MESTRE JOÃO - Um cientista na rota do descobrimento

       "De ‘Santa Cruz’ o nome lhe poreis; /descobri-la-ha a primeira vossa frota".
                             Camões, Os Lusíadas, X, 140


   Um dos documentos mais importantes e que tem sido exaustivamente estudado e analisado pelos exegetas da historiografia do Descobrimento do Brasil é, sem ponta de dúvida, a chamada Carta do Mestre João, enviado por esse erudito componente da esquadra de Cabral ao rei D. Manuel I, o Venturoso, junto com a de Pero Vaz de Caminha, com a narrativa de suas observações astronômicas acerca da posição exata da “Ilha” de Vera Cruz, que acabara de ser “achada”. Nessa carta, datada de 1º de maio de 1500, fez ele também, pela vez primeira, referência científica minuciosa ao Cruzeiro do Sul - que ele, assim, acabara de batizar: “(....); e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do carro (Ursa Maior); e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena.”
     Mas, quem era esse misterioso personagem, pouco conhecido das gentes e menos citado, ainda, nos livros de História?
     Mestre João identifica-se nas palavras que iniciam sua carta: “Senhor: o bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas reais mãos.” Vê-se, por elas, que o autor era médico (físico era a denominação antiga dada aos médicos) e cirurgião particular do rei, sendo, portanto, pessoa de alta qualificação. Além disso, esse ainda hoje obscuro personagem possuía outras aptidões, como nos dá conta ao encerrar sua pessoal missiva a el-rei: “Do criado de Vossa Alteza e vosso leal servidor Johanes, Artium et medicine bachalarius” (expressão latina para bacharel em Artes e Medicina).
     A verdadeira identidade de Mestre João, entretanto, só foi desvendada quase três séculos e meio mais tarde, pois sua carta restou perdida até 1843, quando foi “descoberta” pelo arguto historiador brasileiro Francisco Varnhagen, providencialmente escondida em algum estratégico escaninho da Torre do Tombo, em Lisboa. Deveu-se isso, certamente, aos efeitos remanescentes da “política do sigilo”, imposta por D. João II, o “Príncipe Perfeito”, antecessor de D. Manuel I, a fim de manter secretos os descobrimentos portugueses no Atlântico, ocultando-os, principalmente, do trono espanhol. Esse precioso documento, que tem sido impresso repetidamente, e está a salvo, a bem da História, no Arquivo Nacional Português (Torre do Tombo), é muito mais curto que a carta de Caminha.
     Muito pouco se conhece, em verdade, sobre Mestre João. Inúmeros historiadores, já desde o final do século XIX, têm-se interessado em desvendar a vida dessa eminente e sedutora personalidade, como Sousa Viterbo, Caroline Michaëlis, Carlos Malheiros Dias, Gerhard Moldenhauer e muitos outros.
     Sabe-se que era natural da Galiza (eis razão por que a carta foi escrita em um português castelhanizado!), se chamava João Faras, e houvera traduzido para o espanhol o De Situ Orbis (conspícuo códice de Cosmografia), de Pompônio Mela, de que se serviu Duarte Pacheco Pereira, um dos maiores navegadores do século XVI, que, induvidosamente, aportou na costa brasileira, em 1498, às proximidades da Ilha do Marajó – antecedendo, portanto, Cabral, em dois anos –, na redação de seu Esmeraldo de Situ Orbis, dando conta ao Venturoso D. Manuel de suas descobertas das terras desse lado do Atlântico.
     Sabe-se, também, que Mestre João era exímio conhecedor de astronomia, de astrologia (àquela altura aceita como ciência e da qual Camões foi, igualmente, experto cultor) e teria pertencido à afamada Escola de Sagres, reacendida, após a morte do Infante D. Henrique, pelo Príncipe Perfeito e aquecida por D. Manuel I.
     Tem-se como certo que, apaixonado pelas ciências náuticas imprimiu ao astrolábio, vetusto instrumento astronômico inventado pelo grego Hiparcos, no século II, a.C., muito usado pelos navegadores árabes e aperfeiçoado pela Escola de Sagres, reais avanços, aumentando-lhe a acurácia mensurativa para a determinação da latitude, que, até então, era tarefa cumprida muito precariamente com as tábuas da Índia, a balestilha e o próprio astrolábio anterior ao protótipo refinado pelas mãos habilidosas de Mestre João. Tanto é assim verdade que, ao fazer a aferição da latitude em que se encontravam, em Vera Cruz, assim se expressou: “Senhor: ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra (....) e tomamos a altura do sol ao meio dia e achamos 56 graus e a sombra era setentrional. Pelo qual, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17 graus e, por conseguinte, ter a altura do pólo antárctico em 17 graus, segundo é manifesto na esfera”. Mestre João acabara de constatar, na prática, a validade e superioridade de suas achegas apostas ao velho astrolábio, fato que fica patente ao referir, no fecho da carta, que: “Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do sol, que não por nenhumas estrela (sic); é melhor com o astrolábio, que não com quadrante nem outro instrumento.”
     Sobre os préstimos e superioridade do astrolábio náutico criado pelo subtil juízo e sábio engenho português Camões faz referência em seu épico magistral, Os Lusíadas, monumento máximo da ascensão e consolidação do idioma português, nas estâncias 25 e 26 do canto V:

25 – E pra que mais certas se conheçam
         As partes tão remotas onde estamos,
         pelo novo instrumento do astrolábio
         invenção de sutil juízo e sábio

e na estância seguinte:

26 - Porém eu cos pilotos na arenosa
       Praia, por vermos em que parte estou,
       me detenho em tomar do Sol a altura
       e compassar a universal pintura

     Sabendo-se do extremado critério seletivo que a Corte portuguesa imprimia na escolha dos componentes das frotas que demandavam a praia do Restelo (de onde partiam os barcos) em busca das terras “d'além mar”, maximamente para a expedição comandada por Cabral, a “segunda armada do século” (era a maior, mais cara, mais bem armada e equipada e com objetivos precisos e ousados), que tinha por escopo principal estabelecer uma feitoria em Calecute, infere-se que ninguém melhor que Mestre João poderia ter sido indicado por D. Manuel para desincumbir-se da difícil missão de guiar a esquadra a bom termo, executando a correta aferição das distâncias de latitude e longitude, tendo, para tanto, de abrir mão da presença, decerto importante e necessária, de seu “físico (médico) e cirurgião particular”.
     Mestre João teve, como se viu, atuação soberba na frota de Pedr'Álvares — responsável pelo descobrimento oficial do Brasil —, destacando-se como “o narrador dos novos céus”, ao fazer relatório de observações astronômicas tão minucioso, a ponto de fazer inserir, de permeio ao texto epistolar, o desenho do Cruzeiro do Sul, junto a outras “guardas” (estrelas) e ao demonstrar a precisão de seu aperfeiçoado astrolábio, pois que, ao dimensionar a situação de Vera Cruz em 17 graus de latitude Sul, muito próximo estava da exatidão: Porto Seguro situa-se a 16º 21' 22".
     Deixa ainda entredito, o Mestre, que os portugueses já tinham conhecimento da existência do Brasil antes de Cabral — e disso hoje não mais se descrê —, quando assinala: “Quanto, senhor, ao sítio desta terra, mande Vossa Alteza trazer um mapa-mundo que tem Pero Vaz Bisagudo e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapa-mundo não certifica se esta terra é habitada ou não.” E mais adiante: “Ontem, quase entendemos por acenos que esta era a ilha, e que eram quatro, e que de outra ilha vêm aqui almadias (canoa comprida e estreita, feita de um só tronco escavado) pelejar com eles e os levam cativos.”
     É fora de toda dúvida, por fim, que, sendo médico e cirurgião deverá ter prestado inúmeros atendimentos aos sacrificados marinheiros do navio em que seguiu viagem, máxime no que toca às mazelas do escorbuto, “por ser muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma”, como relata, ainda, em seu registo epistolar.
     Foi ele, destarte, o primeiro cientista a estudar e situar o Brasil.

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Médico e Escritor – SOBRAMES/ABRAMES. Do IHGP
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 03/05/2009
Reeditado em 13/09/2012
Código do texto: T1573359
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