Mistério do meu sonho

Em abril de setenta e um, para atender à necessidade que sentia de escrever, um sonho antigo, recomecei a estudar. Tinha abandonado os estudos quando me casei. Meu marido não consentiu que eu continuasse, além disso, engravidei logo. Nove meses depois nascia meu primeiro filho. Quando ele fez um ano e quinze dias, nasceu a minha filha. Nessas circunstâncias, tive de abandonar tudo que tivesse de fazer, pois a missão que estava à minha frente, era a mais importante da minha vida: criar e educar meus filhos. Como à época já estavam crescidos e bem em todos os ítens de  sua formação, achei que poderia dispensar algumas horas do meu dia para completar o meu grande sonho, estudar, escrever e vencer na vida.

Quando terminei o primário, diante da minha insistência em querer continuar os estudos, com certa dificuldade, meu pai levou-me para São Luís, a capital do Maranhão. Morávamos em Itapecuru-Mirim. Fiz os exames de admissão no Colégio São Luís, uma escola particular, pois não havia mais vagas nas escolas públicas. Fui aprovada e muito orgulhosa comecei o ginásio. Estudava à tarde. Um ano depois senti necessidade de trabalhar para arcar com as minhas despesas. O que ganhava dava apenas para pagar o colégio, a condução e comprar o material escolar. Geralmente fazia hora extra aos sábados e com o dinheiro comprava roupas e sapatos. Era muito feliz apesar dos problemas financeiros. Um ano e meio depois, casei-me com o dono da loja onde trabalhava. Tive então de abandonar os estudos e só depois de nove anos, após o AVC sofrido pelo  marido, voltei às salas de aula. Mais amadurecida e com uma vontade mais forte de conseguir o meu objetivo.

Naquele ano eu me angustiava pela saúde do  marido, as dificuldades para criar dois filhos sozinha, a violência no mundo inteiro, mas não deixava de ter esperança e buscar saídas. Foi nessa época que cheguei à conclusão de que o sucesso ou fracasso da minha família dependia apenas de mim. Pedia a Deus que me desse forças para dar aos meus filhos uma educação segura, neste mundo cheio de violência, cujos fatores que as desencadeiam são muito complexos e variados, mas que, com certeza, passam pela falta de afetividade e educação familiar.

Em busca de aprimoramento assistia a todas as palestras oferecidas pela faculdade ou pela escola de meus filhos. Eram momentos ricos nos quais tinha oportunidade de analisar o meu procedimento em relação à educação deles. Queria corrigir determinados métodos e ao ouvir especialistas dedicados ao estudo de problemas educacionais, sentia-me renovada e mais capaz de conduzir com segurança a orientação de duas crianças.

O apoio de novas amizades conquistadas em Itajaí foi fundamental para minha adaptação à nova realidade. O ano de 1971 foi um dos mais difíceis que tive de enfrentar. Mas, foi também, ali, aos 27 anos, que descobri o meu potencial para superar problemas sérios. As dificuldades de adaptação a uma cidade longe da família. Os problemas financeiros, a luta para conquistar minha independência, que sempre soube, só viria através do estudo e de muito trabalho. A doença de meu marido e a minha responsabilidade diante da educação de meus filhos, tudo, acumulado num ano de muita luta e busca de soluções que muitas vezes julguei impossíveis de superar. Mas nunca desisti da luta.

Em meio a tantos problemas, trabalhava na loja, estudava, fazia cursos, assistia reuniões, acompanhava o estudo dos filhos, chorava as saudades da terra e da família, mas não desistia de nada. Às vezes precisei adiar um objetivo, mas logo que podia o retomava e continuava a luta. Foi em agosto de 71, que fiz a minha primeira publicação no jornal “O Sol” e continuei a publicar até mudar-me para São Luís.

No início do mês de dezembro de 71, soube o resultado dos exames do clássico, passei em todas as matérias, menos em filosofia e diante da impossibilidade de conseguir uma bolsa para fazer o Curso de Letras, relaxei um pouco adiando o sonho de começar a faculdade. Mas a jornada estava no fim. Era uma questão de tempo, eu sabia que daquilo dependia a minha vida profissional.

No ano seguinte os problemas continuaram. Em março, aproveitando a grande campanha de alfabetização pelos cento e cinqüenta anos de Independência do Brasil, recrutei alunos para uma turma do MOBRAL e comecei alfabetizá-la. Devido aos problemas financeiros vendemos a loja, trocamos as crianças do colégio particular para o público, quatro meses depois levamos de volta, pois estudavam no terceiro ano o que tinham aprendido no primeiro e começaram a regredir. Estudei Filosofia, fiz a prova, e comecei a estudar para o vestibular.

1973, o ano da redenção. Passei no vestibular. Arranjei um emprego no SESC, comprei uma casa pelo BNH, continuei com os alunos que alfabetizei, agora na Educação Integrada, programa de 1ª à 4ª em 10 meses. Mas, teria de parar ao final do curso, porque a faculdade era à noite. Trabalhava no SESC à tarde e pela manhã cuidava da casa e dos filhos. O dinheiro que ganhava não dava para pagar uma empregada. Além de trabalhar o dia inteiro, tinha de fazer todo o trabalho caseiro. Mas, nada me fazia desistir de estudar.

Atrapalhei-me com a matéria ministrada ao sábado. O horário das aulas coincidiam com o do trabalho. Por isso, fiquei em dependência, por falta, em Inglês. Fiz o concurso da prefeitura, passei e comecei a lecionar pela manhã, no ginásio e à tarde no primário. Nosso padrão de vida caiu muito. Estávamos acostumados com a vida de comerciantes, agora dependíamos do meu pequeno salário para tudo. Precisei comprar roupas em São Paulo, para revender, e, assim complementar meus parcos rendimentos. Sonhávamos voltar para o Maranhão, na esperança de reconquistar a vida próspera que tínhamos, mas nossas finanças eram precárias. Eu queria muito voltar, mas só quando terminasse a faculdade.

1975, um ano difícil. Os filhos crescendo e as responsabilidades aumentando. A internação do marido em uma clínica para distúrbios nervosos. Uma cirurgia de emergência, onde retirei parte do meu único ovário, o outro já o tinha perdido havia sete anos. A venda da casa do BNH a compra de outra, para fugir das prestações altas. Sair da faculdade no meio das aulas para lecionar em colégio particular, tentando melhorar os rendimentos. O agravamento da saúde do marido. Licença sem vencimentos para cuidar dele, a necessidade de recorrer aos seus irmãos para pedir ajuda, tudo isso me fez tomar a decisão de voltar para minha terra, logo que terminasse o Curso de Letras.

Quase não acreditei no dia em que recebi a beca para minha colação de grau. Quantas barreiras ultrapassadas! Quanto nervosismo diante das responsabilidades assumidas e o receio do fracasso diante dos filhos. Tudo isso me deu forças para lutar com afinco. Lutar sem olhar para trás ou para os lados. Luta em linha sinuosa, cheia de altos e baixos, mas, sempre com um objetivo a atingir. Estava a um passo do ponto pré - estabelecido há cinco anos, quando resolvi voltar aos estudos. Estava no final do curso de graduação. Ter chegado até ali era um fator que me dava confiança e vontade de prosseguir e já fazia planos para o curso de especialização em Português.

Terminei o Curso de Letras em dezembro de 1976, aos 32 anos, com um filho de 13 anos, uma filha de 12, o marido inválido e doente aos 49 anos e estava ali, assumindo toda a responsabilidade do sucesso ou fracasso da minha família. Naquela cidade de onde saímos, em 1967, meu marido como grande comerciante, eu como dona de casa oprimida e controlada por um marido ciumento.

Chegamos de volta ao Maranhão em janeiro de 77 e trabalhei no magistério público e particular durante quase dez anos e desta maneira fui superando minhas angústias, trabalhando e estudando, em média 18 horas por dia.

A profissão que abracei dava-me subsídios para aprimorar a escrita a cada dia. Um diário iniciado em 71, hoje com 320 páginas, acompanha-me ainda, mas devido aos livros que escrevo constantemente, só o procuro quando quero desfazer-me de angústias e dissabores, que nem sempre tenho alguém que ouça e entenda, desvendando o mistério do meu sonho através de suas páginas amigas.

O medo do desconhecido em relação ao futuro de meus filhos, foi desvendado dia-a-dia com muito trabalho e dedicação. E hoje os vejo adultos e realizados, na mesma batalha pela vida como qualquer pessoa da sua idade e condição, num país que oferece poucas perspectivas. Um Administrador de Empresas e uma Odontóloga. O sonho de escrever vem se concretizando. Além dos livros publicados tenho quatro prontos aguardando uma oportunidade para serem impressos.

Benedita Azevedo
28 / 08 / 2005










 
Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 27/05/2006
Reeditado em 11/01/2017
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