Isaac Kerstenetzky
Professor Isaac Kerstenetzky.
Está cada vez mais difícil encontrar, nos campi universitários, professores como o Isaac.
Encontram-se, quase sempre, excelentes especialistas nas várias áreas do saber, muitos com reconhecimento internacional dos seus trabalhos, cada vez sabendo mais sobre menos coisas... Esta se perdendo, com rapidez, a perspectiva do educador, do professor mestre insigne na sua matéria, capaz, no entanto, de conversar e de opinar sobre assuntos vários com sabedoria, ponderação e visão interdisciplinar do processo histórico aonde, inclusive, a universidade e seus saberes estão inseridos. Às gerações mais jovens esta extirpe de mestres, em extinção, consegue instigar nas mentes em formação, ainda não poluídas por ideologias e pragmatismos, a beleza do conhecimento, do rigor do método científico, da prazerosa convivência das múltiplas formas do saber humano, na perspectiva de que o importante é promover a vida em geral e a pessoa humana em particular, com seus mistérios e suas belezas complexas, muito próprias.
Tal atitude deve ser o estilo de conduta de todos os professores, do físico e do sociólogo, do filósofo e do engenheiro, do teólogo e do administrador. Só assim uma juventude, sem referências e desorientada, encontrará tranqüilidade na confiança que naturalmente depositarão em homens e mulheres que reconhecem, pela integridade de suas vidas dedicadas à educação, à pesquisa, ao diálogo cordial. A garotada reconhece os verdadeiros professores e os procuram ávidos, como orientadores e exemplos para as suas vidas, que começam a dedicar na procura da verdade, que sabem existir mas a que nunca foram apresentados, com honestidade e competência. Excelentes professores moldam, conduzem, orientam a vida de seus alunos, tornam-se referências permanentes de comportamento acadêmico integro – missão nobre pela responsabilidade que lhe é cometida. Rapazes e moças, em contato com personalidades como essas, despertam com atitude pessoal distinta ou para a vida acadêmica ou tornando-se profissionais e cidadãos diferenciados pelo comportamento que adotam no dia a dia de suas atividades.
Muitos professores dos dias de hoje são, apenas, empregados de empresas que vendem cursos e diplomas – cumprem tarefas segundo esquemas e horários pré-estabelecidos pelos seus empregadores.
Issac Kerstenetzky não. Homem de saber enciclopédico, inteligência rápida, humor caustico, paciência infinita de um judeu histórico orgulhoso de sua herança cultural, era, antes de mais nada, amigo de seus alunos. Preocupava-se com cada um, angustiava-se com os dramas juvenis que lhe eram narrados. Alegrava-se com as pequenas conquistas dos seus discípulos – uma dissertação, uma conversa proveitosa, uma tese defendida com sucesso, um livro ou artigo publicado.
Nasceu no Rio de Janeiro em agosto de 1926. Orgulhava-se de ter crescido em Vila Izabel, a terra de Noel Rosa e atribuía a este fato a sua sensibilidade musical. Estudou no Colégio Pedro II e formou-se pela antiga Universidade do Brasil, hoje a Federal do Rio de Janeiro, com 20 anos de idade. Foi aluno de Octavio Bulhões e de Eugenio Gudin, que o conduziram para um mestrado na Universidade de Macguill no Canadá e logo em seguida para o Centro de Estudo Sociais de Haia. Voltando ao Brasil foi para a Fundação Getulio Vargas, para trabalhar no Centro de Contas Nacionais e lecionar na Escola de Pos-Graduação daquela Instituição.
Nestes mesmos anos, final dos anos de 1950, na PUC RIO, o Pe. Fernando Bastos e Ávila S. J., fundava a Escola de Sociologia e Política que tinha, na sua estrutura, um Departamento de Economia. O Vice Diretor era outro notável professor, Arthur Hell Neiva, que convidou o Isaac para colaborar com a nova Escola que, pioneiramente, insistia, na sua proposta pedagógica, na necessidade de se tratar as ciências sociais de forma integrada – só assim o fenômeno social poderia ser melhor entendido. Era o que Isaac sonhara toda sua vida – aceitou na hora. Contava, rindo, que a única pergunta que lhe fora feita, pelo Professor Neiva, além do convite, era se vivia um casamento estável...
Foi professor, Diretor do Departamento de Economia, colaborou com o professor Neiva na organização do sistema de créditos na escola de Sociologia, método de organização acadêmica na PUC RIO, inclusive pioneiro em todo o Brasil à época, (1962). Introduziu a idéia do ciclo básico, trouxe vários outros professores da FGV e do antigo BNDE para lecionarem economia, estatística, história econômica.
Em 1965, já seu aluno - uma turma de sete alunos - tínha aula na sua sala na Fundação, (um pedaço de mesa de reuniões, antiga, perdida no meio de pilhas de revistas, livros, relatórios, todos lidos e anotados), muitas vezes fora do horário habitual, aos sábados pela manhã e à noite nos dias de semana. Foram momentos inesquecíveis de convivência e de aprendizado. Suas provas eram novidades – podíamos fazê-las com consulta a livros, ou ir até a biblioteca para uma pesquisa de ultima hora. Seus comentários, nas provas, eram verdadeiras cartas aconselhadoras, onde com extrema elegância e delicadeza apontava as “barbaridades” que muitas vezes eram escritas. Estava sempre disponível para conversar sobre tudo, inclusive sobre a sua matéria principal – Planejamento e Desenvolvimento Econômico. Até o final da sua vida, já adoentado, sua maior preocupação era não faltar a uma aula, chegar no horário, atender aos alunos, conversar.
Por sonhar com a possibilidade de forjar um Centro de Ciências Sociais, com real perspectiva interdisciplinar e por não encontrar apoio para esta sua idéia no Departamento de Economia que fundara, de radicalizar a convivência de especialistas dos vários ramos do estudo do homem vivendo em sociedade, acabou seus dias no departamento de História, o grupo da PUC RIO que, naquele momento, mais estimulava a idéia da interdependência e a complementaridade das especialidades do saber social.
Escreveu pouco, muito pouco. Cada vez que pedíamos que colocasse aquelas conversas em forma de artigos, ou uma coletânea de artigos que pudesse se transformar em um livro dizia: “ah não insistam..., outros já escreveram sobre isso, vocês é que não leram, eu já li isto, que acabei de falar, em algum lugar que não me lembro mais...”.
Seus dez anos como Presidente do IBGE, (1970/1980), foram extraordinários. Sacudiu a Instituição e o Brasil passou a ter um Instituto de Pesquisas Sociais que, além de continuar a realizar suas antigas atribuições – fazer os Censos começou a produzir muito mais com arraigado sentimento de responsabilidade e de liberdade acadêmica. Estatísticas básicas, censos qüinqüenais, pesquisas anuais, as mensais, produção industrial, pesquisas por amostra de domicílios, índices de preços, matriz de insumo produção, meio ambiente, macro zoneamentos geográficos – micro e mesorregiões, estudos sobre pobreza, alimentação, mapeamento do território nacional, adensamento da rede de apoio geodésico, estudos populacionais. Foi um fantástico redescobrimento do Brasil, um apoio até hoje pouco reconhecido ao projeto de redemocratização do país. Os press release que se preparava semanalmente ensinavam a imprensa a ler o que era relevante e divulgado, encaminhando as principais análises que apontavam os desníveis sócio econômicos que enegreciam as “conquistas revolucionárias” da época, (anos de 1970). O General Presidente, à época da publicação dos primeiros resultados do censo, não teve outra saída senão declarar em Recife, (1971): “O Brasil vai bem mas o povo vai mal...” Tal declaração foi o início da contestação do modelo concentrador de renda e o começo de uma luta que se estende até os dias de hoje por políticas publicas compensadoras e redistributivistas. Tudo por conta da publicação, inesperada para Governo, de uma subamostra de 1,85% do boletim da amostra do censo demográfico, (processada às pressas no centro computacional da PUC RIO, de tal forma que divulgado os resultados tivéssemos um fato consumado, como de fato ocorreu). Jaime Magrassi de Sá, então Presidente do BNDE, há anos professor de História do Pensamento Econômico da PUC RIO, apontou este desnível intolerável numa série de três artigos, no Boletim Cambial. Foi demitido por pressão de Antonio Delfin Neto, o nefasto Ministro da Fazenda, que ousou duvidar da qualidade do censo em entrevista à Revista Veja, pois o mesmo desmerecia seu “pretenso milagre econômico”. Demitido do BNDES Magrassi foi demitido do BNDES. Isaac, no mersmo dia pediu ao Ministro João Paulo dos Reis Velos, seu chefe imediato, que o colocasse para trabalhar na sua assessoria no IBGE, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1979. Isaac, por força da sua autoridade moral e do total apoio do seu Ministro, João Paulo dos Reis Veloso, não foi molestado. Delfim o evitava furioso – fora seu aluno e Isaac fizera parte da banca que o examinara no doutoramento. Deu o troco em 1980, quando assumiu o Ministério do Planejamento: menos de 24 horas depois Isaac estava demitido do IBGE.
Em 1980 volta à PUC Rio e continua a ser o que sempre fora – um schollar, estudioso e atencioso com seus alunos. Nos últimos anos passou a estudar a Doutrina Social da Igreja e estava fascinado com as suas proposições. Sonhava em obter um financiamento internacional e não deixava em paz o seu amigo de décadas, o brazilianista Werner Baer, que também lecionara na PUC RIO – queria criar na PUC um centro de reflexão sobre o futuro da humanidade. Dizia que colocaria na porta, inspirando-se em Platão e na sua Academia, uma placa com os seguinte frase: “ Não entre se não for antropólogo...”.
Preocupava-se com as proposições para as soluções dos problemas sociais gerados pela globalização, bem como para os eternos problemas nacionais, dos nascentes movimentos sociais e partidos políticos, que buscavam nos ensinamentos da Igreja Católica, justificativa para os seus projetos. Dizia em sotto você: “ Neste mundo complicado, para fazer o bem, não basta ter o coração no lado certo: é preciso ser competente...e ter real compaixão para com os pobres”.
Homens com Issac Kerstenetzky fazem falta, muita falta. Sinto imensa saudade do meu querido amigo.
Eurico de Andrade Neves Borba
Ex-aluno do Prof. Isaac