1) Minha infância
Uma vez, uma pessoa muito querida me perguntou como foi a minha infância. De imediato, não consegui me lembrar de muita coisa. Sempre me foi dolorido recordar da minha infância, não foi uma época muito boa. E sendo assim, acho que a cabeça mesmo tratou de deixar tudo muito bem guardado, lá no fundo da memória. Hoje, vivendo feliz e realizado, consigo resgatar os episódios sem dores ou traumas, como belas recordações das dificuldades superadas.
Lembro-me do meu primeiro dia de aula. Eu tinha 4 aninhos quando entrei na pré-escola; logo fiz 5. Havia a Pré 1 e a Pré 2, ambas com a tia Cidinha.
Minha mãe me levou até a fila dos alunos e esperou que eu entrasse na sala de aula, certa de que eu choraria. Naquela época (e durante um bom tempo depois), tudo era motivo de choro para mim. Mas eu a surpreendi e adorei a escola!
Apesar de extremamente tímido, quando a professora perguntou quem sabia cantar alguma musiquinha, levantei a mão e fui à frente cantar Pombinha Branca. Ainda hoje, nem eu mesmo acredito nisso...
Quando contei, minha mãe não acreditou também. Lembro bem que precisei repetir várias vezes, contando detalhes. Mas ela sabia que eu nunca fui de mentir. Senti mesmo paixão à primeira vista pela escola.
Eu sofria quando perdia algum precioso dia de aula. Durante as férias, esperava ansiosamente o dia em que as aulas recomeçariam. Horas antes do início da aula, eu já estava me arrumando, tamanha a ansiedade.
Como consta em Memórias de Adriano, “o verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas.”
Estudei durante todo o Ensino Fundamental na Escola Estadual Alberto José Ismael, a três quarteirões de casa. Totalizei 10 anos lá. Fiz amizades eternas, que saudade...
Quando eu tinha 8 anos, eu gostava muito de copiar a matéria da lousa. Eu gostava de “escrever”. A professora me perguntou o que eu queria ser quando crescesse. Respondi “escritor” sem a mínima idéia do que era de fato “escrever”. Nem ao menos eu gostava de redação. Lembro bem da sua cara de espanto. Ela sabia que a minha habilidade maior era com os números, não com as letras. E disse que eu deveria fazer computação. Mas eu entendia ainda menos de computadores... Ela prometeu que algum dia me levaria no trabalho do seu filho para me mostrar um computador (coisa rara mesmo naquela época). Até ontem “esse dia” não chegou. Ironicamente, dez anos depois eu estava ingressando no curso de Ciência da Computação. Não que eu já entendesse de computadores...
A idéia de ser escritor passou rápido. Em seguida, quis ser professor. Estava vislumbrado pela beleza da arte de ensinar. É lindo saber e compartilhar. Mas meu pai foi fortemente contra quando lhe disse. Creio que ele esperava que eu fosse mais além. Hoje ele tem orgulho de eu ser professor universitário e pesquisador. Creio que fui mesmo um pouco além.
Eu adorava brincar de escolinha. Eu era o professor dos meus primos menores. Ficava a semana toda preparando exercícios e trabalhinhos para “brincarmos” no final de semana. Coitados! Eu juntava material e me esforçava para bolar tarefas legais, ou eles não topariam brincar comigo. Tinha lousinha, lista de chamada, livrinhos...
Quando cresci um pouco mais, fundava clubinhos com os meus colegas. Vários! O primeiro chamava-se Clubinho Havaí. Promovíamos reuniões e festas juninas. Depois formamos outros clubinhos de ciência para fazer experiências.
Por último, nos juntamos num seleto grupo em que cada um ensinava sobre um assunto, tipo uma mini-aula. Para poder participar, era preciso saber ensinar algo. Tinha aula de espanhol, cinema, cidadania. Era uma brincadeira muito intelectual!
Sempre gostei muito de estudar. Nasci numa família muito humilde, tanto financeira como educacionalmente. Meus pais não terminaram o Ensino Fundamental. Recentemente, minha mãe voltou a estudar e fez o supletivo dos Ensinos Fundamental e Médio. Mas eles sempre me incentivaram muito a estudar. Meu pai não queria que eu trabalhasse antes de terminar os estudos. Teimei em conseguir alguns bicos nas férias como vender laranja e pão caseiro na rua, trabalhar numa papelaria, mercearia. Mas era obrigatório ajudar nos serviços de casa e nos trabalhos do sítio, para a minha infelicidade.
Íamos de caminhonete para o sítio. Eu e meu irmão, na carroceria - ilegalmente. Eu ia sempre lendo um livro, e meu pai se irritava com isso. Enquanto tocava os bezerros, lia um livro. Entre um serviço e outro, lia um livro. Eu não entendia o motivo do meu pai detestar tanto aquilo.
A primeira vez que falei em público foi em 1990, numa pequena reunião de estudantes (da faixa de 6 a 14 anos) do Budismo. Eu havia sido o único estudante de Rio Preto selecionado para participar de um grandioso Festival Cultural em São Paulo. Então, me chamaram à frente para relatar minhas impressões e a decisão de participar representando os outros estudantes da cidade.
Lembro que só tive tempo de dizer que estava muito feliz com a oportunidade, antes das lágrimas começarem a rolar e a voz embargar. Eu não sabia mesmo o que dizer, então fui salvo pelas palmas. Todos pensaram que era um choro de emoção, mas era de vergonha mesmo...
Contando desse jeito, parece até que minha infância foi legal, mas não foi bem assim. Eu tinha medo e vergonha de tudo e de todos. Era complexado. Sofria quando via meus primos e amigos ganharem presentes de Natal. Meu pai era muito sério e rigoroso, bem diferente de hoje.
Em casa, faltava muita coisa... O que nos salvava eram as coisas que ganhávamos. O único passeio que me lembro que fiz com meus pais foi num parque de diversões, mas nós não entramos, só fiquei olhando os brinquedos pelo lado de fora.
Assim fui crescendo, estudando, batalhando. Muitas vezes, no auge do sofrimento, jurava para mim mesmo que um dia teria uma vida confortável, um trabalho que eu gostasse e que seria um profissional respeitado. É, acho que esse dia finalmente chegou.