Que trata da loucura do estudante Dom Canuto de Melo com outras aventuras de feliz recordação
Conta Cide Hamete Benengeli, num de seus manuscritos, que Dom Canuto, nos intervalos que tinha de ócio - que eram os mais do ano -, se dava a ler livros de História, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo de suas campanhas de RPG e até de seus desenhos japoneses; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que cedeu todos os seus mangás japoneses ao seu irmão mais novo, ampliando por outro lado o seu acervo de livros didáticos de História e Filosofia e uns outros das ciências sociais.
Dentre todos eles, nenhum lhe agradou mais que os compostos pelo historiador Mário Schmidt - Nova História Crítica - porque a clareza de sua linguagem, a forma como denunciava as injustiças e os conflitos sociais, e todas aquelas ilustrações contidas no livro lhe pareciam de pérolas, e mais, quando chegava a ler aqueles quadros do livro “Refletindo a História no Cotidiano”, e quando lia aquelas passagens sobre a Revolução Russa – Lênin e os bolcheviques conduzindo os operários na luta contra o czarismo, “todo o poder aos sovietes!”, as imagens da Revolução dos Cravos, a triunfante Revolução Cubana, Fidel e Guevara vociferando contra o imperialismo norte americano, “hasta la victoria siempre!”, era todo ele tomado por um estranho entusiasmo que crescia subterraneamente no seu coração, sem que ele disso se desse conta.
E assim, entre uma leitura e outra, o seu imaginário ia-se povoando todo por essas histórias de rebeliões, conflitos sociais, revoluções, passeatas, guerrilhas, luta de classes; e sua imaginação, ficava assim, divagando sobre um oceano de imagens - a grandiosa Marcha dos 100 Mil, os estudantes franceses atrás de barricadas, Guevara com o corpo cravado de balas nas selvas bolivianas, Simon Bolívar proclamando a independência latino-americana, a sede da UNE sendo incendiada pelos militares, o CCC espancando os artistas do teatro Roda Viva, estudantes pinchando os muros “Abaixo a ditadura”, as grandes manifestações operárias do ABC paulista. Tudo isso junto e misturado em sua cabeça, ia ele se inflamando todo por esse romantismo, por essa euforia revolucionária.
Com estas divagações perdia o pobre estudante o juízo, e desvelava por entender o Manifesto do Partido Comunista ao mesmo tempo em que resgatara do baú uma série de canções da época da ditadura, essas que são rotuladas por alguns críticos como “canções de protesto” ou “música engajada”. Escutava com maior freqüência as músicas de Raul Seixas, e entre uma música e outra, ouvia “Apesar de Você” do Chico Buarque, “Pra não dizer que não falei das flores” do Vandré e “Alegria Alegria” do Caetano Veloso. Dessa maneira, cercava-se ele de toda uma trilha sonora que correspondesse com o seu pensamento revolucionário.
Nessas práticas, costumava passar bom tempo travando longas conversações com os seus amigos; encontravam-se todos eles no conjunto “C”, rua do Dunguinha (seu amigo, que era também conhecido como cabeça de molequinho, ombrinho de nada, entre outros apelidos que não cabe aqui mencionar) -, e ficavam ali a travar saborosas conversações sobre o que liam e reliam nos livros de História, ora filosofando à toa, ora discorrendo com o Sapão e com o Adan sobre o que poderia ter acontecido à União Soviética caso Gorbatchev não implantasse a Perestróica e a Glasnost, e o que seria do Brasil se a Rede Globo não editasse criminosamente o debate eleitoral de 89. Importante, pois, para a nossa história é saber que todos eles compartilhavam mais ou menos as mesmas idéias, divergindo apenas aqui e ali nalgum ponto mais polêmico, como quem deveria assumir a direção da revolução russa após a morte do líder bolchevique – Trotski ou Stálin? – como é de se notar, tratavam-se questões da maior urgência na conjuntura social de Ceilândia...
Nesses entremeios, Sapão e Adan pendiam para a defesa de Stálin, pois viam nele o único líder com envergadura política para conduzir a revolução diante do imperialismo americano, devendo esta acumular forças para se manter e gradualmente se expandir; já Dom Felipe, figura importante nesta estória, era quem com mais ardor defendia Stálin, via no ditador um homem de braço forte, um tirano por necessidade histórica, e era nisto que Canuto e seu amigo Dunga cismavam - uma revolução não podia se impor apenas pela brutalidade das armas, mas pela consistência das idéias, pela emancipação gradual dos oprimidos e pela tomada de consciência do proletariado, o mundo devia ser um canteiro de revoluções, sem se restringir à União Soviética, esse foi o erro de Stálin – argumentavam, de modo que ficavam mais pra Trotski do que para Stálin. Entre essas polêmicas de primeira ordem, houveram outras, como a questão da viabilidade de uma revolta armada no Brasil, e um eventual calote sobre o FMI, que não cabe contar nesta nossa breve história, basta pois que sigamos em frente sem maiores considerações.
Em suma, tanto naquelas leituras o nosso estudante se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, encheu-se lhe na fantasia de tudo que se achava nos livros que lia, e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação toda aquelas cenas de sonhadas revoluções que lia, que para ele não havia outra coisa a fazer no mundo. Nascia aí sua utopia apoiada na mais tenra das nuvens, sem concreto ou alicerces, sobre um cavalo de vento, na mais gostosa embriaguês.
Afinal, rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca caiu louco algum do mundo, e foi: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para o aumento de sua honra própria, como para o bem de toda a classe operária, fazer-se revolucionário militante, e ir-se por toda a América Latina (ou pelo menos Brasília!) com seus amigos e companheiros, à cata de mobilizações, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os ilustres revolucionários, desfazendo todo o gênero de agravos, todas as mazelas sociais, e pondo-se em ocasiões de militância, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama. Já o coitado se imaginava fincando, ao lado do já trôpego Fidel Castro, a bandeira vermelha do Socialismo no alto do Congresso Nacional; e assim, com estes pensamentos de tanto gosto, levado do enlevo que neles trazia, se deu pressa a pôr por obra o que desejava. E a primeira coisa que fez foi improvisar uma bandeira, a qual fez sozinho, catando ali um cabo de vassoura, comprando ali no armarinho um tecido vermelho, recortando e bordando o tecido com o símbolo da foice e do martelo, concluindo assim um serviço que aos seus olhos eram o primeiro passo rumo a revolução socialista no Brasil.
Apressou-se a mostrar a obra para o seu amigo Dunga, que lhe elogiou a iniciativa; acordaram logo os dois a darem dessa forma início a um movimento militante, fundando aquilo que seria um grupo revolucionário que começaria em Ceilândia, e que se alastraria, em breve, por toda a América Latina. Cismaram os dois em que nome poriam no grupo; porque não era razão que um movimento tão grandioso como era esse que nascia, ficasse sem um nome aparatoso, grandiloqüente; barafustavam-se por lhe dar um; e assim, depois de escreverem, riscarem, discutirem, e trocarem muitos nomes, ajuntaram, desfizeram, e refizeram, até que acertaram em o chamar de URC, União Revolucionária Comunista, nome alto, sonoro e significativo do que haveria de se tornar tão importante movimento.
Daí, nesse mesmo dia, concluíram depois de muito planejar, que deveriam começar a revolução pregando cartazes nas escolas, mobilizando estudantes e conclamando-os na luta contra o imperialismo norte-americano, e contra tudo que este representava ideologicamente. A revolução, portanto, estava apenas começando...
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