adiante me deram caldo, jargão usado para experiência, para o trabalho de verificador. Minha tarefa básica era ir checar os dados que os colegas de campo havia coletados. Daí a necessidade de ter de voltar à casa do entrevistado. E foi num desses retornos que conheci, se não me engano, seu Geraldo. Feita a verificação, começamos a falar de coisas corriqueiras: tempo, filho, política, da modernidade, da juventude. Percebi que seu Geraldo era uma pessoa que gostava de falar do seu tempo. Assim se confirmou à reclamação, dos tempos modernos, que naquela época “o cavalheiro não beijava a dama na rua” ou ”namorar só dentro de casa e na vista dos pais”.

A conversa, pra mim um saboroso desabafo, se desviou para a política. Dentre as tantas coisas ditas sobre Getúlio, Jânio Quadros, Kubischek, seu Geraldo me disse que na época da revolução de trinta e dois, ainda criança, teve que vir de Jundiaí a São Paulo a pé com a família, disse, ainda, que para se conseguir um quilo de sal ou açúcar, tinha que encomendar uma semana antes; as estradas estavam intransitáveis e os carregamentos atrasavam constantemente. Segundo ele, eram tempos duros, mas muito melhores do que vivíamos hoje. Não eram falas de uma pessoa magoada com a vida, era apenas a constatação de uma mudança que contrastava com um tempo que deixara saudades e que o chocava em virtude de não saber assimilar a nova situação.

Não foi uma conversa em que o ouvinte saiu entediado. Dessa experiência, ficou a imagem de seu Geraldo contando que no seu tempo, em São Paulo, os homens usavam chapéus, gravata, terno de risco, sapato bico-de-pato; as mulheres, saia longa, também usavam um chapéu e não usavam calça comprida (isso era roupa de homem), “havia mais elegância”, me disse ao ver um moço passando de calça jeans e sandália de couro. Ou, que andar de bonde pelo Brás, Mooca, Centro era muito melhor que o Metrô com essas “tal de escadas rolantes”. Para ele São Paulo era muito melhor do que hoje, porque tinha menos gente andando pela rua – “olha o Rua Direita, tem tanta gente andando, que tiraram até o bonde que passava por ela”.

Confesso que não conseguia contra-argumentar. Não precisava. Tomei a decisão de ouvi-lo com os ouvidos mais atentos, pois, ter a oportunidade daquele momento, era algo que não queria perder.

Seu Geraldo falava, falava sem parar até que percebendo porque não retrucava, perguntou se eu concordava com ele. Disse que não tinha o que falar, apenas queria agradecê-lo. Por quê? Perguntou-me como sem entender. Respondi que assim como outros, ele fora uma dessas pessoas que transformaram São Paulo nessa cidade que temos hoje. Claro que como muitas outras cidades, têm seus problemas, mas tem a proeza de aqui permitir que pessoas das mais variadas regiões do mundo, aqui convivem entre si. E aí, com lágrimas nos olhos, seu Geraldo aponta dizendo para o céu “é filho, não sei quanto tempo tenho de vida nessa terra, mas sou muito grato a ela porque foi aqui que me criei, casei, tive meus filhos e meus netos. Essa cidade cresceu muito e eu ajudei para isso, trabalhando de feirante, depois, carpinteiro, alfaiate, pedreiro, relojoeiro, etc., fiz tantas coisas que já nem sei mais tudo que fiz”.

E para esse que vos escreve, com as escusas da memória que pode ter falhado em algum momento, ficou a lição de uma vida que, sem ser autobiográfica, tem a vantagem de ter sido contada por alguém que, na sua simplicidade, ingrediente salutar das histórias orais, sem querer ter sido, tornou-se personagem dessa imensa cidade chamada São Paulo.

É isso

Categoria: Personagens

Autor(a): Silvio Lima | história publicada em 7/2/2007, no saopaulominhacidade.com.br