Danças Circulares - Capítulo 4

O salão estava escuro, as janelas fechadas, e os limites muito bem definidos pelos barbantes que serviam, também, de varais. Nestes, estavam pendurados vários escritos, os quais liamos silenciosamente, enquanto explorávamos o ambiente. Algumas cadeiras estavam espalhadas pelo espaço e as capas dos seus encostos jogadas pelo chão.
 
A sensação era de separativismo, opressão, desconforto, limite. Porém, me sentia aliviada por não ter sido marcada. Ainda lá fora, antes de entrarmos, algumas pessoas foram selecionadas e receberam uma marca que as diferenciavam das demais, felizmente eu não era uma delas.
 
Depois de algum tempo, as pessoas marcadas foram convidadas a sentar-se nas cadeiras e tiveram seus olhos vendados. A partir daí, todos nós, “cegos” e “normais” começamos a receber ordens para executar tarefas simples. A primeira delas foi andar pelo salão, depois encontrar as capas dos encostos e colocá-las nas cadeiras,por fim, deveriamos formar três fileiras de cadeiras.
 
Os focalizadores da atividade começaram a usar tom de ameaça, impaciência, intolerância, provocaram e humilharam os “cegos” e testaram a capacidade de enxergar dos “normais”. Deixaram bem claro que, cada um, fazia, apenas, a parte que lhe cabia. Eu, obediente como sou, acatei as ordens a despeito de todo caos que se formava diante dos meus olhos (não só dos meus, mas de todos os “normais”). Enquanto os cegos se ajudavam entre si, nós assistiamos. Afinal já tinhamos feito a nossa parte.
 
Era uma cena triste, os “cegos” trombavam nos objetos, nas pessoas, rastejavam, tateavam. Apesar do incômodo que sentia, não conseguia me mover, não conseguia ser solidária, várias vezes quis fazer pelos “cegos”, mas fui incapaz. O ambiente era hostil, opressor. Haviamos recebido a ordem de fazermos apenas o que era solicitado e aquilo me bastou.

Enquanto acontecia toda aquela movimentação de “cegos” e “normais”, foram lidos trechos do livro “Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago. Não consegui reter aquelas palavras, mas elas calaram fundo. Embora, hoje, não saiba reproduzi-las fielmente, posso senti-las reverberando em meu ser.
 
Aquele momento me fez parar, repensar a vida, a condição humana, os preconceitos, minha postura omissa – e de tantos outros “normais”- perante as dificuldades alheias. Aprendi que ser solidário, não é apenas se compadecer, mas ter atitude e se rebelar quando necessário.
 
“- Será que no meio de tantos “normais” não vai ter um rebelde para nos ajudar?”
 
Este questionamento feito por uma pessoa do grupo dos “cegos”, no momento de compartilhar sensações e experiências, ainda me assombra, pois para a tristeza dos “cegos a vivência acabou sem a rebeldia dos “normais”.
 
Diante dessa “tragédia”, se faz necessário assumir o compromisso de aprender a enxergar e buscar a visão que vai muito além do que os olhos podem ver. Uma visão mais humana, solidária, agregadora e responsável. Essa visão nos conduzirá ao encontro da nossa face  humana, nestes tempos de cegueira para as coisas que são mais essenciais.
 
Ainda introspectiva, caminhei para o quarto com a certeza de que no dia seguinte, teria a chance de me redimir através das Danças Circulares.