Onde se conclui a breve biografia de Dom Canuto e algumas especulações em torno do seu destino
A investigação histórica em torno da mítica figura de Dom Canuto, desde quando foi iniciada, tem gerado uma série de controvérsias nos meios acadêmicos, principalmente no que se refere à sua vida adulta, mais precisamente após seus vinte anos de idade. Atualmente, boa parte dos historiadores se dividem em dois grandes grupos: entre aqueles que, em menor número, defendem que este se tornou um próspero vendedor de piqui, e aqueles que, em maior número, defendem que este se tornou um modesto professor da rede pública de ensino. Embora em menor número, o grupo daqueles que acreditam que Canuto se tornou um vendedor de piqui, por alguma razão, tem aumentado bastante nos últimos anos. Se essa tendência prevalecer, é provável que no futuro todos conheçam Dom Canuto apenas como um vendedor de piqui e nada mais que isso. Mas tudo não passa de hipóteses - e o que é pior - hipóteses sem muito embasamento científico. A maioria delas carecem de fontes seguras, e muitas se esbarram numa posição sectária, cometendo equívocos absurdos e anacronismos terríveis; há até aqueles que chegam ao cúmulo de afirmar que Dom Canuto nunca existiu.
Ora, se Dom Canuto existiu ou não existiu, disso eu não tenho dúvida: existiu sim, tanto quanto existiu Homero... E como prova disso deixou ao mundo os seus versos; versos que se não chegam aos pés do poeta grego, pelo menos lhe servem de tapete estropiado.
Sabe-se que, encharcado de Neruda e Lorca, Oswaldo Montenegro e Chico Buarque, dedicou versos à namorada, coisas como:
Tu também já foste uma alegre lembrança na minha tristeza de homem.
O berço onde descanso o meu desespero mais cotidiano.
Ainda há pouco foi um mar aflito na minha paisagem,
Ondas em tumulto se quebrando no meu peito,
Um silêncio confuso roubando aos poucos minha calma.
E o que se passou entre os dois é segredo de quem ama? Pelo menos parece que foi isso o que a névoa do tempo pretendia, pelo menos tentou encobrir com sua poeira. Mas através de seus versos – não importa se bons ou ruins – sua história de amor, ainda que nebulosa, atravessou os séculos e chegou até os nossos tempos.
Não sabemos ao certo quem foi a donzela cantada nos seus versos, há uns que afirmam que ela se chamava Dulcinéia Del Toboso, mas isso é opinião de historiador fanfarrão; afinal de contas, todos sabemos que Dulcinéia foi a paixão platônica de Dom Quixote. O amor de Dom Canuto, tal como sabemos, foi correspondido, e sua musa, segundo Cide Hamete Benengeli, se chamava Alininha Del Toboso, sendo esta apenas uma descendente direta de Dulcinéia. Ao lado dela, ele estudou para o vestibular, passou réveillons inesquecíveis, momentos de angústia, ao lado dela se justificou perante o mundo, ganhou mais força diante das adversidades, descobriu fraquezas insuspeitadas, mas também descobriu a enorme força que guardava dentro de si. E contemplou a poesia no seu passo de bailarina, dançaram e rodopiaram aos som dos Bandolins, trocaram palavras mordazes, juras de amor eterno, e ficaram para sempre marcados, um no outro, como tatuagem...
E aqui deixo para o leitor um de seus versos, que, segundo Cide Hamete Benengeli, foram escritos quando este ainda se preparava para o vestibular, ao lado de Alininha Del Toboso. Mas o leitor me perdoará, pois antes ficaremos com os trechos de uma de suas correspondências. Essa carta, que se lerá a seguir, é de importante valor histórico, pois nela Canuto fala justamente sobre o poema que prometi, e dessa forma, acredito, penetraremos um pouco mais no espírito da coisa.
“Mal tinha acabado de concluir o ensino médio, e a vida me empurrava para frente, rápido demais, a experiência com a militância ainda era uma ferida não cicatrizada, meus pais me cobravam atitude, responsabilidade, meus amigos me cobravam uma visita, um telefonema, e eu cobrava o mesmo. Passei a trabalhar. Digitava laudos médicos numa radiologia: calcificações ateromatosas na crossa da aorta; espessamento mucoso nos seios maxilares, são palavras? são cifras? é duro enigma que se repete na minha memória, som de teclado agredido pelos meus dedos mecânicos, mãos que teciam apenas o rude trabalho. E minha contemplação poética de mundo se esbarrava no cotidiano, se prolongava nos versos nervosos de Álvaro de Campos: “Tenho febre e escrevo; escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto...” me enternecia e me refugiava com Manuel Bandeira: “Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei, lá tenho a mulher que eu quero, na cama que escolherei”, me embriagava de lirismo com Pablo Neruda: “Sucede que me canso de mis pies y mis uñas, y mi pelo y mi sombra; Sucede que me canso de ser hombre.”, e com Carlos Drummond de Andrade “Perdia o bonde e a esperança” e “subia a ladeira lenta em que os caminhos se fundem”. Me encharcava de poesia – precisava de todas – com ela eu suportava bem essa estranha angústia de simplesmente ser. Ah, meu Deus, porque me abandonaste, se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco. Mundo, mundo, vasto mundo[...].”
“Dei adeus à Igreja Católica e fiz da amizade a minha religião e sobre uma mesa de bar ergui a minha igreja... Se me tornei precocemente um casmurro? Não sei, imagino que não. Sempre me esforcei para guardar bem minhas tristezas, continuava acenando meus bom-dias a quem passava na rua, saudando velhos amigos, ora a caminho do trabalho, ora a caminho da padaria; mas alguma coisa do antigo menino se conservava em mim, como algo essencial, que fazia meu avô me reconhecer como sendo seu neto e que fazia minha mãe me reconhecer como seu filho. Sou aquele antigo menino que nunca deixou de lhe pedir a benção, todas as noites, antes de dormir.”
Minha prece ao menino que fui
Não me abandone, menino que fui.
Não me deixe sozinho no espelho
Com uma barba por fazer.
Ela está curta, mas guarda dores abomináveis.
Não me abandone, menino que fui.
Porque carrego em mim algo essencial
Que se prolonga no meu gesto,
Carrego em mim alguma coisa do menino que fui
E que faz o meu avô me reconhecer como seu neto
E minha mãe me reconhecer como seu filho.
Continuarei andando pelas ruas,
Acenando aos amigos,
Cumprimentando as mulheres.
E ninguém notará que atrás da minha barba
Mora um homem triste.
Edificarei na mesa de um bar a minha igreja
E farei da amizade minha religião
E você menino antigo será como aquela flor
Dentro do meu livro, da mais ingênua poesia,
Aquela que acredita nos homens e na vida.
Porque no fundo continuo aquele menino,
Aquele menino que tem medo do escuro,
Aquele menino que nunca deixou de pedir a benção,
Todas as noites, antes de dormir.
E assim dou por concluída a minha humilde contribuição, a de resgatar nos anais do tempo os resquícios de uma existência remota e de reconstruí-la em nosso tempo. Como historiador já não tenho nada a dizer, senão que me sinto pago pela simples satisfação daquele que me lê neste momento. Fiquemos, pois, com as últimas palavras do poeta:
E na lida da vida, perdi?
Mas foram tantas as alegrias!
Tantas a me sorrirem seu riso,
Tantas a me abrirem as portas, a convidar-me a entrar no rito, dizendo-me:
- Entre!
E entrei:
e amores eu vivi
e amigos eu cantei
e amores vi parti
e logo outros eu ganhei.
E entre dezembros e maios e fevereiros amei.
Crédulo no amanhã - acordei.
E no papel desenhei nova camélia.
FIM
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