A MINHA ORIGEM III

Os avós/ pais.

- Agostinho Rodrigues da Rocha/ Maria Angélica Rodrigues da Rocha; Alberto Pedro de Vasconcellos/ Valentina da Fonseca Vasconcelos.

- Agostinho e Maria Angélica.

Hermínio e Mathildes tiveram Agostinho e mais doze filhas. Pedro e Enedina tiveram apenas uma filha, Maria Angélica. Moravam todos na Vila de Maceió, num casarão (hoje tribunal de contas de Alagoas), na praça dos Martírios em frente à igreja do mesmo nome, pois a essa altura Maceió concentrava o mercado alagoano e mais tarde se tornaria a capital do Estado das Alagoas, após a proclamação da república pelo Marechal Deodoro da Fonseca, filho ilustre do local, em homenagem ao qual a vila foi desmembrada nos municípios de Maceió e Marechal Deodoro, que ainda conserva toda beleza colonial a refletir-se nas águas da lagoa do Mundaú. O casarão imponente que revelava todo poder econômico da família Rodrigues da Rocha tinha calçada alta onde os primos Agostinho e Maria Angélica, gostavam de brincar e de ver as pessoas que passavam para a feira lá longe na Levada. Hermínio dominava o mercado de carne como principal marchante da província. Agostinho e Maria Angélica freqüentavam o Liceu Alagoano, o formador de cabeças pensantes. Concluído o curso básico, Agostinho foi para o Rio de Janeiro formar-se engenheiro mecânico e de lá, contratado para montar uma fábrica de beneficiamento de látex que iria se instalar em Manaus, em plena Amazônia, berço da Hevea brasiliensis.

Possuidora da calma e da tranquilidade das pessoas bem resolvidas, Maria Angélica dedicou-se ao estudo da Homeopatia e da Fitoterapia. Em qualquer situação, ela sabia um remédio para mitigar o sofrimento de qualquer necessitado. Agostinho não podia nem devia meter-se sozinho num fim de mundo daqueles. Com o consentimento geral o casamento entre os primos se deu com toda pompa que a posição da família exigia e na mesma semana, embarcaram para Manaus. Tiveram seis filhos.

- Alberto Pedro.

Um dos filhos do Dr. Felisbino com a escrava Manuela recebeu o nome de Alberto Pedro e pela vontade paterna foi trazido para o Recife, pelo seu padrinho, para ser matriculado no Colégio Salesiano do Sagrado Coração de Jesus, de onde sairia para o Seminário Regional do Nordeste, em Olinda, para formar-se padre. Aos onze anos sua vida estava destinada ao sacerdócio, mas o colégio estava fechado e os dois por não terem nada a fazer na pensão onde se instalaram para aguardar o dia seguinte, foram dar uma volta pela cidade. Tudo muito grande e bonito aos olhos do menino que jamais havia posto os pés fora de povoado de Barreiros, onde ficam os engenhos onde nascera. Seguiram em passeio até o Recife Antigo onde estava acontecendo as festividades do dia do Marinheiro, era 13 de dezembro. Havia desfile pela praça do Arsenal e o menino encantado com toda aquela pantomima (apitos, toques de corneta, tiros da canhão) os oficiais mais enfeitados que os generais de fandango dançados nos engenhos nas festas dos santos reis, não deu sossego ao padrinho até ouvir dele a promessa de que iria matricular-lo naquela escola maravilhosa. Ao ser promovido de Grumete a Aprendiz, embarcou para o Rio de Janeiro para se tornar Oficial da Marinha de Guerra. Conheceu todos os continentes nos sessenta e cinco anos de serviço efetivo. Participou das guerras de 1914/17 e de 1939/45. Publicou cinco livros, falava onze idiomas e teve vinte e um filhos. Foi sócio fundador do “Grêmio Charadístico do Norte” e por duas vezes Presidente das Colônias de Pesca de Pernambuco.

- Valentina.

Paschoal e Ascilina tiveram quatro filhos. Valentina foi a terceira. Panchita que era madrinha de Ascilina foi também de Valentina, logo após o nascimento do quarto filho, Ascilina adoeceu e veio a falecer do que se chamou “anemia profunda” (talvez leucemia). Viúvo com quatro filhos para criar, Paschoal casou com Cândida, uma portuguesa de maus bofes que passava os dias tomando vinho, cantando e ameaçando os enteados. Para proteger a afilhada por causa das ameaças e das eventuais tamancadas, Panchita foi falar com o Inspetor de Polícia do Quarteirão para que Valentina viesse morar em sua casa. Naturalmente Paschoal não concordou e o caso foi parar no Juizado. Sabiamente o juiz perguntou à menina o que ela queria, morar com a madrinha ou continuar na casa paterna.

- Eu quero ficar com Dindinha. E o meritíssimo homologou a sábia decisão da criança.

[Nos comentários sobre a família que eu ouvia quando criança tinha uma das ameaças de Cândida para minha avó, a pequena Valentina. Dizia ela. “Oh! Menina, tu pedes bem a deus que a dona Chiquinha não morra. Porque se ela morrer e tu vieres a minha casa e quebrares um prato, eu te dou-te uma palmada que te racho-te a bunda”]

Além de português e espanhol, Valentina sabia um pouco de francês, de tagalope (a língua paterna) e tupi/guarani que aprendera com a mãe e com a madrinha. Nunca abandonou a Ordem Terceira de S. Francisco das Chagas. Panchita tinha uma pensão onde os marinheiros iam comer nos dias de folga. E foi numa dessas folgas que Alberto conheceu Valentina.

Valentina trançava cordão entre os dedos, fazendo pés de galinha, cama de gato, rede... e passava para as mãos dos netos ensinando os movimentos aprendidos com Panchita, numerados em guarani; peteim (um), mocoin (dois), mohapi (três), rundi (quatro). São brinquedos que o tempo jogou no esquecimento quando separou os membros das famílias. Valentina gostava de lavar a roupa dos netos que enchiam a sua casa e como fumava muito, vez por outra pedia a um deles para ir buscar um cigarro aceso. Todos nós dávamos uma fumadinha antes de entregar o cigarro. Assim, todos nós aprendemos a fumar com ela. Ela sempre reclamava de dor de cabeça e tomava regularmente os comprimidos contra a dor “Rodine” e “Melhoral”, (remédios populares, vendidos em bodegas, bastante usados nos anos cinquenta). Talvez essa dor fosse o glaucoma que a cegou.

[Outro comentário recorrente, contava que toda noite Paschoal e os amigos Damacio e Romão, fumavam charuto e conversavam sentados na sala de visitas. Logicamente no idioma natal. Basílio, o filho mais velho de Paschoal, não dominava o tagalope e para fazer graça para quem quisesse rir, sentou numa cadeira de palhinha e fazendo o gesto de quem segura um charuto entre os dedos, falou para um deles.

- massa lá cá tá iô to?

Romão Garay respondeu indignado. “oh! filho de pai tua, eu dou em cara tua!”]

O recém criado Comando do Terceiro Distrito Naval transferiu para o Recife o sub Oficial Alberto Pedro com mulher e os quatro filhos nascidos no Rio de Janeiro.

- Gastão.

O império fora substituído pela república e o micróbio da política contaminou Sô Mino que fundou um jornal para ser a voz do povo contra os desmandos dos políticos, entre eles Wenceslau Brás, arquiinimigo e adversário político. Toda fortuna amealhada em tantos anos de trabalho honesto, foi-se pelo ralo da política e pelas conversas bonitas dos aproveitadores de plantão. O falecimento prematuro de Agostinho fez com que seus filhos fossem criados pelo avô paterno. Chefe de família numerosa e sofrendo a perseguição dos vencedores contra os vencidos, Hermínio transferiu-se para o Recife. [Ler o conto ASSOMBRAÇÃO]. Depois de serenados os ânimos e pouco antes do seu falecimento, Hermínio voltou para Maceió. Já não dispunha da fortuna nem da influência que ela pode comprar. Dos antigos companheiros e correligionários, apenas o senhor Leitão visitava-o todas as noite para uns dedos de prosa. Tomavam chá e conversavam. Leitão ouvia embevecido as histórias que Hermínio contava e a cada intervalo, puxava mais um pouco a cadeira para perto do amigo e dizia “bonito hein Hermínio?” até o ponto em que as cadeiras já não podiam balançar então Sô Mino, por pura gozação dizia “entra Leitão pelo meu cu adentro” indignado Leitão reclamava, -“Hermínio você é um homem mal educado, um depravado” e afastava a cadeira para em pouco tempo começar a aproximar-se outras vezes. Sô Mino sempre dizia “conhece-se a educação de um homem nas mesas de refeição e do jogo e o seu caráter quando investido de autoridade”. Hermínio morreu pobre e esquecido dos “amigos” entre eles Ruy Barboza, seu correspondente nos tempos faustosos, como a maioria das pessoas. Mas a vida continuava e Gastão, quarto filho do casal e neto favorito de Sô Mino, concluiu o curso de humanidades no Liceu Alagoano. A vida cada dia mais difícil fez com que Maria Angélica mudasse com os filhos para o Recife, onde os mais velhos arranjariam os empregos que faltavam em Maceió. Pela educação esmerada e pelos conhecimentos adquiridos com os estudos não foi difícil para os quatro primeiros arranjarem colocação. Deixaram a pensão no bairro da Boa Vista e alugaram uma casa na Rua Conde de Irajá, no bairro da Torre. Gastão ingressou no serviço público. Foi bancário e funcionário autônomo do Porto do Recife. Era apaixonado por frutos do mar. Não bebia e não fumava desde o episódio quando menino recebeu dinheiro do avô para ir à festa da padroeira. Comprou um charuto aceso e embarcou no bonde que o levaria do Farol para o centro de Maceió (a casa da praça dos Martírios havia sido vendida para pagar dívidas), antes da metade do caminho, embriagado pelo fumo, passou mal. Vomitou na roupa nova e foi trazido para casa por um amigo de Sô Mino que no outro dia lhe disse. “Não vou lhe repreender, o charuto fez isso por mim”. Gastão herdou o caráter, a honestidade, o comportamento e o palavreado do avô que o criou. Foi torcedor intransigente do Santa Cruz Futebol Clube de onde era proprietário da cadeira número um do estádio do Arruda, sócio remido, patrimonial e contribuinte.

- Evalda.

Com o reforço no soldo motivado pela transferência, Alberto Pedro comprou uma casa na Rua Lírica, no bairro do Zumbi. Aos domingos, antes do almoço Alberto consertava cerca, fazia galinheiro ou qualquer outro trabalho no quintal, junto com os filhos e vez por outra, tirava de dentro do poço a garrafa de aguardente colocada lá para esfriar e dizia: “Homem, deixe-me tomar mais um gole de jolêguiberry” (eu nunca soube o que essa palavra quer dizer) e depois do almoço ia dormir. Junto com os irmãos e colegas da vizinhança, Evalda estudava no colégio das freiras Doroteias, no vizinho bairro da Madalena (hoje Fundação Cecosne). Semiinternato as aulas começavam às oito da manhã e só acabavam as dezessete. Esse intervalo de tempo diário era o bastante para que Evalda junto com as colegas fizessem um inferno da vida das freiras, com todas as diabruras típicas dos anos 20/30, onde toda maldade consistia em desobedecer as ordens superiores. Cansada das repreensões e das surras que levava da mãe cada vez que a caderneta de presença trazia alguma queixa Evalda deixou a escola para nunca mais freqüentar outra. Dedicou-se a ajudar a criar os irmãos e a ler tudo o que lhe caísse nas mãos. Tornou-se uma excelente contadora de histórias, mantinha correspondência com amigos dentro e fora do Brasil, foi poetisa e sócia fundadora do Clube de Poesias do Recife. Gostava de cozinhar, de bordar, de apreciar o céu, de fazer flores de pano, de cultivar plantas (principalmente orquídeas e margaridas), de animais, de cantar e tinha disposição para qualquer tipo de serviço. Era capaz de qualquer coisa pelos filhos e pelos irmãos. Chorava com muita facilidade e era fiel às amizades como um cão.

Em meados dos anos 30 os rapazes se reuniam para jogar futebol em qualquer terreno vazio que encontrassem. Os irmãos mais velhos de Evalda fizeram amizade com o alagoano bom de bola que morava no bairro vizinho da Torre e foi através dessa amizade e com um empurrãozinho deles que Gastão falou namoro com Evalda.

O ano de 39 abrigava dois flagelos, a febre amarela e a segunda guerra mundial.

O primeiro, provocado pelo avanço da população sobre áreas insalubres e pelo descaso das autoridades encarregadas de sanear as cidades. O segundo, a expressão máxima da bestialidade humana.

Gastão Rodrigues da Rocha trabalhava no Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), órgão federal encarregado das ações para controlar o mosquito Anophelis gambiae e foi destacado para a cidade de Fortaleza no Ceará. Para não viajar só, acelerou o casamento com Evalda da Fonseca Vasconcelos.

Eu nasci deste casal, no Recife, em 28 de agosto de 1944, quase cem anos depois do nascimento de Sô Mino.

(Continua em Minha Vida Numa Lauda)