JACQUES HUBER, UM NATURALISTA DE ESCOL

                                                  Sérgio Martins PANDOLFO

"Deus quere, o homem sonha, a obra nasce"
Fernando Pessoa

    O Museu Paraense “Emílio Goeldi”, que os paraenses orgulhosamente chamamos simplesmente de Museu, promove periodicamente exposições científicas sobre assuntos relevantes ligados às suas áreas de atuação, como é o caso, só para pôr exemplo, a mostra intitulada – “O Homem e a Pedra: a Pré-história na Amazônia”, resultante de escavações arqueológicas realizadas na Serra Norte, em Carajás, no Estado do Pará, que permitiram descobrir que o homem chegou naquela região há, no mínimo, nove mil anos.
      Exposições permanentes nas áreas de etnografia, zoologia, arqueologia e botânica são disponibilizadas pelo Museu como parte das atividades próprias desse centro de pesquisas no prédio da “rocinha”, jóia arquitetônica da “gostosa Belém doutrora” há pouco totalmente restaurado e revivificado, inclusive com detalhes de pintura e ornatos que remontam à sua originalidade, após uma permanência de 10 anos de desativação, causada por um incêndio. Um outro setor em que se há de pôr destaque e relevância é sua Biblioteca, que possui coleções e raridades únicas, mundialmente referenciadas.
     Nosso Museu, um dos mais importantes do País e de reconhecimento mundial, tem a nomeá-lo um de seus cientistas mais ilustres, o suíço Emílio Goeldi; mas outros nomes, de valor equivalente, precisam ser dados a conhecer e admirar pelas novas gerações, como é o caso de Jacques Huber, conterrâneo de Goeldi e seu lugar-tenente nos primórdios da Instituição, sucessor e um dos responsáveis pela implantação de unidades e atividades de maior expressão.
      Traçar um perfil, ainda que aligeirado, desse insigne cientista suíço, que aqui aportou ao final do século XIX, recém-saído dos embates de sua formação acadêmica não é, por certo, incumbência das mais singelas, não só pela circunstância de haver nosso biografado perecido há muito tempo e não restarem descendentes entre nós, tornando a pesquisa dos dados relativos à sua biografia, envoltos pela pátina do tempo, mais laboriosa, como também pela grandeza da obra que esse notável cidadão, forâneo por nascimento, mas amazônida por ação e adoção, realizou nesta terra, em sua relativamente curta, mas profícua existência terrena. Por isso que, desde já, penitenciamo-nos pelas falhas e omissões porventura aqui cometidas.
      Jacques Huber nasceu na Suíça, no cantão de Schaffhausen, aos 13 dias de outubro de 1867. Cumpriu toda sua jornada escolar convencional na terra natal, tendo desde cedo despertado sua atenção para as ciências da natureza, em especial para o atinente às espécies vegetais exóticas, razão por que, concluído o ciclo de formação, partiu para Montpellier, na França, importante centro universitário de então, a fim de freqüentar o afamado curso do Prof. Flanhant, no qual obteve sólidas credenciais e robustos conhecimentos. Huber contava com pouco mais de 25 anos, conquanto fosse já um botânico respeitado, quando, atendendo ao chamamento de Emílio Goeldi, contratado, em 1894, pelo Governador Lauro Sodré para dirigir o Museu Paraense, deslocou-se para estas plagas inóspitas da magna floresta tropical, para uma cidade que vinha de ser a atalaia do Norte e começava de mostrar sua pujança, seus encantos aos olhos do mundo admirado e curioso, o fascínio de sua natureza e de seus viventes.
      "Quando aceitou a incumbência de organizar o Museu Paraense, que lhe confiou o presidente Lauro Sodré, com propósito de imprimir-lhe objetivos científicos, cuidou Emílio Goeldi, suíço, de cercar-se de colaboradores de comprovado saber. Assim, para dirigir a seção referente à Botânica escolheu um patrício, Jacques Huber”, a redizer o historiador Carlos Rocque. E foi perfeito o entendimento entre os dois naturalistas, o que se deveu não só à origem de ambos como, e principalmente, ao amor às ciências naturais e ao fascínio pela região amazônica que a ambos paulatinamente acometia.
     O museu, que hoje ostenta o nome de Emílio Goeldi, vem desde os tempos do Império, quando o naturalista mineiro Domingos Soares Ferreira Penna, radicado no Pará e tomado de amores pela terra adotiva organizou, em 1866, uma associação cultural, a Sociedade Filomática, a fim de recolher e preservar coleções etnográficas e arqueológicas, que no ano seguinte passou a chamar-se Museu Paraense. Aponta-se, aqui, curiosa e feliz coincidência: Cria-se o Museu Paraense no mesmo ano do nascimento de seu futuro reformador e diretor – 1867. Cinco anos passados Ferreira Penna conseguiu converter essa sociedade em uma repartição provincial, dando prosseguimento ao trabalho, sempre dificultado pela escassez de recursos e de cientistas; a prosperidade econômica proporcionada pela exploração da borracha só viria solidificar e ampliar as pesquisas e aquisições do Museu de Ferreira Penna mais tarde, quando o governador Lauro Sodré inquietando-se com a pouca eficiência do Museu Paraense e conhecendo bem das potencialidades e dos serviços que o mesmo poderia prestar, encampou-o; permaneceu na direção o mineiro Ferreira Penna, ocupando a coleção, entretanto, locais inadequados, em dependências de outros organismos.
      Em 1895 o Museu passou a ocupar o terreno da “rocinha” de propriedade de Bento José da Silva Santos, que ali fixara residência em 1879, construindo o belo edifício neoclássico que se mantém até nossos dias. Ao ocupar a antiga rocinha começaram as obras de implantação do Parque Zoobotânico. Goeldi teve o cuidado de planejar tecnicamente as linhas futuras do horto, a construção de gaiolas, tanques e cercados, contando com o auxílio abnegado e resoluto de Jacques Huber, que planejou todo o Jardim Botânico. Toda a quadra, já insuficiente, foi sendo agrandada com a anexação de terrenos contíguos, sucessivamente adquiridos pelo Governo, declarando-os de utilidade pública, ampliando, assim, o espaço do Horto e do Zoológico. Ainda em 1895 Huber iniciou a implantação do Herbário do Departamento de Botânica, especializado em coleções de plantas amazônicas. Em 1907, vítima de pertinaz enfermidade, Goeldi retornou à sua pátria em busca de recursos médicos para seus males, sendo substituído por Huber, que assumiu, a 22 de março desse ano, a direção daquele centro de pesquisas e estudos já exuberante, mantida até sua morte, ocorrida em Belém em 1914.
      No período da administração de Goeldi e Huber o Museu foi reestruturado e ganhou o respeito internacional. Foram desenvolvidas pesquisas geográficas, geológicas, climatológicas, agrícolas, faunísticas, arqueológicas, etnológicas e museológicas. O papel educacional do Museu foi reforçado com o parque zoobotânico – da lavra de Huber -, publicações, conferências e exposições.
      Em 1911, ainda na gestão de Huber, é inaugurado, no centro do Parque, o Aquário, com amostras de peixes ornamentais amazônicos, espécies de importância econômica e curiosidades, dando quase que linhas definitivas ao Museu, que, num crescendo de reformas e melhoramentos que se fizeram viria a ser considerado, já em 1940, o melhor do País.
      Huber era um cultor das ciências e das letras. Ao vir para Belém dominava perfeitamente o francês e o alemão, oficiais em seu país de origem e línguas principais de ciência e erudição à época, ademais do inglês, que começava de despontar como tal, e manejava bem o latim, idioma que ainda cristalizava os documentários do conhecimento científico, máxime no campo da Biologia, da Medicina, da Botânica e das ciências naturais. Aqui chegado, tratou de aprender e em seguida adestrar seus recursos idiomáticos no português, ampliando, destarte, sua poliglotia. Tanto assim é que grande parte de seus escritos de pesquisa de campo foram publicados em escorreito vernáculo camoniano, nas edições do Museu. Jacques amava este torrão parauara, com suas coisas e suas gentes, razão por que aqui se radicou até o final de seus dias.
      Com todo o tirocínio auferido e o conceito granjeado na sociedade local, participando de suas manifestações sociais e culturais, seu nome era cogitado sempre que alguma iniciativa se fazia tomar nesses segmentos. Assim é que Huber participou, juntamente com mais 58 personalidades daquela Belém doutrora, como membro fundador, da instalação do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Pará, em sessão solene ocorrida no Teatro da Paz, a 3 de maio de 1900, tendo inclusive integrado a primeira Diretoria da entidade como membro da Comissão de Etnografia.
      Fica-se a pensar, muitas vezes, como um homem de ciência, ambientado num centro europeu dos mais evoluídos, naquele comenos, tenha transposto o mar-oceano que nos separa, a fim de vir fixar-se em uma cidade ainda lendária e mal conhecida no Velho Mundo; seria, talvez, por ambição financeira ou sede de fortuna? Ou, quem sabe, por pura cupidez científica? Certamente não. Percebia-se, mesmo, tendência migratória muito comum, nessa fase, que nos brindou nomes de grande expressividade em diversos segmentos do humano saber, provindos de centros maiores do País e do exterior, como são exemplos Paul Le Cointe e o próprio Emílio Goeldi, Adolfo Ducke, Emília Snethlage, Henry Coudreau, o mineiro Ferreira Penna e muitos luminares da medicina e de outras áreas, formados nas faculdades do Rio, Bahia e São Paulo.
       Cremos ser pertinente e oportuno repetir aqui o que já referenciamos alhures, a fim de explicar tal ocorrência, hoje de difícil compreensão e aparente paradoxo.
Por tudo que apresentava, então, Belém destacava-se como uma das mais importantes, promissoras e belas capitais do País. Vivia-se o glamour da Belle Époque, hoje de nostálgica memória, e tudo se fazia mercê do fastígio da borracha e da precedente abertura dos portos da Amazônia à navegação internacional. O rush gomífero era o fundamento e o sustentáculo do bem-estar material e das finanças prósperas do Estado. O comércio fazia-se livre e direto com os grandes centros produtores de bens e serviços das mais importantes capitais européias; a cidade europeirizara-se, mesmo no que concernia aos hábitos, usos e até nas edificações, razão por que nossa capital era apontada como a petite Paris. Esse processo de crescimento e desenvolvimento consolidara-se e agrandara-se notavelmente no período de 1895 a 1915 (época em que aqui conviveu), correspondente ao da administração do intendente Antônio Lemos, sem ponta de dúvida o mais realizador e fecundo gestor municipal de todos quantos já exerceram, em Belém, tão importantes funções, abrindo ruas e avenidas de largueza e boniteza que a todos encantava (Nazaré, São Jerônimo, v.g.); criando e arruando bairros inteiros (o de Marco da Légua, p.ex.); urbanizando e alindando praças (República, B.Campos), instalando serviços de transporte público avançados (bondes elétricos); providenciando o fim adequado do lixo urbano (forno crematório); promovendo a adequada, precisa e preciosa arborização da cidade com mangueiras, que lhe dá característica e apelativo próprio: Cidade das Mangueiras; urbanizando a inexpressiva doca que é hoje o principal cartão-postal belenense, o Ver-o-Peso, próximo à qual instaurou o primeiro Serviço de Verificação de Óbitos e Necrotério; criando postos de saúde por toda a urbe e instalando serviços de Vigilância Sanitária e Epidemológica; instituindo o serviço de Luz e Força, um dos primeiros em território pátrio, com postes de ferro fundidos na Europa, artísticos e ornamentais.
      Pertinentemente cabe, a respeito, aludir às sentimentais considerações que faz Mário de Andrade, ao seu amigo, poeta Manoel Bandeira, em carta escrita na 3ª década do século recém-findo: “Manu, não sei que mais coisas bonitas enxergarei por esse mundo de águas. Porém me conquistar mesmo, a ponto de ficar doendo no desejo, só Belém me conquistou assim. Meu único ideal, de agora em diante, é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquele terrace em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí. Você que conhece o mundo, conhece coisa melhor do que isso? Me parece impossível. Olha que tenho visto coisas bem estupendas.(...). Porém, Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra. Quero Belém como se quer um amor”.
      Não era menor o fascínio que a cidade exercia nos campos das Artes, das Letras e da Música. O Teatro da Paz era o mais faustoso e avançado tecnologicamente do País. Dispunha-se de jornais de primeira grandeza, bancos de representação e atuação internacional, a garantir suporte financeiro e creditício, estação de rádio e escolas suficientes, inclusive no nível superior, clubes sociais e esportivos que dignificavam nosso pretérito sócio-cultural.
      Fica fácil, pelo exposto, compreender, desde logo, por que aquele jovem cientista, cheio de conhecimentos e esperança, aqui deitou raízes, constituiu família e permaneceu até ao final de sua frutuosa existência, ceifada, prematuramente, em pleno apogeu de seu minitério, aos 47 anos.
      Huber viveu a fase esplendorosa da borracha, mas pressentiu e viu ir-se configurando, paulatina e inexoravelmente, a débâcle de nossa Hevea; mas lutou denodadamente contra ela. O ardor com que defendia os interesses pátrios e regionais era de impressionar, pelo que muitos que o viam argumentar criam-no por filho destas plagas. Após percorrer as plantações de seringueiras asiáticas, foi ele o primeiro a constatar e noticiar que, em suas viagens de estudos por terras exóticas, comprovou que a borracha do Ceilão, Malásia, Sumatra e Java era idêntica à brasileira (Hevea brasilienais) registrando isso em relatório circunstanciado ao governo do Estado, o que fez deflagrar – só então! – o alarme e a reação. Demasiado tarde compreendera-se a realidade.
      Representou o Pará na exposição de borracha de Londres e Turim (1911). Na exposição de 1912, em Nova Iorque, já possuído de domínio e saber das coisas ligadas à economia amazônica, alicerçada máxime na extração e produção gomífera, às vésperas do soçobro aniquilador proporcionado pela concorrência avassaladora dos seringais cultivados, de custeio mais baixo, defendeu ardorosamente a economia extrativista de nossa região. Tudo fez e a tudo opôs resistência tenaz a fim de sofrear a derrocada de nossa goma, com seu cortejo de ruínas. Seu magnânimo, mas combalido coração deixou de bater aos 17 de fevereiro de 1914.
       De sua vasta obra científica disponibilizada aos pósteros registramos os seguintes trabalhos: ”Viagem em companhia do Dr. Emílio Goeldi ao Contestado” (1895); “Excursões à Ilha do Marajó” (1896); “Viagem ao Rio Capim” (1897); “Viagem ao Ceará” (1897); “Viagem ao Ucaiali e Hualaga” (1898); “Viagem a Santarém e Monte Alegre, ao Salgado e ao Rio Guamá” ( 1898); “Viagem ao Rio Aramã (Marajó)” (1900); “Excursão a Sto. Antônio do Prata” (1903); “Viagem ao Rio Purus e Baixo Acre” ( 1904); Aperçu Géographique de la Region du Bas Amazone, ensaio; Sur lês Champs de l’Amazone inférieur e leur origine, apresentado ao Congresso Internacional de Botânica de Paris; La vegetation de la vallé du Rio Purus; “Contribuição à geografia física dos furos de Breves”; Arboretum Amazonicum; “Materiais para a flora amazônica”; “Madeiras Amazônicas”.
Este o retrato, em exíguas dimensões, de um cientista de escol que amou e honrou o Pará e o Brasil.


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* Excerto do discurso de posse do autor da Cadeira nº 22 do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, ocorrida a 14 de março de 2005.

Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 16/06/2009
Reeditado em 22/11/2011
Código do texto: T1651710
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