O Capão
COMO SE FAZIA UM CAPÃO
O Senhor Alexandre da Cancela,
barbeiro da minha aldeia,
sentia-se cansado e sabia
que não teria muitos mais anos de vida.
Desde os dezoito
que barbeava os lavradores da terra,
cada um em seu dia certo,
e já lá iam perto de setenta Invernos,
frios, chuvosos
e com muitos nevões pelo meio
desde que nascera.
Além de barbear todos os lavradores
uma vez por semana,
ainda arrancava dentes,
curava maleitas,
vendia chás e capava frangos.
Tinha filhos,
mas nenhum quis seguir a profissão do pai.
Já iniciara muitos outros moços
na arte de barbear com navalha,
mas capar frangos só ele sabia…
Todos os anos minha mãe
tinha que entregar à Fidalga de Soutelo
meia dúzia de capões,
como parte da renda que o senhorio exigia
pelo cultivo e exploração da
Quinta das Eiras…
Por isso eu a acompanhava muitas vezes
na deslocação à Cancela,
gar onde morava o barbeiro
e capador de frangos, snr. Alexandre.
Eu deveria ter entre sete ou oito anos
e já ajudava no transporte dos galináceos.
“O segredo é a alma do negócio”-
e capar frangos com êxito
era um segredo muito bem guardado
que foi vendido a minha mãe
por dois alqueires de milho
e duas quartas de feijão manteiga…
De repente eu virei ajudante de capadeira…
Minha mãe apertava os frangos com os joelhos,
e eu sentado num banquinho de madeira à sua frente,
segurava e afastava as pernas do frango
que estava de cabeça para baixo e rabo para cima…
Com o dedo polegar e indicador direito,
depenava a zona abaixo do ânus do frango
e com uma lâmina de barbear
abria uma passagem para dois dedos
que mergulhavam no meio do intestino …
quando os retirava
trazia uma “bolotazinha” avermelhada
que punha numa tigela…
voltava a introduzir os dedos
e saía outra “bolotazinha” igual à primeira,
que ia para a mesma tigela…
Depois pegava na almotolia do azeite
e derramava um pouco para dentro do orifício,
lubrificando os intestinos
que iam mexendo conforme o frango respirava…
Com agulha e linha branca normal,
costurava a incisão,
tendo o cuidado de no fim,
derramar mais uns pingos de azeite…
A costura era polvilhada com cinza da lareira.
A segunda fase consistia em cortar a crista
e as “guelras”com a tesoura da costura,
derramar azeite e polvilhar com mais cinza.
Estava capado o frango.
Os próximos dois dias eram cruciais…
Ficava de “quarentena” na capoeira,
isolado do galo para não ser molestado
e só podia beber água
com umas gotas de vinagre
que minha mãe adicionava no bebedouro.
As probabilidades de sucesso eram de 80%...
em cada dez, morriam dois.
Era uma fatalidade que toda a gente aceitava…
Quanto ao custo desta “cirurgia”
nunca tive a noção do valor…
o pagamento era em géneros…
muitas vezes assisti à chegada
de cestinhas com ovos
ou pintainhos brancos, amarelos,
de pescocinhos pelados
ou cobertos de penugem…
Quanto a mim,
aceitava com certo orgulho
ser ajudante de minha mãe
que me premiava com uns ovinhos mexidos
com testículos de frango…
Nunca pensei no que deveriam sofrer aquelas aves,
que eram mutiladas e sacrificadas
para gáudio dos estômagos das fidalgas de Soutelo.