A MINHA ORIGEM I

Quase nada se tem registrado sobre meus ancestrais maternos, sabe-se apenas o que eles foram e o que fizeram a partir do momento em que se fixam no Brasil, excetuando-se Ascilina, índia Tupiniquim, nascida em Sergipe e como diziam, “pegada a dente de cachorro”.

O Brasil não tem memória escrita. Todos os registros de imigrantes são falhos e sobre os escravos, a República mandou “queimar para apagar a mancha de ter sido escravagista”, nas palavras de Rui Barbosa então Ministro de Justiça. Por outro lado não havia obrigatoriedade de registro da entrada de portugueses, portanto as origens de Pedro de Barros e de Antonio Rodrigues da Rocha (ancestrais paternos) também se perdem na névoa do tempo. Espero que eu tenha conseguido decodificar os momentos e situações vividos por eles e que estão gravados no meu DNA.

Eu acredito (sem ainda poder provar) que, de alguma forma, tudo o que nos acontece fica gravado em nosso genoma e que nós transmitimos aos nossos descendentes as características e vivências nossas e dos nossos

A N C E S T R A I S

– Antonio e Feliciana.

(Antes dos bisavôs paternos - Hermínio, Mathildes, Pedro e Enedina.)

Depois do esforço sobre humano dos negros nas galés dos barcos rebocadores para realizarem as manobras de atracação, o veleiro fundeou.

A Vila de Porto Calvo estava fervilhando com a chegada, tão ansiosamente esperada, desse veleiro português abarrotado de mercadorias do reino que seriam negociadas nas terras alagoanas, tão distantes da capital do império e tão carente dos gêneros finos somente produzidos na Europa.

Impecável, vestido com casaca, cartola, luvas de pelica, polainas de cetim e bengala com castão dourado, o jovem Antonio atravessou a prancha que ligava o barco ao porto praticamente de um salto. Havia jovialidade em todos os seus gestos e foi com a mais sincera mesura que cumprimentou a moça Feliciana, pouco mais que menina, que da ponta da calçada, observava o movimento, protegida do sol pela sombrinha de renda e cabo longo conduzida por escrava, talvez da mesma idade de Sana, (corruptela de sinhá Ana) como Feliciana era conhecida por todos e sob a vigilância da escrava Ignacia, sua ama de leite e cão de guarda desde que a mãe morrera.

Sana considerou atrevimento descabido o gesto do desconhecido e segurando o vestido azul, celeste como seus olhos, deu-lhe as costas, ignorando o cumprimento.

Antônio seguiu-a com o olhar e quando ela entrou na igreja, deixando as escravas do lado de fora (negro não podia entrar nos templos dos brancos) aproximou-se e disse do seu encantamento por tão bela moçoila.

Ofendida em seus brios de moça donzela, Feliciana deixou a igreja quase correndo e voltou para casa, onde relatou, nos mínimos detalhes, todo o ocorrido ao seu severo e honrado pai, o senhor Pedro de Barros, comerciante e vulto de grande influência na próspera Vila de Porto Calvo, talvez a mais importante das três vilas alagoanas naquele já obscuro 1840, ano em que coroaram dom Pedro de Alcântara, como segundo imperador do Brasil.

Antônio contratou um despachante aduaneiro para desembaraçar suas mercadorias e também para conseguir-lhe um galpão perto do porto, onde ele pudesse residir e abrir loja para negociar as mercadorias que doravante importaria de Portugal e da Inglaterra.

O galpão escolhido pertencia ao também português, Pedro de Barros, pai de Sana.

Apesar da diferença das idades, os dois tornaram-se amigos desde a primeira conversa que tiveram.

Pela influência do velho Pedro, Antonio comprou um casal de escravos. A mulher cuidaria da casa, da comida e da roupa. O homem tornar-se-ia o braço direito no comércio em grosso que tinha tudo para prosperar. Antonio pretendia e conseguiu ser importador exclusivo para as Alagoas, dos azeites, bacalhaus, tecidos, vinhos, manteiga, paio e toucinho defumado que só a Europa fabricava e de cujos produtos o Brasil era tão carente.

Como prova da amizade e de mútua confiança, Antônio convidou Sô Pedro para tomar, em sua casa, um caldo verde, preparado por ele próprio, e do qual ele gabava ser o melhor do mundo, servido com pão preto, azeite e vinhos feitos por seus parente na região do Dão, em lagar de pé.

Para retribuir a cortesia, Antônio foi convidado para no próximo domingo, depois da missa, ir à casa do seu novo amigo, deliciar-se com a galinha à cabidela, especialidade da escrava Ignacia, por cuja posse, Sô Pedro já havia rejeitado verdadeiras fortunas.

O almoço já estava servido quando Feliciana chegou à sala ricamente mobiliada.

Recuou diante da desagradável surpresa.

Ainda lhe martelava na cabeça o gesto atrevido do moleque português (como ela passou a referir-se a ele desde o episódio da mesura).

Sô Pedro mandou chama-la para que viesse fazer as honras da casa no lugar de sua falecida mãe.

Contra gosto, mas em obediência cega à vontade do pai, Sana sentou-se à mesa. Tomou só um pouco do consumê servido em chávena de porcelana chinesa com talher de prata inglês.

Durante as refeições a língua falada era o francês, que Antônio não dominava, e foi em francês que Feliciana revelou para o pai, ter sido aquele moleque o autor da façanha.

Pedro tentou dissuadi-la daquela ideia, tecendo os maiores elogios à pessoa do estrangeiro, no qual antevira um bom partido para casar a filha. Por ser viúvo e adiantado na idade, Pedro sabia que não duraria muito tempo e queria deixar a filha amparada.

Antes do fim do almoço, Sana pediu permissão ao pai para se retirar, alegando forte dor de cabeça. Havia frieza na voz e nos gestos quando despediu-se de Antônio.

Depois do licor de pitanga (outra especialidade de Ignacia) e do café colhido no sítio da família, enquanto preparavam os charutos que Antônio dera de presente ao anfitrião, o jovem como que conhecendo a intenção do velho, falou do seu desejo em desposar dona Feliciana.

O casamento foi acertado para o dia de S. José, dali a dois anos.

Apesar da permissão do pai para conversar com o noivo, sentados na sala de visitas do casarão com todas as janelas abertas e a presença constante das escravas Ignacia e Josepha, Feliciana pouco ou nada falava. Antônio contava historias de sua terra distante e fazia planos para, depois de casados, levá-la para conhecer-lhe a parentela.

Enxoval pronto, corridos os banhos, o casamento realizou-se com toda pompa e circunstancia na igreja matriz de Porto Calvo no dia 19 de março de 1842.

- Não mudarei meu nome. Não tirarei o nome honrado de meu pai para usar o nome de outro homem.

Sentenciou Feliciana Maria de Barros, e cumpriu.

No dia cinco de setembro de 1844, nasceu o primeiro filho do casal que recebeu na pia batismal o nome de Hermínio Rodrigues da Rocha. (Antonio deixou de fora do nome do filho, o nome honrado do avô materno. Vingança?)

Hermínio deu muito trabalho para nascer, mas Ignacia era perita na arte de partejar e o meninão pouco ou nada sofreu.

Alguns dias depois, quando a noite chuvosa ia alta e o frio tomava conta das ruas de Porto Calvo, um vulto se esgueirava pelas sombras deixadas pela luz difusa dos lampiões, carregando um pequeno fardo que foi deixado na varanda da casa do senhor Pedro de Barros.

Nessa noite o pequeno Hermínio estava inquieto, nem ele nem ninguém conseguia conciliar o sono.

Antônio e o sogro, na sala, conversavam em voz baixa, vez por outra se ouvia um vagido, aquele som característico de recém nascidos.

O fato estranho era que o som vinha do alpendre e não do quarto onde Ignacia tentava por todos os meios fazer com que mãe e filho dormissem sossegados.

Com um castiçal na mão e um punhal na outra, Antônio foi verificar o que estava acontecendo do lado de fora, acompanhado de perto pelo sogro. Genésio, o escravo, ia à frente com um porrete.

Qual não foi a surpresa ao verem, entre panos, uma criancinha ainda suja dos fluidos do parto junto com um bilhete que dizia tratar-se de doação vez que a mãe, solteira, jamais poderia criar a filha e que eles, cristãos católicos de bom coração, recentemente abençoados pela graça de um filho, dariam guarida àquela criaturinha infeliz.

Banhada e bem agasalhada a menina foi levada para o quarto, mamou na mãe adotiva e foi deitada junto ao irmão de leite, cuja agitação cedera desde que a menina entrara no quarto nos braços de Ignacia.

A paz inundou a casa como um perfume bom e todos, senhores e escravos, dormiram tranquilos até o dia seguinte quando o sol já ia bastante alto.

No domingo, depois da missa, a menina recebeu o nome de Mathildes Rodrigues da Rocha em homenagem à mãe de Antônio.

No ano seguinte nasceu o segundo filho do casal, que recebeu o nome do avô materno, Pedro de Barros, acrescido do Rocha paterno.

Hermínio, Mathildes e Pedro cresceram fortes e receberam a educação austera que pautaria suas atitudes em tudo o que fizeram durante toda vida. Eram inseparáveis nas brincadeiras e Sô Pedro deu um escravo de presente para cada um dos netos.

Bernardo, que foi dado de presente a Hermínio, depois de adulto viria ser o faz tudo de Sô Mino (apelido caseiro que acompanhou Hermínio durante toda vida).

Antônio contratou um professor para ensinar aos três filhos, gramática, física, matemática e geografia.

Mãe Sana, como passou a ser chamada depois que pariu, foi contra que Mathildes aprendesse a ler.

- Para que vai servir tanto estudo para uma mulher? Basta a educação que lhe damos.

Mesmo contra a vontade materna, Hermínio ensinou à irmã a ler e a escrever em português e no francês que todos da casa eram obrigados a falar durante as refeições.

Esse costume foi mantido até os bisnetos de mãe Sana.

Depois de adultos, Hermínio dedicou-se ao comercio de gado e Pedro deu continuidade ao serviço do pai, tornando-se importador conhecido e respeitado em todo reino, embora não fosse mais exclusivo.

Com toda pompa e circunstância, casaram-se na mesma cerimônia Pedro de Barros Rocha com Enedina (filha de um senhor de engenho de Penedo) e Hermínio Rodrigues da Rocha com Mathildes Rodrigues da Rocha, sua irmã adotiva, sua companheira de infância, sua colega de diabruras e molecagens a quem, ele chamava sempre de Dona, para que ela nunca esquecesse que era a dona de sua existência, a razão de seu viver, seu único e verdadeiro amor.