Exemplo de um Trabalhador Braçal
Para nós, trabalhador braçal era aquele homem desprovido de qualquer formação escolar que utilizava sua força para o trabalho de campo. Durante algum tempo, tive a companhia de um desses homens nos chamados trabalhos pesados, para os quais a criança ainda não está apta a executá-los. Pelas suas características, até parecia com um antigo escravo. Um baita de um negão, com muita força física e uma mente pouco moldada, mas com a sua qualidade nata, própria da natureza rústica do nosso sertão. A nossa região não tinha a cultura da região canavieira, onde ainda havia resquícios das senzalas. Por isso, aquele homem era tratado com todo o respeito e assim ele fazia por merecer. Sentava conosco à mesma mesa para as suas refeições. Nós, as crianças, ficávamos admirados em ver a altura do prato e até brincávamos, fazendo certas comparações. – Parece a serra de Itaparica ou parece o serrote do Padre, numa referência às serras que margeiam os lados direito e esquerdo do rio, lados da Bahia e Pernambuco, respectivamente. Não imaginávamos que ele comia tanto em razão de sua atividade física, desprendendo muita energia, naquele trabalho árduo e enfrentando muito sol durante todo o dia. Não havia o costume de fazer nenhum lanche no horário intermediário entre as principais refeições. O homem vinha com disposição para repetir pratos e mais pratos, por maior que fosse o monte de alimento ali colocado. Com o retorno ao trabalho via-se o efeito desse combustível. O homem parecia um trator, tamanha era a sua força. A sua produção compensava o consumo na despensa de casa. O meu pai, que não entendia de produtividade, naturalmente estava certo em mantê-lo em nossa companhia, já que o homem mostrava serviço. Com toda essa força bruta, era um homem dócil, bom de conversa e isto nos agradava. Á noite, antes de pegar a sua habitual rede para dormir, contava-nos algumas das antigas histórias de Trancoso, coisa de que as crianças gostavam pelas costumeiras fantasias. A vida simples, distante do mundo das civilizações, fazia daquele homem um ser puro, ingênuo, sem malícia, sentindo-se feliz com o que a natureza tinha a lhe oferecer. Sabia contemplar aquilo que estava ao alcance dos seus olhos. Falava do sol, da lua e das estrelas. Um poeta nato.
Valorizava ainda o que podia sentir ou tocar. O frio ou o calor, o rio, as plantas e os animais. Declarava-se feliz, dizendo que para ele bastava ter o que comer e beber, ter o lugarzinho onde dormir e, sobretudo, saúde para poder trabalhar. Ali era o seu mundo, dali nunca se afastou além de 20 quilômetros, a sede do município. Mesmo assim, ali demorava ir. No máximo uma vez por ano, para pagar alguma promessa feita com o Santo Antônio, o padroeiro da cidade. De todos os trabalhadores que passaram por lá, este foi o que deixou uma marca maior, pelo menos para mim, por ter com ele convivido maior tempo. Foi ele que, no período mais difícil para se cuidar do gado, pela prolongada seca, esteve à frente do trabalho de arrancar a macambira e encoivará-la para a queima, enquanto o gado já ficava ao redor, esperando a vez de comer aquelas raízes, único pasto disponível no local. Outros teríamos de buscar longe, utilizando-se da canoa quando pelo rio, ou do jumento quando por terra. Este foi o meu registro da década de 50, quando ainda vivia na minha Bahia. Ergueria um troféu para aquele homem pela sua pureza, nunca deixando transbordar o sentimento de raiva ou ódio, pelo menos para as crianças que o cercavam. Não é o que vemos hoje no meio da civilidade.