O meu itinerário quixotesco (autobiografia)
Num lugar da arcaica Ceilândia, cujo nome ora me escapa, vivia, há muito tempo, um estudante, desses metidos a poeta, que desenhava nas carteiras da escola, e que costumava filosofar à toa com os amigos da vida. Querem dizer que tinha o sobrenome de Canuto ou Canudo, que nisto discrepam algum tanto os historiadores que versam sobre a matéria; ainda que por fontes verossímeis se deixe entender que se chamava Canuto. Isto, porém, pouco faz para a nossa história; basta que, no que tivermos de contar, não nos desviemos da verdade nem um til. Portanto, como historiador fiel à verdade, não farei como aqueles pintores que costumam lamber as botas dos grandes castelos, retirando a verruga à rainha e pintando ao rei um belo par de olhos verdes, quando, na verdade, sabemos que são ligeiramente estrábicos.
Quem foi Dom Canuto? Apesar de suas façanhas e desventuras terem despertado o interesse de historiadores do mundo inteiro, no arrebol dos séculos, não sabemos ainda ao certo quem foi Dom Canuto de Melo, muitas são as divergências a respeito de sua condição e nascimento, sem contar uma névoa quase mítica que envolve sua figura, o que torna qualquer tentativa de compreendê-lo ainda mais difícil. Uns poucos, meio malucos, defendem a tese de que este fora um fidalgo decadente do século XVI, outros defendem que ele foi um próspero vendedor de piqui num pequeno município do Goiás, lá pras bandas do século XIX. Eu, historiador que preza pela sensatez e pelo rigor intelectual, me coloco ao lado da maioria, que afirma ter esse vivido entre os séculos XX e XXI como um modesto estudante aspirante a poeta.
É, pois de saber, que numa carta atribuída a ele, endereçada a uma amiga sua, poetisa, de nome Luna Steinherz, Dom Canuto de Melo expressa alguns problemas a respeito do seu nome:
“Meu nome é Canuto mesmo, nome que dizem ser italiano e cujo significado ignoro. É um nome que já me fez passar muita raiva: alguns professores confundiam com “canudo”. Imagine a sala inteira rindo da minha cara? Imagine uma criatura roxa de vergonha? Pior que eu era bem magro, daí todo o ano meu apelido ser “canudo”. Mas não se preocupe não, já superei esse trauma, embora ainda continue magro”.
Infelizmente, por falta de documentos biográficos de fonte confiável, não foi possível informar com segurança em que circunstâncias nascera Dom Canuto de Melo, embora alguns historiadores defendam a tese de que nascera imediatamente após a Ditadura Militar, instaurada no Brasil por mais de vinte anos; dessa forma, provavelmente durante o Governo Sarney. Pelo menos é o que nos informa uma biografia atribuída ao próprio Canuto, biografia desqualificada pela maioria dos historiadores que se debruçaram sobre a matéria. Porém, sem fazer qualquer julgamento, coloco a autobiografia à disposição do leitor, e que ele a julgue como melhor lhe aprouver:
“Quando nasci, no conturbado ano de 1985, o Brasil procurava desesperadamente se libertar das amarras de um regime que o prendera por duas décadas. Atravessava um difícil e longo período de transição política, a chamada Distensão lenta e gradual, marcada pelo acirramento de novas forças no cenário político e por um pesado clima de esperanças frustradas. Como se não bastasse a derrota sofrida nas Diretas, o país amargava a morte de Tancredo, um de seus principais expoentes na luta pela democratização, e assistia a ascensão de José Sarney, antigo aliado do regime, à presidência da república”.
Algumas fontes revelam que seus pais são nordestinos; o pai, Francisco Canuto de Melo, nascido lá nas terras do poeta Gonçalves Dias, Caxias do Maranhão; e a mãe, Maria do Socorro, por sua vez, em Teresina, aquela cantada nos versos de Caetano Veloso:
Existimos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina.
Destinaram-se para Brasília, levando no coração o sonho de uma vida melhor, onde enfim poderiam realizar toda a sorte de delícias que liam em suas fotonovelas e nas opiniões que apreciavam, de parentes ou conhecidos que na Capital se arranjavam. Quando chegaram, o espanto. A vida não seria fácil, e sua realidade finalmente desbravada não seria como aquela, sublime, presente nos cartões postais da cidade, com suas esculturas arquitetônicas sobrevoando o planalto, com sua alvorada radiante saltando aos olhos de quem chega. Ao contrário, o que saltava aos olhos era apenas a poeira vermelha de uma Cidade Satélite que ainda se erguia e se inchava, recebendo gente de todo país, principalmente nordestinos, que aqui se apertavam para realizar seus sonhos, enfrentando a escassez de água, a ausência de energia, uma moradia segura... Era assim, “amanhã poderiam chegar com um trator e sair derrubando tudo...” Assim viviam em Ceilândia.
Conta-nos Cide Hamete Benengeli, um dos maiores historiadores que lida com a biografia de Canuto, que o pai, seu Chico, apesar de ter vivido boa parte de sua vida às voltas com dificuldades financeiras, era um homem cordial, hospitaleiro, de conversa fácil e, ainda, um astuto contador de piadas. Não se sabe onde encontrou Hamete essas informações, raríssimas por sinal; mas é possível encontrar em seu livro alguns trechos escritos pelo punho do próprio estudante, onde este traça sua própria biografia. Abaixo, ele parece falar de seus primeiros anos de vida, como chegou ao seu ouvido o clima de crise econômica que atravessava o país em meados da década de 90:
“E se na política o clima oscilava entre o desencanto e a esperança, na economia, por sua vez, era o primeiro sentimento que prevalecia. Era época de planos econômicos fracassados – Plano Cruzado, preços congelados, salários congelados, inflação - eram palavras que diziam respeito a uma realidade opressora, onde viver se tornava cada dia mais caro. Parecia que o Brasil definitivamente não daria certo. Meu pai, na época motorista de ônibus, também sentiria no bolso os efeitos brutais da inflação, tendo ele que maneirar no “leite ninho”, no “feijão” e “adiar na reforma da casa”, visto que o preço das mercadorias subia a cada dia. Hoje, a tudo isso ele encara com certa dose de humor, dizendo que nos mercados “tinham mais repositores de preço do que mercadoria”, “você ia comprar o feijão e o repositor pedia licença pra aumentar o preço”. Nessa época ninguém consultou minha opinião a respeito da política econômica e nem o presidente bateu na minha porta me oferecendo a pasta do Ministério da Fazenda - é por isso que esse país não vai pra frente!”
Adiante, constatamos que Cide Hamete Benengeli também imprimiu trechos onde o estudante rememora sua infância, passada num desses bairros suburbanos de Ceilândia:
“Como me esquecer do universo lúdico da primeira infância?”. “As brincadeiras com o meu irmão, super-heróis pulando e rolando no sofá – Jaspion, Cavaleiros do Zodíaco, Ninja Jiraia - um verdadeiro terror pra minha mãe, que ficava tiririca da vida de ver rasgões por todo o sofá. E como me esquecer também das brincadeiras de “casinha” e “restaurante” com as meninas da dona Idália, as surras que levava da minha irmã mais velha, que vinha correndo atrás de mim com cabos de vassoura, as minhas primeiras leituras, a coletânea de contos e fábulas comprada pela minha mãe nas mãos de um camelô? Os gibis que meu pai comprava na rodoviária - da época em que ele trabalhava como motorista de ônibus -, trazia-me as revistinhas da Turma da Mônica, onde me divertia especialmente com as estórias do Cascão e do Chico Bento. A minha inclinação e vocação para o desenho. O momento mágico da criação, a descoberta de um outro mundo construído na imaginação. O sonho de me fazer desenhista. Os gibis que passei a desenhar, onde me enveredava num outro mundo, anárquico, sem lei nem rei, onde as criaturinhas das mais disparatadas – dragão, ursinho, cachorro, cavalo, palhaço e barata, podiam conviver harmoniosamente em plena a floresta tropical da minha imaginação”.
Embora sejam poucas essas fontes, e muitas de caráter duvidoso, podemos ter uma idéia de quem foi o estudante Dom Canuto. Há outras que informam ter sido, no início de sua adolescência, um fanático leitor de mangás japoneses. Outras revelam que seu irmão mais caçula cursou Letras Japonesas na Universidade de Brasília; daí, aceitando que seu irmão tenha sofrido influências, tem-se uma evidência que torna a hipótese provável, ainda mais se observarmos que o irmão passou a desenhar mangás japoneses pela vida afora. Sabe-se também que jogava RPG com os amigos, Dom Felipe, John Gagana e o irmão, Negro, conhecido vulgarmente como Allan. Enfim, são tudo hipóteses, e é me confiando nelas que vou tecendo essas histórias. O leitor pode se desagradar um pouco com algumas imprecisões, mas é tudo o que consegui coletar em longos anos de árdua pesquisa.