A MINHA ORIGEM II
Os bisavôs maternos.
- Manuela Rosa do Livramento/Felisbino Mendonça de Vasconcellos; Paschoal Omanguim/Ascilina Esmeralda da Fonseca.
- Manuela
Na África sub saariana, a vida segue em passos lentos e o tempo é contado pelos acontecimentos notáveis. Foi no dia em que houve o estouro da manada de gnus migratórios que Nana nasceu. Nada ficou de pé, casas, plantações, aldeias inteiras sumiram sob os cascos dos animais em fúria. Apenas os enormes baobás que pontilhavam a savana tornaram-se o único refúgio para evitar que a tribo de Adebayo fosse dizimada. Aysha em trabalho de parto, auxiliada por seus pais Shola e Akua, subiu o mais alto que pode e foi lá de cima que Nana viu a luz do sol escaldante pela primeira vez. Cumprindo o ritual para manter a fertilidade da filha, Shola atirou a placenta para as hienas que também haviam se refugiado aos pés do baobá. Décima filha de Adebayo, homem valente, caçador destemido, guerreiro audaz. Para comemorar o nascimento da filha, Adebayo convidou Zembo, chefe da tribo vizinha para celebrarem o noivado de seus filhos. Logo após a menarca, Nana filha de Adebayo e Shola se casaria com Atu filho de Zembo e Yeza.
Nana e Atu cresceram felizes, cada um em sua tribo, sendo cuidados por mães zelosas que lhes ensinaram tudo o que precisavam saber para uma vida tranquila. Atu aprendeu a caçar, pescar, cuidar do gado, construir cabanas de taipa, onde o estrume do gado é misturado ao barro para servir de isolante térmico naquela região onde o calor pode atingir cinquenta e cinco graus centigrados no período seco do ano. Aprendeu também a dançar para impressionar a sua noiva quando fosse conhecer-la, aprendeu a guerrear, a tomar decisões para ser um chefe respeitado e justo. Aprendeu principalmente a fugir dos caçadores de escravos. Nana aprendeu a preparar os alimentos a base de inhame com camarão pimenta e azeite de dendê. Sabia como evitar os crocodilos e os hipopótamos do rio. Aprendeu a cultivar a pimenta, a tinturar e a tecer o algodão para fazer os panos de enrolar o corpo da cintura para baixo. Aprendeu a se pintar e a fabricar adereços para os braços, pescoço, pernas e orelhas. Sua maior diversão era ouvir o contador de histórias que visitava regularmente as aldeias, trazendo as novidades e relembrando os fatos que eram as histórias de todos e de cada um deles. Quando os hormônios começaram a remodelar os corpos dos jovens (por serem filhos de nobres), tiveram que ser tatuados nos braços, rosto e peito. Esses sinais serviam para serem reconhecidos como pessoas importantes que em algum tempo, deteriam a autoridade máxima da tribo ao mesmo tempo em que indicava serem responsáveis pelo bem de todos. Foram confinados para serem preparados para a vida adulta. Atu, depois de iniciado poderia ter seu próprio gado, possuir sandálias de couro e usar o agasalho com pele de guepardo, símbolo do guerreiro. Nana saiu da cabana onde passara os três últimos meses sendo preparada para a vida adulta. Pintaram-lhe o corpo com os sinais do seu novo status com tinta branca e com a saia vermelha, tecida por Aysha, sua mãe, veio para o cento da aldeia para ser vista e reverenciada por todos. Mas havia algo estranho no ar. O ancião da aldeia alertou para uma desgraça iminente. À noite, Ankoma, guerreiro experiente, ficou de sentinela no alto de um flamboyant. Antes do alvorecer um clarão de incêndio denunciou que a desgraça estava acontecendo na aldeia de Zembo. Os homens saíram para ajudar e na ausência deles, os caçadores de escravos invadiram a aldeia de Adebayo. Os que não morreram à bala foram aprisionados e levados para serem vendidos como escravos. Cumpria-se assim a vingança de Shinedu, irmão de Zembo que fora expulso da tribo e não encontrara abrigo nas aldeias vizinhas. Nana prisioneira, foi embarcada no navio negreiro que arribou para o Brasil.
- Felisbino
O outono muito mais frio que o normal, indicava que o inverno daquele ano não ia ser de brincadeira. Felisbino ainda menino, voltava para casa depois da aula no salão paroquial. Havia levado uma dúzia de bolos por não ter decorado a primeira declinação – Rosa, Rosae, Rose, Rosam Rosa, Rosa... Agora sabia, mas quando estava na presença do cura as palavras não saíram, nem depois da palmatória. Ajoelhado no chão, mergulhou as mãos doloridas na água gelada da levada. Aquele padre ia ver... Haveria de vingar-se. Enquanto sentia a dormência aliviar a dor, notou a espigueira abarrotada na beira do caminho. Apesar de católicos fervorosos, os camponeses, por via das dúvidas, alimentavam os deuses pagãos com oferendas. Pequenas amostras de tudo o que ali se cultivava, enfeixadas e colocadas nas espigueiras de pedra lavrada bem mais antigas que o velho Portugal. Herança dos romanos que permanecia viva na língua e nos costumes. Bino como era chamado em casa, resolveu que deitaria fora todas as oferendas para que os deuses enfurecidos prejudicassem as próximas colheitas. Sem colheitas não haveria contribuição para a igreja e aquele padre miserável haveria de morrer de fome e que os raios o partissem. Bem pensado, melhor executado. Todas as espigueiras foram saqueadas e seus conteúdos espalhados pelo chão lamacento e muito bem pisoteados. Mas alguém viu e contou ao senhor Manuel Mendonça de Vasconcellos, a façanha de seu primogênito. Dia seguinte, depois de tremenda sova o menino foi mandado para o colégio dos jesuítas na Vila do Porto. Daquele internato só existiam três formas de sair. Morto, Padre ou advogado pela universidade de Coimbra. Bino optou pela terceira. Bacharel em ciências jurídicas, não voltou à casa paterna nem para desfazer-se dos bens que herdara com o falecimento do pai. Não era a vida de advogado que o atraia. Ele queria ser produtor de açúcar, o ouro branco pelo qual a Europa tanto ansiava e por quem tantas vezes tinha ido à guerra. Com o dinheiro da venda do castelo dos vinhedos e das terras, três dias depois de ter chegado à Lisboa, arribou para Pernambuco no primeiro veleiro. A condessinha, sua namorada em Coimbra, amargou a gravidez indesejada e o abandono do jovem advogado que fora à Lisboa “socorrer um amigo”. Chegado ao Recife, o nobre português fez amizade com o comendador da ordem dos jesuítas e por seu intermédio, comprou os engenhos Muitas Cabras e Saboroso, na Vila de Barreiros, mata sul de Pernambuco. Bino apaixonou-se à primeira vista pelas duas filhas do comendador. Pediu a mão da mais velha em casamento, por ser de origem fidalga e por precisar de alguém de pulso para ajudar-lo na lida dos engenhos. A paixão pela cunhada crescia a cada dia e o melhor, era correspondido. Atendendo à urgência, o casamento se deu menos de um ano depois de sua chegada. Os engenhos foram comprados de porteira fechada. Além das melhorias, Felisbino tratou de aumentar o plantel de escravos, cuidando ele mesmo de engravidar as escravas e toda moça desavisada que cruzasse seu caminho. Era um sedutor nato que sabia exercitar o dom da conquista. Para remediar o fato de não ter um herdeiro para a família da mulher, Felisbino engravidou a cunhada quando ela foi passar uma temporada no engenho. Havia dedicação e empenho em plantar cana e fazer filhos na cunhada, nas comadres, nas moradoras das redondezas, nas escravas...
Felisbino Mendonça de Vasconcellos foi senador do império e amigo do imperador Pedro II. A esposa por ser estéril, resignava-se com a sorte de criar os filhos bastardos que o marido trazia para casa, acompanhados das respectivas mães. Sabe-se que foram criados trinta e seis dentro da casa grande. A caçula nasceu depois da morte do pai.
Cedo, mal o sol havia clareado, Felisbino foi avisado que chegara ao Porto de Galinhas, a meio caminho da Vila do Cabo de Santo Agostinho, um barco trazendo mercadoria africana de primeira qualidade. A cavalo, junto com amigos, também senhores de engenhos, o advogado, senador do império, produtor rural, senhor de muitas terras e escravos, iria cometer mais um ilícito, compraria um lote de escravos aos contrabandistas. Depois da partida dos cavalos, uma canoa a vela desceu o rio Una para trazer a mercadoria para os engenhos. O mau cheiro do navio era insuportável. Os negros foram desembarcados, lavados com água avinagrada e sabão preto. O odor de vômito, fezes e urina estava impregnado em seus corpos. Os panos que os cobriram durante a viagem foram queimados. Estavam todos nus e acorrentados. Mas a beleza de Nana era maior que a adversidade e Felisbino se apaixonou imediatamente pela jovem, negra como azeitona madura, alta, bunda e peitos grandes e empinados, vulva pequena sob escassos pelos pubianos. Os dentes brilhavam como colar de pérolas. O olhar severo transmitia a serenidade do seu interior. O lote se compunha de dois machos e uma fêmea. Felisbino teve que abrir a burra para arrematar. Apesar de nunca ter aprendido a falar português, Nana estava totalmente integrada à rotina da casa. Por sua ascendência nobre, não se adaptou ao trabalho no eito e foi destinada aos serviços na casa grande, entre eles ser fêmea do seu senhor, com quem teve vários filhos. O “zelo cristão” empenhado em salvar aquela alma das garras de satanás, batizou Nana com o nome católico de Manuela Rosa do Livramento.
- Paschoal
Vulcões, terremotos, maremotos, tsunamis e outros fenômenos naturais são fáceis de enfrentar se comparados à fúria bestial da fome. As mais de novecentas ilhas do arquipélago das Filipinas são incapazes de produzir o alimento necessário a toda população de crescimento exponencial. Segundo filho de família numerosa, Paschoal se dedicava com afinco aos estudos. Precisava aprender as técnicas de manipulação para produzir o pó utilizado na cosmética mundial. Muito cedo teve que deixar a aldeia onde nascera para vir tentar a vida em Manila e junto com outros jovens conseguiu empregar-se numa fábrica de pó de arroz. Trabalhavam desde as primeiras horas do dia até bem tarde da noite. Durante o dia recebiam duas tigelas de arroz cozido em caldo de peixe, uma pela manhã e outra à tarde, acompanhadas de chá verde. Quando saiam do trabalho, iam comer num restaurante perto do quarto alugado onde moravam, em troca do serviço de limpeza. Carne de porco, batata, broto de feijão, sobras de biscoitos e aguardente forte que lhes acalentava o sono povoado de sonhos com uma vida melhor na Europa ou nos Estados Unidos, onde, um dia desses, instalariam uma fábrica de pó de arroz. Mais de ano havia passado quando os amigos Paschoal Omanguim, Damacio Tun Bun Kun e Romão Garay embarcaram num navio cargueiro para realizarem o sonho de suas vidas. Quatro meses de sol e mar, com apenas uma escala de alguns dias na África do Sul e o navio fundeou na Baia de Guanabara, primeira escala nas Américas. Estavam no Rio de Janeiro. Tomaram um escaler e vieram conhecer o cais do porto, a cidade. Era tudo muito bonito, as casas, o povo, a paisagem. O calor reconfortante, as moças bonitas do passeio público... resolveram. Ficariam por aqui mesmo, pois devia ser tão bom quanto New York ou Paris. Desembarcaram as malas e foram se instalar no Campo de Santana, próximo ao Morro do Castelo, no centro velho do Rio de Janeiro. Ali fariam funcionar a primeira fábrica de pó cosmético do Brasil.
- Ascilina
Sentada na escadaria da capelinha de São Francisco, Apayê-tê via todos os dias as crianças brancas brincarem no entorno do templo. Frei Bonifácio, homem bondoso e paciente visitava regularmente a tribo dos Tupiniquins bem próxima a Vila de São Cristovam, primeira capital de Sergipe. Reunia as crianças e contava-lhes histórias do menino Jesus que como eles, era manso de coração e gostava de todas as criancinhas do mundo. Era também o menino Jesus que através do frade fazia o convite permanente para que eles fossem à igreja, aprender a rezar para salvar suas almas do fogo do inferno. Apayê-tê tinha medo do fogo do inferno, por isso, todo domingo vestia o camisolão de chita e ia sentar-se nos degraus da capelinha. Um dia resolveu entrar. Era tudo muito bonito, mas ela não entendia o que falavam. Por que as pessoas não índias não sabem falar direito? Por que não entendem quando se falam com elas? Havia uma mulher que chamou Apayê-tê e falou com ela em sua língua. Ela sim sabia contar histórias bonitas e Apayê-tê resolveu ficar. Nesse domingo não voltou para a aldeia. Pela manhã uma irmã de sua mãe veio falar com a mulher e deu permissão para que Apayê-tê ficasse morando em São Cristovam. Solteira, sem filhos, Maria Anunciada da Fonseca, tratou de adotar a indiazinha e de dar-lhe o nome cristão Ascilina Esmeralda da Fonseca, para que ela agora “sob o manto protetor da Santa Madre Igreja” estivesse livre das tentações do inimigo e das práticas demoníacas dos Tupiniquins aos quais, jamais tornaria a ver. Pertencente a Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, Ascilina viria para o Rio de Janeiro, cidade de origem de sua “protetora”. Os princípios cristãos foram também ensinados a Ascilina por outra madrinha, uma índia Guarany, nascida no Paraguai, la señora Francisca Martinez de los Reyes (Panchita), juíza da ordem terceira, solteira, de formação rígida e fé inabalável. Moravam no Morro do Castelo, bem próximo à fábrica de pó de arroz dos filipinos que por serem católicos, freqüentavam a mesma igreja. Paschoal e Ascilina se enamoraram desde a primeira vez que seus olhos amendoados se cruzaram.